REDE DE INTRIGAS | As corporações e o sensacionalismo

Rede de Intrigas, filme de Sidney Lumet, uma das mais poderosas e emblemáticas obras do cinema sobre jornalismo e corporações, é fruto de uma época significativa.

Os anos 1970 nos Estados Unidos foram impactantes para a indústria cultural do país, uma marca que duraria para sempre.

A sociedade tinha diversas críticas sociais aos acontecimentos que abalavam a década, como derretimento e estagnação financeira da política, Guerra do Vietnã, o escândalo de Watergate, violência urbana desenfreada, crise do petróleo, agitações sociais por direitos mais igualitários entre negros, mulheres, gays, e acirramento de conflitos da Guerra Fria ao redor do globo.

Na verdade, desde o fim dos anos 60 que a era do Paz & Amor estava brutalmente assassinada.

Todos esses acontecimentos refletiram na indústria cinematográfica, que resultou em socos e chutes criativos que promoveriam uma nova onda de filmes chamada “Nova Hollywood“, feitos por diretores antenados com esses temas. Sidney era um deles.

Dirigido por Lumet em 1976 em cima de um roteiro assinado por Paddy Chayefsky, Rede de Intrigas critica os bastidores de programas televisivos e seu foco central: o lucro.

O filme estava à frente do seu tempo com um tom de sátira cínica e trágica que profetizava uma nova forma de sensacionalismo midiático — Lumet e Paddy já disseram que o filme não é uma sátira, e sim uma reflexão dos tempos atuais — e conversa com linguagens jornalísticas que se convencionou chamar de imprensa amarela.

Tudo isso, amarrado à questão do lucro, também joga luzes sobre a questão do capitalismo que permeia nossa sociedade.

Os conflitos narrativos se iniciam quando o âncora de TV Howard Beale (Peter Finch) é demitido do seu cargo por conta da baixa audiência do seu programa.

A informação é transmitida por seu amigo Max Schumacher (Willian Holden). Numa tentativa equivocada de consolo, Max diz a frase matadora ao colega: “diga que vai cometer suicídio ao vivo”.

O longa-metragem então cria uma narrativa inacreditável de acontecimentos em cima dessa ideia.

Howard Beale vê sua vida girar em 180 graus, pois os índices de audiência do programa voltam a crescer, quando diz a tal frase em seu então derradeiro programa. O jornalista passa a ser conhecido como o “Profeta Louco“, e é readmito na TV.

Mas as influências que promove começam a se mostrar nefastas, quando outros jornalistas e colegas seus da TV entendem como a mecânica da audiência trabalha sob esse tema, e caminhos perigosos começam a ser traçados para todos os envolvidos.

Rede de Intrigas
Howard Beale (Peter Finch) é o protagonista em Rede de Intrigas

Rede de Intrigas
(Network, 1976,
de Sidney Lumet)

VOCÊ É UM HOMEM VELHO, QUE PENSA EM TERMOS DE NAÇÕES E PESSOAS.

Não existem nações. Não existem pessoas. Não existem russos. Não existem árabes. Não existe terceiro mundo. Não existe oeste. Só há um sistema holístico de sistemas! Um vasto e imanente, interligado, interagente, multi-variante, multinacional, domínio de dólares! Dólares petrolíferos, eletro-dólares, multi-dólares. Moeda alemã, moeda japonesa, moeda russa, moeda britânica e moeda dos judeus! É o sistema internacional da moeda corrente que determina a totalidade da vida neste planeta. Esta é a ordem natural das coisas hoje em dia. Esta é a estrutura atômica, sub-atômica e galáctica das coisas hoje em dia.

E você mexeu com as forças primitivas da natureza! E você vai se retratar! Estou me fazendo compreender? Você se levantou em sua televisãozinha de 21 polegadas e praguejou sobre a América e sobre a democracia.
Mas não há América.
Não há democracia.
Só há IBM e ITT, e AT&T e Du Pont, Dow, Union Carbide e Exxon.
Essas são as nações do mundo de hoje.

Sobre o que você acha que os russos falam em seus conselhos de estado? Karl Marx?
Eles saem de suas programações lineares, decisões em cima de teorias estáticas, soluções minimalistas e computam as probabilidades do custo-benefício de suas transações e investimentos, assim como nós. Nós não estamos mais vivendo num mundo de nações e ideologias, Sr. Beale.

O mundo é um colegiado de corporações inexoravelmente determinado pelas leis imutáveis dos negócios.

O mundo é um negócio.
Tem sido desde que o homem saiu da caverna

Rede de Intrigas
Arthur Jensen (Ned Beatty) e o mundo corporativo em Rede de Intrigas

Rede de Intrigas é composto de vários grandes momentos, e esse é um deles, quando dono do conglomerado, Arthur Jensen (Ned Beatty), da fictícia UBS (baseada diretamente nas TVs CBS, NBC e ABC), explica para Beale o que é o meio onde ele vive.

Beale ainda vira um jogo de interesses entre Schumacher e o principal executivo da empresa, Frank Hackett (Robert Duvall), que está prestes a fazer um negócio milionário com árabes magnatas do petróleo.

Em outra grande cena, Beale conclama sua audiência para irem às janelas despejar seu bordão: “eu não aguento mais”.

As falas e diálogos são poderosos em Rede de Intrigas, cujas músicas tocadas vem unicamente de comerciais e de shows de televisão.

Sidney Lumet é um dos cineastas mais dinâmicos da história do cinema, e seu filme rendeu indicações para todos os atores no Oscar, o que explica por si só a qualidade do texto e conversa.

A executiva Diana Christensen (Faye Dunaway) enxerga muitas oportunidades possíveis no auto-suplício que Beale se entrega, e antevê manobras absurdas e grotescas para manter a audiência conquistada pelo “Profeta Louco”.

Olá, eu sou Diana Cristensen, uma racista escravizadora do circo do Tio Sam.
E eu sou Laura Hobbs, uma negra suja e comunista.”

Rede de Intrigas
A composição da assimilação das lutas sociais pelo capitalismo

A hipocrisia dá lugar ao cinismo, como prova de entendimento mútuo de interesses e um acordo tático de ambas as partes para que todos tenham lucro.

“Eu estava na CBS com Ed Murrow em 1951“, diz Beale a seu chefe, em referência a um personagem célebre na imprensa americana, um jornalista de rádio que ousou enfrentar o então senador Joseph McCarthy, o paranoico e perigoso “caçador de comunistas” da América (o filme Boa Noite e Boa Sorte, feito por George Clooney em 2005, é essencial para entender um pouco mais sobre isso).

A coragem de Beale, como isso atesta, é o que move a maior parte da trama de Rede de Intrigas, um dos primeiros ensaios cinematográficos da transformação da vida contemporânea em espetáculo — conceitos ainda presentes em nossa sociedade com exposição massiva em redes sociais e reality shows apelativos e invasivos — e uma banalização do jornalismo que enfiou a categoria e profissão em um buraco negro onde apenas fake news parecem tem saúde financeira pra sair.

O sensacionalismo do
espetáculo da
imprensa amarela e marrom

Rede de Intrigas estreou na mesma época que Todos os Homens do Presidente, outro filme que também apresentava conflitos no exercício do jornalismo.

Apesar de comemorar 45 anos de lançamento em 2021, Rede de Intrigas ainda é considerado extremamente atual dentro de suas considerações críticas.

O termo jornalismo amarelo vem dos primórdios do nascimento das histórias em quadrinhos nos Estados Unidos, da tira Yellow Kid, um menino de traços orientais que vestia uma camiseta amarela, onde eram escritas provocações que não poderiam ser ditas por outros personagens da tira.

Ela era desenhada pelo artista Richard Felton Outcault, e aparecia algumas vezes na revista Truth, durante 1894 e 1895, até que teve sua estréia oficial no jornal New York World em 17 de fevereiro de 1895, inicialmente em preto e branco, até 5 de maio, quando se tornou colorida.

Outcault levou o Yellow Kid para o New York Journal American de William Randolph Hearst em 1897 (um dos maiores empresários da comunicação nos EUA, é ele a figura retratada em Cidadão Kane, de 1941, um dos maiores — se não o maior — filme do cinema), mas a New York World contratou outro artista, George Luks, para continuar a produzir as tiras, dando origem então a duas versões do personagem.

Rede de Intrigas
Diana Christensen (Faye Dunaway) com um jornal que estampa a manchete da demissão de Beale. Os jornais impressos sempre deveram as altas vendas do século XX às tiras em quadrinhos

Ambas eram disputadas a tiros pelos magnatas dos jornais impressos por um único motivo: a gigantesca fama e popularidade de certas tiras de quadrinhos, que carregavam financeiramente os jornais nas costas com vendas estratosféricas — os quadrinhos sempre desempenharam uma função essencial na saúde financeira dos jornais.

Aliás, a briga dos dois jornalões que criou o termo yellow press (“jornalismo amarelo”), a partir da concorrência entre os jornais New York World e The New York Journal pelo Yellow Kid– a disputa nos bastidores foi tão pesada que o amarelo do cobiçado personagem acabou virando sinônimo de publicações sem escrúpulos.

No Brasil, o termo jornalismo amarelo é conhecido como jornalismo marrom, termo cunhado pelo jornalista Alberto Dines.

O conceito apareceu pela primeira vez no jornal impresso Diário da Noite, em 1960, por conta de uma notícia de suicídio, publicada com sensacionalismo por uma revista chamada Escândalo.

O texto fazia críticas à reportagem da revista, e usava o termo imprensa amarela, que foi alterada para marrom, por acharem que cairia melhor como cor de algo ruim.

Seja amarelo ou marrom, é disso que se trata Rede de Intrigas. Sidney Lumet filmou o começo de seu longa com luzes baixas, como se fosse um documentário, mas com a progressão da narrativa, tudo fica mais rocambolesco e gritante, numa intenção de mostrar a manipulação da mídia em si — a mudança de linguagem deveria ser inclusive técnica.

O sensacionalismo ecumênico exercido pelos jornalistas no filme de Rede de Intrigas era o começo da bíblia da globalização.

O capitalismo tardio

Rede de Intrigas
O centro do dinheiro

Se falarmos de globalização, é preciso falar de capitalismo. Melhor desenvolvido pelo economista marxista belga Ernest Mandel em 1972 — um ano antes de Rede de Intrigas estrear nas telonas –, em sua tese Der Spätkapitalismus – Versuch einer marxistischen Erklärung (“Capitalismo tardio – uma tentativa de explicação marxista“, em uma tradução livre), defendida na obtenção do título de PhD pela Universidade Livre de Berlim, o termo “capitalismo tardio” versa sobre a saturação da produção e a automatização do trabalho humano.

É como o avanço do capitalismo, numa nova fase de importância direcionado ao acúmulo de capital, sublima as limitações físicas do mercado e o esgotamento de recursos naturais, e olha para os demais setores da sociedade, potenciais alvos a se tornar mercadoria.

Logo, áreas como educação, a mídia e a cultura ficam nessa mira, como foco de interesse para uma expansão insustentável de crédito ao consumo.

O capitalismo tardio também teria como elementos distintivos a expansão das grandes corporações multinacionais, a globalização dos mercados e do trabalho, o consumo de massa e a intensificação dos fluxos internacionais do capital.

Suas origens vem da expressão “spätkapitalismus“, usada pela primeira vez por Werner Sombart em Der Moderne Kapitalismus (livro de 1902), na qual distinguia três fases do capitalismo: o capitalismo primitivo, o auge do capitalismo e o capitalismo tardio.

As três fases do capitalismo: o capitalismo primitivo, o auge do capitalismo e o capitalismo tardio

O jornalismo amarelo/marrom referenciado está imbuído de capitalismo tardio — veículos sensacionalistas que buscam elevados níveis de audiência e vendagem por meio de exploração de miséria alheia, querem mais lucros com fatos e acontecimentos que abasteçam esses escândalos, não importando nem que sejam criminosos

A razão é que o noticiário comum e ordinário já não mais satisfaz a contento as grandes massas.

No Brasil

Sensacionalismo com a indústria cultural para mostrar que conteúdo emocional é o volante mais firme para conduzir as massas e faturar em cima, é o que acontece desde quase sempre no Brasil.

Quase tudo que se consome de informação nesse país, algo como 70%, pertence a seis famílias: Marinho (Organizações Globo), Frias (Folha de S. Paulo, UOL), Mesquita (O Estado de S.Paulo), Saad (Bandeirantes), Abravanel (SBT) e Civita (Abril).

Nossos cinco maiores bancos (Itaú, Bradesco, Santander, Caixa Econômica e Banco do Brasil) controlam 82% dos depósitos do país.

Se somarmos o resto do setor financeiro, banco de investimento e fundos de pensão, temos aí o grande capitalista do Brasil e do mundo.

Se o principal produto do capitalismo da primeira revolução industrial era o tecido de algodão, hoje a principal mercadoria do capitalismo é o dinheiro, artefato que se transforma em mais dinheiro graças a uma alquimia financeira, espantoso para quem não entende nada da mecânica da grana preta.

O dinheiro acumulado, reproduzido e investido por essas empresas é o verdadeiro centro dinâmico do capitalismo contemporâneo.

Os bancos começam controlando as empresas por meio de empréstimos.
Se um empresário quer construir uma nova fábrica ou lançar um novo jornal, ele precisa pegar um empréstimo de grande volume junto a um banco.
E, como sabemos, se dinheiro no bolso é liberdade, boleto embaixo da porta é servidão.

Essa leitura de fatos é melhor explicada nesta excelente matéria do Intercept Brasil.

3% de vocês leem livros, 15% leem jornais. A metade da população já não conhece nada que não saia desse tubo (a televisão)”, diz Beale em um dos episódios do show que apresenta.

Substitua o tubo que ele referenciou (o de TVs antigas) pelo mais famoso, o YouTube, e todos saberemos o buraco no qual todos estamos.
Substitua as corporações citadas por Arthur Jensen pelas atuais big techsFacebook, Google, Apple, Amazon –, e todos saberemos o buraco no qual todos estamos.

Rede de Intrigas
e uma rede de prestígio

Poster de Rede de Intrigas com a publicidade do prestígio de todas as suas indicações ao Oscar

O diretor americano Sidney Lumet é um dos mestres do cinema, com vários filmes premiados no currículo — Serpico (1973), Um Dia de Cão (1975), 12 Homens e Uma Sentença (1957), Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto (2007) são apenas alguns exemplos. Seis vezes indicados a Melhor Diretor no Oscar, Sidney não levou nenhum prêmio, mas seus trabalhos sim.

Em Rede de Intrigas, que teve 10 indicações ao Oscar, a interpretação de Peter Finch lhe deu um prêmio — póstumo, já que o ator morreu vítima de um ataque cardíaco, um mês antes da festa de entrega do prêmio. Ele precedeu Heath Ledger em Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008).

O filme de Lumet também deu um Oscar de Melhor Atriz para Faye Dunaway, pelo papel de Diana Christensen, executiva da TV em que o protagonista trabalha, e um de Melhor Atriz Coadjuvante para Beatrice Straight pelo seu papel de Louise Schumacher (uma das atuações mais curtas da história do cinema, com 5 minutos e 2 segundos de fala no filme) — as duas atrizes foram as primeiras a ganhar os prêmios de atuação por um mesmo filme desde Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966).

Aliás, Rede de Intrigas foi um dos poucos filmes a ganhar 3 Oscar de atuação — apenas outro conseguiu tal feito, com Uma Rua Chamada Pecado (1951).

Até 2018,  o longa de Lumet foi o único filme que recebeu nomeações para os cinco principais prêmios de atuação do Oscar.

Faye Dunaway como Diana Christensen

O Oscar de Melhor Roteiro foi para Paddy Chayefsky, mas Lumet ficou sem o seu pois Rede de Intrigas perdeu de Melhor Filme para Rocky – Um Lutador, de Sylvester Stallonne, situação que deixou Lumet furioso.

O prêmio de Melhor Roteiro no Oscar a Paddy Chayefsky veio na sequencia de outros dois, Marty (1955) e Hospital (1971).

Finch, ao ler o roteiro, fez de tudo para conseguir o papel, inclusive pagar ele mesmo a passagem de avião para fazer o teste. O sotaque australiano era um impedimento para Lumet aceitar, mas quando ele ouviu uma gravação de Finch, sem sotaque nenhum, aceitou o ator.

Henry Fonda recusou por ser “histérico” demais. Walter Cronkite e John Chancellor forma considerados, mas as negociações não evoluíram. A filha de Cronkite, Kathy Cronkite, pegou o papel da radical esquerdista Mary Ann Gifford, uma personagem vagamente baseada em Patricia Hearst.

Rede de Intrigas
Faye Dunaway e seu Oscar de Melhor Atriz. Foto de Terry O’Neill, feita no Beverly Hills Hotel às 6h30, após a cerimônia

Dunaway elogiou Lumet e disse que ele foi um dos cineastas mais talentoso com que já trabalhou — ela não mudava uma fala do roteiro, de tanto que gostava.

Foi um papel duríssimo pra ela, que não deveria demonstrar emoção, uma rocha jornalística em cena, sem vulnerabilidade nenhuma, uma jornalista sangue-frio por completo.

A imagem dela, pós-festa de celebração do Oscar, à beira da piscina, é uma das mais emblemáticas da indústria do entretenimento. A foto é de Terry O’Neill, feita no Beverly Hills Hotel às 6h30.

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