CELIO CECARE | “E que a estrada cresça sempre contigo”

O roteirista de quadrinhos Celio Cecare estreou com a HQ Garotos do Reservatório (2018), co-criada com o desenhista Fábio Cobiaco, dono de um traço de alto impacto estilizado, enxuto até os cernes das emoções.

Os dois fizeram uma narrativa urbana com uma dupla de jovens amigos, Victor e Hector, que em meio a uma vida de crimes, encontram a verdadeira amizade, que pode resistir à tudo, até mesmo ao mais ferrenho inimigo de qualquer um: o tempo.

A HQ é cheia de referências ao conceito do tempo. O tempo em que os protagonistas estão na escola — e depois dela — e o que fazem com ele; o tempo em que se passa a trama, cheia de elementos pop dos anos 1990; o tempo que cada um reserva para si e para o que deve ou não fazer; o timing característico de filmes de ação, e não por acaso, como os que vemos em longas do cineasta Quentin Tarantino; e o tempo de vida que temos, passado e futuro.

Se você estiver lendo a ficção científica mais viajada do mundo, ela ainda assim vai ser calcada em personagens, sejam eles robôs ou fungos, e o único modo de você lidar com as apreensões, angústias e desejos desses personagens é através de tudo o que te rodeia e de tudo o que você consome. Logo, todas as engrenagens que fazem parte da sua vida e da sua realidade vão se transformar em material de trabalho para o que quer que você esteja escrevendo.

Celio separou um tempo e deu uma entrevista para o blog Destrutor, para falar mais sobre o mundo dos quadrinhos e o que vem por aí em tempos futuros.

Celio Cecare

Destrutor & Celio Cecare

Como foi seu primeiro contato com quadrinhos?

Eu tive diversos ‘primeiros contatos’ com quadrinhos. Em casa, meu avô tinha sempre um Fantasma ou outro gibi perdido, e eu era apaixonado por super-heróis tipo Superamigos e qualquer outra coisa da Filmation.

Agora, a revista que mudou tudo pra mim foi Novos Titãs #19 – Contrato de Judas, ali tinha ação, história em flashback, tudo… Foi a primeira vez que vi quadrinhos como um meio em si, com particularidades próprias.

Garotos do Reservatório, publicado em 2018

Quais são seus artistas favoritos?

Gosto muito do Pasqual Ferry, John K. Snyder III e coisas mais antigas tipo Era de Prata e Bronze…No quadrinhos nacionais tem o Fábio Cobiaco, que é um monstro como artista, o Shiko, que todo desenho fica de babar, etc…

Quais são os quadrinhos que você está lendo agora? Gideon Falls, me preparando pro último volume, e na metade do Satsuma Gishiden, do Hiroshi Hirata, que é o mangá que mais me chamou atenção este ano…

Quais são os seus trabalhos na área dos quadrinhos? Publicados, por enquanto, são: Garotos do Reservatório, Churros e Anoitecer das Rosas.

Fora isso, tenho umas webtiras com o Cobiaco, alguns trabalhos antigos com o Otacílio Lopes, e outras com o Marcel Bartholo, que está dando vazão as minhas loucuras mais atuais…

Garotos do Reservatório, publicado pela editora Mino

Qual o próximo trabalho para 2021?

Do que se trata? Em 2021 vai sair um trabalho que estou fazendo com o Benson, que está bem legal, mas não faço a mínima ideia de como explicar a história sem estragar nada, então vou apelar para a quinta emenda nesta pergunta.

Porém, estou trabalhando em um outro texto sobre relação pai e filho… estou bem entusiasmado com este.

Celio Cecare
Uma prévia do próximo trabalho de Celio Cecare. A arte é de Benson

Quem é o autor ou autora de quadrinhos que todos sempre devem prestar atenção?

Estamos falando tipo Wynona Rider??! Todos eles! Acho que tem tantos estilos diferentes de HQ, e de tantos temas e formatos, que é complicado falar de uma coisa ou outra porque elas vão dizer algo de maneira diferente para cada leitor.

Quais os novos ou novas artistas que parecem promissores para você?

Apesar de já estar na quinta crise de meia-idade, eu não me vejo tão velho assim… mas um tem um pessoal mais novo que vi meio começando e acho o trabalho bem legal, como por exemplo, o Gabriel Dantas que tem um desenho que sempre me faz babar, tanto em tiras quanto nos quadrinhos que comprei; também curti bastante o La Vie en Rose, do Arthur Pigs, e as tiras que ele posta no Instagram.

Como você acha que os quadrinhos são vistos enquanto mídia?

Acho que estamos tão acostumados com a linguagem dos quadrinhos em todas as mídias que não percebemos o quão abrangente ela é.

Se você abrir um jornal ela está lá, assim como também em propagandas ou qualquer manual, o princípio é o mesmo. Então você liga a TV e uma série tem base em quadrinhos… ou filmes que você nem imagina, bem fora do padrão super-herói.

Então, além de ser uma linguagem sempre presente, mesmo quando você não percebe, ela é um grande repositório de narrativas e as outras mídias estão cada vez mais dispostas a garimpar isso.

Como a música influencia seu trabalho?

Estou o tempo todo escutando música… alguns temas para as história me vêm de canções, até mesmo o ritmo de algumas cenas vem de alguma música que fico ouvindo incessantemente até alcançar a mesma sintonia.

Como o cinema influencia seu trabalho?

Eu sempre fui apaixonado por cinema, e o modo que vejo os quadrinhos tem muito a ver com o jeito que o cinema é produzido.

Meu papel de roteirista de HQ é basicamente igual ao do roteirista de um filme, e a colaboração com o artista se dá nisso, ele é o diretor pra quem estou passando a bola.

Acho que quando existe uma sintonia entre as pessoas envolvidas na produção, o trabalho colaborativo se torna algo maior do que era.

Celio Cecare
Celio Cecare na CCXP 2019

Quais outros aspectos socioculturais influenciam seu trabalho?

Se você estiver lendo a ficção científica mais viajada do mundo, ela ainda assim vai ser calcada em personagens, sejam eles robôs ou fungos, e o único modo de você lidar com as apreensões, angústias e desejos desses personagens é através de tudo o que te rodeia e de tudo o que você consome.

Logo, todas as engrenagens que fazem parte da sua vida e da sua realidade vão se transformar em material de trabalho para o que quer que você esteja escrevendo.

Quais os conselhos e análises que você dá pra quem te pergunta como se inserir no mercado independente

 Esqueça mercado, esqueça tudo e pense no que você quer ler, se você não produzir algo que te interesse, é certo que não vai interessar a mais ninguém. Fora isso, leia, não só quadrinhos, leia tudo o que puder, consuma o máximo possível…

Qual o maior prazer em se trabalhar com quadrinhos?

Era pra ser prazeroso??! Mas o prazer surge quando você vê que mais alguém curtiu um trabalho seu, ou algum desenhista comprou a ideia e está investindo naquilo também.

Esse tipo de contato com as pessoas é um sentimento de comunhão quase religioso e, no fundo, é o que todas as pessoas querem ter, uma parte de si que se conecte com outros.

Qual a maior dificuldade em se trabalhar com quadrinhos?

Acho que quando a pessoa coloca na cabeça que vai fazer uma HQ ou qualquer outro lance artístico, é meio que Odisseu falando ‘E aí, Poseidon, você viu o que eu fiz? Booyah!’, e aí é um problema que segue o outro.

Então dizer ‘ah, a maior dificuldade é essa!’ é tentar o destino ainda mais e meio que transformar tudo em uma competição para os problemas.

Se você tivesse o poder de ter o talento de alguém do meio dos quadrinhos, de quem seria?

Cara, com certeza não seria nenhum medalhão. Eu curto demais pessoas que fazem diversas histórias e estão ali trabalhando na próxima. O lave, enxague e repita tem um apelo incrível pra mim, porque é legal ler uma Graphic Novel que te faz ficar boquiaberto, mas quantas dessas você lê? Já as pessoas que estão ali lançando uma HQ, depois outra e outra, sem grandes pretensões ou expectativas, isso é o ofício mesmo.

Celio tem 40 anos, e além de roteirista de quadrinhos, é professor de idiomas, tradutor e escritor.

Nasceu em Porto Feliz e, por enquanto, mora em Sorocaba, ambas cidades do interior de São Paulo.

Você encontra o Celio aqui.

As imagens sem legendas usadas nesta matéria/entrevista são fotos das páginas de Garotos do Reservatório. O nome da HQ faz referência direta à proposta noventista da história: reservoir é a palavra em inglês para reservatório, e é o título original do filme de estreia de Quentin Tarantino, Reservoir Dogs, conhecido no Brasil como Cães de Aluguel.

A foto de Celio foi indicada para uso pelo próprio, quando em sua mesa na CCXP 2019.

A imagem da próxima HQ de Celio foi postada por Benson em seu perfil do Instagram.

O título da matéria, com a citação “E que a estrada cresça sempre contigo“, também é uma referência à Garotos do Reservatório, e de acordo com o próprio Celio, “roubada de um brinde irlandês“. O clipe de música abaixo é Rise, do Public Image, e tem exatamente essa frase (em inglês, obviamente). A canção “toca” umas 3 vezes em Garotos do Reservatório” — a última delas, na cena derradeira do gibi, interrompida pelo ato de um dos personagens.

May the road rise with you
May the road rise with you
May the road rise with you
May the road rise with you
Anger is an energy
Anger is an energy
Anger is an energy
Anger is an energy
Could be wrong, I could be right
Could be wrong, I could be right
I could be wrong, I could be right
I could be black, I could be white
I could be right, I could be wrong
I could be black, I could be white
Your time has come your second skin
Cost so high the gain so low
Walk through the valley
The written word is a lie
May the road rise with you
May the road rise with you
May the road rise with you
May the road rise with you
Could be wrong, I could be right
Could be wrong

Celio Cecare
Garotos do Reservatório, de Celio Cecare e Fábio Cobiaco, pela editora Mino

/ FÁBIO COBIACO. O co-criador de Garotos do Reservatório (junto com Celio Cecare) é o paulista Fábio Nascimento Cobiaco, artista com mais de 30 anos de profissão, com trabalhos em fanzines, jornais, livros, revistas, quadrinhos, animação, capas de discos, e foi o responsável pela direção de arte do primeiro filme em stop motion da América Latina. Em 2012, publicou V.I.S.H.N.U., uma HQ que ganhou o prêmio Jabuti.

/ FANTASMA. Lee Falk criou a tira em quadrinhos Fantasma em 1936 para os jornais americanos. Ele é o protótipo do super-herói na cultura pop — usa máscara, uniforme e luta contra a criminalidade sem ser um agente da lei. Falk também foi o criador do herói mágico Mandrake.

/ SUPERAMIGOS. A revista em quadrinhos Superamigos citada por Celio Cecare era publicada pela editora Abril nos anos 80, e apresentava um mix de histórias dos heróis do Universo DC, da editora americana DC Comics.

Entre 1985 e 1988, foram publicadas histórias da saga Crise nas Infinitas Terras, o Esquadrão Atari (que nunca mais teve republicação e é um material ímpar na história das HQs, com desenhos de José Luis García-López, baseados em uma história original de aventura espacial para promover a marca Atari, de videogames) e a mini-série Camelot 3000, uma história escrita por Mike W. Barr e desenhada por Brian Bolland, que precede muitos temas adultos que as HQs só desenvolveriam décadas depois. O último número da revista apresentou o Esquadrão Suicida para o público brasileiro.

/ NOVOS TITÃS. O grupo é formado por jovens heróis do Universo DC, e de início contava com os ajudantes dos heróis principais, como Robin, o Kid Flash e a Moça-Maravilha. Depois, os personagens foram se enriquecendo com a adição de outros heróis, como Estelar, Ravena e Cyborg, e se tornaram uma das equipes mais populares dos quadrinhos, rivalizando com os X-Men (da concorrente Marvel), com sua força juvenil, aventura com elementos pop, dramas mais sérios e abordagens mais sofisticadas de situações adultas, como romance, morte e escolhas de vida.

É essa revista e esse contexto a que Celio Cecare se referiu na entrevista. As histórias eram publicada na revista Os Novos Titãs, sucesso durante os anos 1980 e 1990, pela editora Abril.

Novos Titãs #19, da editora Abril. Crédito da foto: Gibi Mania. Link: https://lojagibimania.loja2.com.br/5676662-Os-Novos-Titas-19-editora-Abril

/ FILMATION. A Filmation é uma clássica produtora  americana de desenhos animados, séries e filmes para a televisão americana. Ela foi a responsável por produzir mais de 70 séries animadas, como He-Man e She-Ra, e seriados como A Poderosa Ísis, Shazam! e Viagem Fantástica.

/ PASQUAL FERRY. Desenhista espanhol com diversas passagens pelas principais editoras de quadrinhos de super-heróis, como Marvel e DC, em títulos como X-Men, Quarteto Fantástico e Adam Strange. Você encontra o Pasqual aqui.

/ JOHN K SNYDER III. Escritor e ilustrador americano, com trabalhos anotados — entre muitos — em revistas da DC Comics, como Esquadrão Suicida, Doutor Meia-Noite e Lanterna Verde. Ele produziu também uma graphic novel que adapta as histórias clássicas noir do detetive Lawrence Block, chamada EIGHT MILLION WAYS TO DIE. Você encontra o John aqui.

/ SHIKO. Francisco José Souto Leite é o Shiko, artista paraibano que atualmente reside em Florença. Fez HQs como O Quinze, O Azul Indiferente do Céu, Talvez seja mentira, Lavagem e Piteco – Ingá, uma graphic novel do selo MSP, da Turma da Mônica, que lhe deu o 26º Troféu HQ Mix de melhor desenhista nacional e melhor publicação de aventura / terror / ficção. Também ganhou o 30º Prêmio Angelo Agostini como melhor desenhista. Você encontra o Shiko aqui.

/ GIDEON FALLS. A icônica série de terror e suspense da editora americana Image, publicada desde 2018, é um sucesso pelas mãos da dupla Jeff Lemire e Andrea Sorrentino. Você encontra edições brasileiras pela editora Mino, a mesma que publicou Garotos do Reservatório de Celio Cecare e Fábio Cobiaco.

/ SATSUMA GISHIDEN. Uma das mais celebradas obras de samurai no formato de mangá, como são chamados os quadrinhos japoneses. Escrita e ilustrada por Hiroshi Hirata, está disponível no Brasil em três volumes, pela editora Pipoca e Nanquim. A narrativa foca em histórias de grande proeza, protagonizadas por samurais, homens que vivem em sistemas profundamente arraigados na honra e disciplina. Ao mesmo tempo, Hirata mostra uma sociedade se despedaçando, com a queda política dos samurais, ao mesmo tempo de profundas mudanças na sociedade japonesa.

/ MARCEL BARTHOLO. Nascido em Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro, atualmente reside em Sorocaba-SP. É ilustrador, quadrinista e artista plástico, além de professor de oficinas de desenho e criatividade.

Marcel organiza um dos maiores eventos do interior paulista de quadrinhos, o IlustrA – Encontro Ilustrado e o IlustrA Comic Fest, eventos voltados para os admiradores e profissionais do desenho e das HQs — o Celio Cecare já participou inclusive. Marcel fez várias HQs com temáticas de terror, como O Santo Sangue, uma aventura fantástica que mistura folclore, religião e elementos brasileiros, uma história com roteiro de Laudo Ferreira. Sua estreia foi com Insubstituível, HQ com roteiro de Mavian, seguida de Carniça, com roteiro de Rodrigo Ramos. Você encontra o Marcel aqui.

/ BENSON. Você encontra o artista Benson Chi e seus trabalhos aqui.

/ GABRIEL DANTAS. Você encontra o artista Gabriel e seus trabalhos aqui.

/ ARTHUR PIGS. Você encontra o artista Arthur e seus trabalhos aqui.

curadoria e textos: tomrocha (twitter e instagram)
jornalista, estrategista de conteúdo e escrevedor de coisas escritas.

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