A estética sonora que o gênero lo-fi hip-hop imprime na música desde a metade dos anos 2010 não dão sinais de cansaço.
Ele é uma das mais populares trilhas sonoras da geração millenial. São playlists e rádios com transmissões ao vivo de infinitos beats relaxantes baseados na música hip hop, com um signo visual em cima de desenhos animados japoneses — animes –, e que podem ser encontrados às centenas no YouTube ou Spotify.
É uma mistura de elementos sonoros de vozes suaves, barulhos de cidade, água, piano, violão, piano, tudo com tons calmos e de baixa fidelidade, que criam uma atmosfera pacífica urbana, onde o segredo é padronização.
O beat hipnótico é base do lo-fi hip-hop (termo também conhecido como chillhop), e é bem diferente da proposta do synthwave.
É importante frisar que ele é o oposto do hip hop, que trata da realidade, e vai com tudo na direção oposta, a fuga da mesma.
O que temos aqui é uma relaxante e amigável trilha sonora caseira, e não canções de protesto, até porque não há vocais no lo-fi hip-hop.
Por não apresentarem grande complexidade instrumental ou vozes, os artistas que fazem lo-fi hip-hop são em sua maioria entusiastas amadores, DJs e produtores anônimos, e os poucos casos de samples de artistas famosos não é o padrão no gênero, já que aqui a música é o protagonista.
O lo-fi hip-hop fica no meio termo de um downtempo e de uma ASMR. O downtempo não é um gênero específico, mas uma forma de fazer música: ruídos e batidas sintetizados em sinergia a outros gêneros musicais, muitos não necessariamente eletrônicos.
Podemos encontrá-lo em músicas dub, hip hop, trip hop, jazz, funk, soul, chill out, música ambiente, world music, pop e muitos outros.
Alguns artistas que fazem grande uso de downtempo são Morcheeba, Gotan Project, Groove Armada, Thievery Corporation.
Já o ASMR é o nome dado para os vídeos relaxantes sonoros que viraram moda em 2018 no Instagram e YouTube — a palavra vem de Autonomous Sensory Meridian Response (“Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano”, em português).
Podemos ouvir o lo-fi hip-hop em transmissões que rolam 24 horas por dia, 7 dias por semana no YouTube.
O mais famoso é o canal ChilledCow, o Lo-Fi Girl, que já conquistou 1,7 milhões de assinantes durante o pouco mais de um ano que vem transmitindo. O canal também foi o primeiro a usar a imagem da garota de anime estudando, o que acabou criando o background estético para o resto da galera que opera no mesmo gênero.
O ChilledCow já chegou ao número de 2,4 milhões de inscritos com uma chamada básica: “lofi hip hop radio – beats to relax/study to“.
A imagem de fundo é de Juan Pablo Machado, modelado a partir da personagem Shizuku Tsukishima do anime Sussurros do Coração (Whisper of the Heart, 1995), um dos filmes animados do Studio Ghibli.
No ano passado, o Lo-Fi Girl ficou famoso quando teve uma de suas transmissões ao vivo encerrada pelo YouTube, o que resultou em um vídeo de mais de 13 mil horas (o equivalente a 541 dias) com 218 milhões de visualizações.
Mesmo não podendo ser reproduzido, ele se tornou o que foi considerado o maior vídeo da história do YouTube. Alguns dos artistas atuais mais conhecidos de lo-fi hip-hop são Knxwledge, bsd.u e wun two.
As várias origens
do lo-fi hip-hop
Para fazer o lo-fi hip-hop, a estética se inspirou na “ética” DIY (o “do it yourself“, “faça você mesmo”), que encontrou popularidade na década de 1970, o que possibilitou a ascensão do punk e do pós-punk nas dinâmicas comerciais da indústria da música.
Com os instrumentos e equipamentos sonoros ficando mais acessíveis com o passar do tempo, isso se tornou mais evidente para quem quisesse fazer algo na área. O termo lo-fi vem do inglês, de “low fidelity“, ou “lo-fi“, abreviando.
O termo foi cunhado pelo DJ americano William Berguer em 1986, que batizou seu programa de rádio de Lo-Fi, onde tocava 30 minutos semanais de fitas K7 enviadas por ouvintes para contrastar com o termo high fidelity (hi-fi), termo por sua vez utilizado pela indústria fonográfica para referir-se ao material de alta definição.
Jun Seba, nascido em 1974, era dono das lojas de discos de Shibuya, no Japão. Se tornou um produtor musical e DJ japonês, com o nome Nujabes, e fundou o selo independente Hydeout Productions.
Gostava de de hip hop, rap e jazz. Era grande fã do pianista Bill Evans e o saxofonista Yusef Lateef. Produziu 3 EPs: Ain’t No Mystery (1999), Luv (Sic) Part 1 – Part 6 (2002/2003) e Lady Brown 12″ (2003), e com isso, chamou a atenção no mercado.
Recebeu o convite de um diretor de animes, Shinichiro Watanabe, para uma série que estava produzindo, uma trama samurai de época, mas com um mood mais moderno. Nujabes (entre outros) fez a trilha sonora do anime Samurai Champloo em 2004, e seu trabalho rendeu dois álbuns: Depature e Impression.
A trilha sonora hip hop eletrônica do desenho se tornou singular e mágica, casando à perfeição os personagens estilosos e desencanados com a sonoridade que Nujabes imprimiu aos episódios.
No mesmo ano de 2004, o rapper e produtor inglês-americano Daniel Dumile, mais conhecido por (uma das ) alcunha de MF Doom, lançava seu álbum Madvillainy. O instrumental desse disco serviu de base para o lo-fi hip-hop que viria a ser construído depois.
Sempre com uma máscara sinistra de metal — herança direta de seu gosto por quadrinhos, pois parecida com a do Doutor Destino (Doctor Doom), da Marvel Comics, e depois alterada para ficar parecida com a que Maximus usa no filme Gladiador (2000), do diretor Ridley Scott –, o som de MF Doom sempre foi um hip hop alternativo que influenciou várias figuras da indústria da música.
Foi um dos maiorais do rap nos EUA, e chamava atenção desde Operation Doomsday (1999), seu primeiro álbum, cheio de beats e rimas ácidas e diretas — a arte de capa era o Doutor Destino, e as músicas apresentavam samples de um antigo desenho do Quarteto Fantástico.
“Tudo que a gente faz é no estilo vilão”, disse ele sobre a atitude de supervilão, dentro e “fora” dos palcos, em entrevista à Rolling Stone.
Gravado entre 2002 e 2003 (junto com o produtor Madlib, persona de Otis Jackson Jr., rapper multi-instrumentista americano de hip hop), com instrumentais feitos em uma mesa de som e um equipamento de sampler Boss SP-303 durante uma viagem ao Brasil (!), o disco Madvillainy acabou vazando na internet na época antes do lançamento oficial, e apenas depois que os dois consolidaram carreiras próprias, retomaram o trabalho.
Flow e lírica complexas, design de quadrinhos e narrativa vilanesca em um dos mais célebres trabalhos do rap, tanto em impacto musical, quanto instrumental e de rimas.
“Madlib passou duas semanas em São Paulo, visitando toda lojinha de discos que conseguiu e captando todo tipo de sample de música brasileira —principalmente da tropicália— que foi capaz. Entre as dezenas de samples envolvidos, há segundos de músicas de Maria Bethânia e Gal Costa nas tramas sonoras complexas e refinadas do produtor. ‘Eu estava na sintonia do Brasil, sentando no meu quarto fumando uma erva péssima e sampleando, enquanto todo mundo estava saindo para festas e enchendo a cara’, disse Madlib ao Pitchfork, como informa esta matéria da FOLHA.
MF Doom fez parcerias memoráveis com Ghostface Killah (do Wu-Tang Clan), Danger Mouse, Flying Lotus, e Thom Yorke e Jonny Greenwood (ambos do Radiohead).
O lo-fi hip-hop começou a se popularizar em 2016, graças a streamers de música do YouTube. Vários desses canais usavam, além do trabalho de Nujabes e MF Doom, o já citado J Dilla como base criativa.
O rapper, DJ e produtor americano Dilla é considerado como um dos mais influentes produtores de toda a história, trabalhou com De La Soul, Busta Rhymes e Common, e pode ser considerado o último tripé que sustenta a base de criação do lo-fi hip-hop por quem curte.
Especialistas, críticos e público costumam fazer uma demarcação para o lo-fi hip-hop, com Nujabes, MF Doom e o J Dilla como obras seminais do gênero, as pedras fundamentais do rolê. Veículos especializados em música, como a Vice e Rolling Stone, começaram a fazer matérias a respeito da cena, e o estilo ficou ainda mais conhecido.
Infelizmente, nenhum dos artistas estão mais entre nós.
J Dilla morreu em 10 de fevereiro de 2006, vitíma de um ataque cardíaco, três dias após seu 32º aniversário, em sua residência em Los Angeles, Califórnia.
Em 26 de fevereiro de 2010, Nujabes sofreu um acidente de trânsito fatal na rodovia Shuto Expressway, no Japão.
Ele tinha apenas 36 anos. Já MF Doom morreu no Dia das Bruxas de 2020, aos 49 anos, em circunstâncias tão misteriosas quanto sua verdadeira identidade e face, já que ele nunca tirava a máscara, além de não dar entrevistas e aparecer em público — a morte de Dumile foi anunciada oficialmente apenas na virada do ano.
Lo-fi no Brasil
No YouTube existem vários remixes lo-fi hip-hop no estilo brasileiro, com músicas de artistas como Tim Maia e Tom Jobim, e canções tipo bossa nova, samba-rock e chorinho. A arte da garota japonesa em anime também é substituída por meninas em contextos do cotidiano brasileiro. Mas o lo-fi nunca foi novidade por aqui, como mostra esta matéria da Gama. A banda goiana de rock psicodélico Boogarins faz rock lo-fi por exemplo, como pode ser conferido no primeiro álbum da banda, As Plantas Que Curam (2013). As gravações da Baratos Afins, uma gravadora, produtora e loja musical, situada na Galeria do Rock, em São Paulo, tinha muitos trabalhos lo-fi, como o disco Disco Voador (1987), do Arnaldo Baptista, gravado em fita cassete. Bandas como Fellini e Chico Science e Nação Zumbi também fizeram músicas lo-fi.
/// NUJABES.
Discografia:
Hydeout Productions 1st Collection (2003)
Metaphorical Music (2003)
Modal Soul (2005)
Hydeout Productions 2nd Collection (2007)
Spiritual State (2011)
Samurai Champloo Music Records – Depature (2004)
Samurai Champloo Music Records – Impression (2004)
(EPs e Singles)
1999: Ain’t No Mystery
2002-2013: Luv (Sic) Part 1 – Part 6
2003: Lady Brown 12″
2015: Perfect Circle (With Shing02)
/// MF DOOM.
Discografia:
Operation: Doomsday (1999)
Take Me to Your Leader (2003) (como King Geedorah)
Vaudeville Villain (2003) (como Viktor Vaughn)
VV:2 (2004) (como Viktor Vaughn)
Mm..Food (2004)
Born Like This (2009) (como Doom)
(álbuns em que colaborou)
Mr. Hood (1991) (como Zev Love X com KMD)
Black Bastards (2000) (como Zev Love X com KMD)
Madvillainy (2004) (com Madlib)
Special Herbs + Spices Volume 1 (2004) (com MF Grimm)
The Mouse and the Mask (2005) (com Danger Mouse como Danger Doom)
Key to the Kuffs (2012) (com Jneiro Jarel como JJ Doom)
NehruvianDoom (2014) (com Bishop Nehru como NehruvianDoom)
Czarface Meets Metal Face (2018) (com Czarface)
Super What? (2021) (com Czarface)
/// J DILLA.
Discografia
Slum Village – Fantastic, Vol. 1 (1996)
Slum Village – Fantastic, Vol. 2 (2000)
Jay Dee – Welcome to Detroit (2001)
J Dilla – Ruff Draft (2003)
Jaylib – Champion Sound (2003)
J Dilla – Donuts (2006)
J Dilla – The Shining (2006)
J Dilla – Jay Stay Paid (2009)
J Dilla – Rebirth Of Detroit (2012)
(álbuns que produziu)
The Pharcyde – Labcabincalifornia (1995)
A Tribe Called Quest – Beats, Rhymes and Life (1996)
De La Soul – “Stakes Is High” de Stakes Is High (1996)
A Tribe Called Quest – The Love Movement (1998)
Bizarre – “Butterfly” de Attack of the Weirdos (1998)
Q-Tip – Amplified (1999)
Common – Like Water for Chocolate (2000)
De La Soul – “Thru Ya City” (2000)
Erykah Badu – Mama’s Gun (2000)
Busta Rhymes – Genesis (2001)
Slum Village – Trinity (Past, present and Future) (2002)
De La Soul – “Much More” b/w “Shoomp” (2003)
Brother Jack McDuff – “Oblighetto (J Dilla Remix)” (2004)
M.E.D. – Push Comes to Shove (2005)
Common – Be (2005)
Lawless Element – Soundvision: In Stereo (2005)
Illa J- “Yancey Boys”(2008)
Obrigado por ler até aqui!
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