Quadrinhos europeus são um bom exemplo de como o fino trato dessa arte pode produzir histórias com requintes literários excelentes — e um deles é Torpedo.
Podemos começar pela Itália, onde o mais famoso é o Tex, um ranger cowboy do velho oeste americano que leva justiça por onde passa — sua importância é gigantesca para a indústria de modo geral.
Dylan Dog, detetive que investiga o sobrenatural, e Ken Parker, outro herói do faroeste, são mais exemplos de excelência. Subindo o continente, na França, encontramos clássicos como As Aventuras de Tintim e Asterix e Obelix, além dos aventureiros Blake & Mortimer, Spirou, o herói cômico do faroeste Lucky Luke, a fantasia Thorgal, o sci-fi Valerian e muitos outros.
Na vizinha Espanha, pós-ditadura Franco e com as portas da liberdade finalmente abertas, encontramos Torpedo, história de máfia com um dos personagens mais escrotos e instigantes que já existiu nos quadrinhos — e fora dele.
São narrativas com quase 40 anos de histórias sobre um criminoso que é o “herói”, e que ainda hoje representam colossos criativos do gênero, que superam outras mídias ao contar o que querem de maneira magnífica.
O protagonista de Torpedo, o pistoleiro da máfia chamado Luca Torelli, fez sua primeira aparição na versão espanhola da revista Creepy, edição # 32, de fevereiro de 1982.
Luca nasceu em 1903, na Sicilia, em uma família pobre e bastante problemática. Seu pai alcoólatra batia nos filhos e na mulher.
Em um de seus ataques causados pela bebida, acaba matando seu filho mais velho. Luca se vingaria, matando seu próprio pai.
Ao tentar escapar dos problemas advindos do crime, Torelli, ainda bem jovem, migra para Nova York, trabalhando inicialmente como engraxate.
Com o tempo, se mete com a bandidagem novaiorquina e pratica pequenos delitos, até se tornar um conhecido assassino de aluguel.
O bandido está sempre acompanhado de seu fiel e sinistro escudeiro Rascal. Moral e regras estabelecidas são inexistentes para Torelli, que executa suas vítimas sem nenhum escrúpulo ou piedade.
Movido a sexo, vingança e dinheiro, e é ele mesmo quem narra as aventuras, sem omitir qualquer situação. Um homem amargo, duro, cruel, truculento, sórdido, alguém que você não vai querer envolvimento.
Torpedo 1936, quando
o criminoso é o herói
As histórias do assassino de aluguel Luca Torelli inicialmente contavam com o texto de Enrique Sánchez Abulí e desenhos do veterano Alex Toth — autor mais que famoso autor de diversas tiras celebradas e personagens clássicos dos quadrinhos e desenhos animados americanos.
Por conta do teor bastante pesado das histórias, recheadas de humor negro, Toth abandonou o trabalho pouco tempo depois, dando lugar ao desenhista catalão Jordi Bernet, um dos melhores desenhistas do mercado até hoje.
Suas mulheres são maravilhosas, e ele compõe cenas de ação e violência gráficas excelentes.
Ao usar flashbacks e narrativa não-linear de maneira bastante criativa, algo incomum e ousado na época, Abulí cria um universo rico que retrata bem a Nova York corrupta, social e economicamente instável depois da crise 1929, mostrando, ao mesmo tempo, a ascensão de Luca dentro da hierarquia do crime na grande metrópole.
Abuli e Bernet entregam um grande trabalho sobre máfia e gangsters, uma série de histórias que não deixam nada para as entrelinhas que vemos em filmes como O Poderoso Chefão Parte 2, por exemplo.
Gíria para matadores de aluguel
O cinema noir e a literatura hard boiled são as grandes homenageadas em Torpedo. Histórias curtas que utilizam todos os clichês do gênero.
Só que em vez do anti-herói, tudo gravita em torno do vilão. A trajetória que Luca ganha das mãos de seus autores se encarregam de suavizar de alguma maneira esse caminho.
A estrutura da série eram oito a dez páginas com três tiras de dois desenhos que ocasionalmente se reúnem em uma só ou se dividem em três.
Eram assim para a maioria das publicações, exceto para as aventuras longas ou alguma recordação particular do personagem principal. Os capítulos dificilmente se auto-referenciam, o que deixa a leitura de cada história única.
No começo dos anos 80, a pedido de Miralles Marcelo, segundo Josep Toutain, baseado neste excelente artigo português, Sánchez Abulí entrega uma história noir protagonizada por uma mulher loira e um gângster, ambientada na época da grande depressão nos Estados Unidos.
De conteúdo ordinário, o editor consegue extrair algo que poderia ter mais substância. O veterano cartunista americano Alex Toth é contatado para compor as primeiras páginas do que viria a ser Torpedo.
A sugestão do nome foi de Toth, que explicou que torpedo era uma gíria para os assassinos de aluguel na década de 20 nos EUA.
Toth já era um ilustrador veterno, ligado aos comics de super-heróis, desenhos animados e revistas de terror e suspense da editora Warren, e colocou seu traço elegante e sentido narrativo para Sanchez e sua criação.
O toque soft, sem mostrar toda a amoralidade do matador e seu ambiente, não estava do agrado do roteirista espanhol. Isso explica a razão de Toth ter durado apenas dois episódios.
Jordi é filho de Jorge Bernet, célebre desenhista catalão, e desde cedo mostrava talento para desenho. Jordi começou a desenhar com apenas 15 anos, na série Doña Uraca.
Teve carreira internacional nas páginas da revista Spirou, onde desenhou Dan Lacombe e Paul Foran.
Seu estilo artístico já se encaixava em temas sombrios e violentos. Seu traço inventivo tem dinamismo e uma sensualidade feminina muito características.
Seu preto e branco das histórias reproduz com fidelidade o clima noir, o que deixou Torpedo simples, eficaz, direto, forte e natural. Natural de Barcelona, Bernet teve seu primeiro personagem regular com Andrax (1974), e depois de Torpedo, fez Sarvan, uma narrativa pós-apocalíptica, Kraken (que em breve sai por aqui no Brasil), Custer, que narra aventuras de uma detetive, e Morgan, uma trama de presídio.
Sanchez considerou chamar Jordi Longarón e Frank Robbins antes de fechar com Jordi Bernet. Robbins foi um dos maiores estilistas dos comics americanos, criador de Johnny Hazard, tiras de aventura muito celebrada na Europa, com trabalhos para Marvel e DC, como Capitão América, Batman, Soldado Desconhecido e outros.
O artista foi uma das grandes influências de Bernet em seu traço vigoroso e dinâmico de começo de carreira, até ele refinar sua identidade visual própria. Bernet e Abuli tiveram outras parcerias artísticas, como Patchuli, Snake e Crônicas Negras.
Sanchez tem outro trabalho violento de qualidade com Joe Breakdown, que narra o cotidiano social da América.
Um tiro fatal em 2000
Em dezembro de 2000, Torpedo morreu, vítima de seus próprios autores. Tudo por causa de uma confusão de créditos em meio a uma homenagem manca.
O cantor espanhol Loquillo dedicou uma música a Torpedo, e se referiu ao personagem apenas como sendo de Bernet, que inclusive fez um desenho do matador para a arte do álbum. Sem sequer mencionar o nome de Sanchez Abulí, o disco saiu.
Ao saber que Bernet tinha tido conhecimento do fato, ainda antes do disco sair, os dois cortaram relações, e entraram em uma espiral de acusações e processos judiciais.
Há variadas versões sobre como tudo ocorreu, e o fato de Bernet ter ganho um dos processos, azedou qualquer afinidade que a dupla criadora de Torpedo já teve.
Uma lástima, pois os dois autores levaram o personagem ao sucesso, publicando o material nas principais revistas espanholas.
Torpedo ganharia revista própria, Luca Torelli es Torpedo, e passaria a ser publicada em diversas línguas, inclusive aqui no Brasil. O personagem teve 15 álbuns ao todo, e diversas editoras estrangeiras dedicam tratamento luxuoso para as republicações dessas histórias.
Wiil Eisner, um dos mestres dos quadrinhos mundiais, relata o seguinte em um um texto publicado no 1º. volume da edição espanhola: “Uma tradicional série noir, com raízes na literatura e no cinema da época, (a série Torpedo) jamais conseguiria obter um tal alto nível ambiental, nem teria o impacto que teve junto dos apreciadores de HQs caso tivesse sido feita a cores“.
Com Abulí e Bernet, Torpedo 1936 se tornou uma das mais populares séries europeias. Em 1985, ganhou o Prémio Alph-Art de Melhor Álbum Estrangeiro do tradicional Festival de Angoulême, na França.
Com o sucesso de uma edição especial, chamada Torpedo 1936 – Integral, publicada em 2014 na Espanha (um volume de 720 páginas, que já teve três reimpressões), Abulí decidiu trazer Luca Torelli de volta, bem mais velho e com desenhos e cores do desenhista argentino Eduardo Risso (100 Balas, Parque Chas, Noite de Trevas).
No Brasil, Torpedo 1936 teve quatro álbuns lançados pela Martins Fontes, em 1988. Antes ele tinha aparecido na Circo #1, de 1986.
A partir de 1990, a revista Animal, antologia clássica de quadrinhos da editora VHD Diffusion, teve algumas histórias curtas de Torpedo, publicadas nas edições #5, #14, #16, e #20.
Todos os materiais de Torpedo foram publicados em 2020 pela Figura Editora em 2020. Aliás, duas obras: Torpedo veio acompanhado do já citado Kraken, clássico cult do quadrinho espanhol, uma ficção distópica de terror noir, com roteiros de Antonio Segura, e desenhos de Bernet.
/ HARD-BOILED. As três formas principais de literatura criminal – ficção de detetive, hard-boiled e noir – se caracterizam por princípios éticos e estéticos bem definidos.
A primeira nasce no século XVIII, com contos de Edgar Allan Poe, com um investigador de poltrona que resolve enigmas longes das cenas de crime. A Primeira Guerra Mundial, logo depois da primeira década do novo século, e a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, fazem as tramas se endurecerem, para acompanhar os tempos difíceis que a sociedade se encontrava.
Violência e sujeira começam a manchar de tons mais sombrios as histórias. Detetives e forças policiais trabalham ao arrepio da lei — é a definição da ficção hard-boiled. E é dela que se origina a ficção noir.
/ NOIR. Noir é um estilo ultra-específico nas várias categorias do gênero de cinema. A palavra é francesa, significa negro. Não há consenso na indústria, e sim formas gerais de elementos que o identificam. Se caracteriza por ser estrelado por pessoas que fazem escolhas dúbias nas narrativas, geralmente passadas nos anos 40 ou 50, em tramas de crime e suspense localizados em ambientes urbanos.
Há certas convenções que tem que ser observadas e mantidas, como o protagonista ser detetive, policial, anti-herói, ser bom de volante e briga, beber, fumar, chamar a atenção de mulheres. Os romances policiais da época, de Dashiel Hammet e Raymond Chandler, eram grande fonte de inspiração para a criação do termo noir.
Mundos trágicos e corruptos. As mulheres sempre são um perigo, belas e com segundas intenções, terceiras e quartas também. São as femme fatale, mulheres fatais em francês. O preto e branco na fotografia é forte e os contrastes são trabalhados em cima dessas duas cores. Luzes e fumaças, curvas acentuadas, sombras e escuridão para causar desorientação e cenas dinâmicas.
Não é um movimento de cinema, não havia diretores que faziam filme assim. O termo foi talhado apenas depois de muitos filmes feitos dessa maneira. Hollywood até rejeitava o termo, criado na imprensa especializada na França. Apenas nos anos 80 críticos e especialistas compraram a ideia.
/ ESTILO. Tomo a liberdade de destacar aqui a grande excelência da arte de Jordi Bernet, com traços rápidos em linhas cinéticas nas composições visuais que faz.
Um artista americano de comics de super-heróis que consegue o mesmo efeito, quando arte-finalizava desenhistas com um estilo similar, é Dan Green — você ver uma matéria especial dele no blog, aqui.
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