Um Dia de Fúria (1993), dirigido por Joel Schumacher e estrelado por Michael Douglas, retrata a história de um homem comum que, em meio a uma série de frustrações e injustiças cotidianas, perde o controle e se entrega a atos de violência extrema.
A narrativa intriga e questiona a natureza social do homem, levantando reflexões sobre os aspectos sombrios da sociedade moderna. Mas será que esse homem realmente é comum?
O longa pode ser lido como uma comédia de humor negro sobre os pequenos aborrecimentos da vida, protagonizado por um homem branco raivoso, que apresenta sua violência como uma recompensa amparada por intransigentes caricaturas de uma maioria oprimida em uma era do politicamente correto, fazendo valer os estereótipos de todos os espectros sociais.
Mas não é o caso. Esse homem é resultado do tempo que foi escrito — a década de 1990 — e absolutamente todos são acossados por ele, como os velhos ricos no campo de golfe podem comprovar, inclusive algum deles implicitamente morto.
O longa-metragem de Schumacher apresenta como protagonista William Foster, um divorciado e desempregado do Departamento de Defesa dos Estados Unidos em uma jornada violenta pela cidade de Los Angeles, tentando alcançar a casa de sua ex-mulher a tempo para a festa de aniversário de sua filha.
Em seu caminho estão sua insatisfação pessoal com a vida, a pobreza, a economia e o capitalismo. Tudo é motivo para a revolta de Foster: comerciantes estrangeiros e nazistas, gangues de rua, empregados de fast food e rodoviários, ricos em campo de golfe, etc.
Apenas Martin Prendergast (Robert Duvall), um sargento do Departamento de Polícia de Los Angeles, está ciente do perigo que Foster representa, depois de deduções muito inteligentes, sendo que ele próprio enfrenta suas próprias frustrações — prestes a se aposentar e com uma mulher difícil em casa, o que serve de um tipo (não muito) de contraponto para Foster.
Mas William Foster não se sente um vilão. Ele construía mísseis, mas não sabe manejar armas de fogo, tampouco uma faca. Mas ele agora era o próprio míssil. É por isso que ele pergunta ao policial se era o vilão, e fica chocado ao receber uma resposta positiva.
Sua trajetória o leva para a ruína, quando entende a hipocrisia de suas ações. Sua vida estava diferente do que ele considerava ideal, e na tentativa de mudar, se dá conta que é impossível retornar.
William Foster está em ponto sem volta, pois é mais fácil terminar o que começou do que retornar ao início. Podemos cravar esse momento quando ele comete seu primeiro homicídio, na culminação de uma longa trilha de pequenas violências em reação a outras.
Joel Schumacher constrói uma armadilha intelectual para o espectador, já que o protagonista serve de correia de transmissão moral da gente: aquele dia comum em que tudo dá errado, onde queremos extravasar em tudo e todos.
William na superfície é o padrão de cidadão comum: trabalhador e pai de família. Mas Um Dia de Fúria, cujo nome original é Falling Down (“caindo”, em tradução livre) nos leva a mais fundo e pra baixo junto com o protagonista a cada ato de violência que ele comete.
Um Dia de Fúria
(Falling Down, 1993, de Joel Schumacher)
Tudo começa com closes em Dia de Fúria. A estética visual usa uma paleta de cores específica para criar suas atmosferas visuais e a trilha sonora intensa e a edição rápida contribuem para criar uma sensação de tensão e desconforto.
A câmera de Schumacher vai na boca, rosto, tudo muito apertado, tudo muito suado. O calor parece particularmente de matar nesse dia qualquer em Los Angeles, em um engarrafamento rotineiro de cidade grande.
A direção de arte usa o vermelho e o laranja para além do calor e ressalta o perigo urbano, sendo que no terceiro ato, o roxo aparece para denotar a falta de sanidade de William. O roteiro e a direção conscientemente fazem o máximo possível para adiar a apresentação do nome do personagem — a narrativa está interessada nos tipos de pessoas, e nem tanto em si como indivíduos. Tanto que a maioria dos personagens não tem nome revelado na trama.
Quem é esse homem que vemos de primeira? Estamos vendo um sujeito ligado ao Departamento de Defesa? — a placa de seu carro é personalizada: D-FENS, (corruptela para “defesa”, em inglês). Parado no trânsito, esse homem não parece ter o poder que costuma ter. Uma mosca fica enchendo o saco, ele começa a ficar sem ar, seu ouvido é martelado por notícias de acidentes no rádio: desemprego, caos urbano, buzina, obras, olhares.
Tudo é um sufoco para esse homem, cuja identidade demora a ser revelada para nós. Ele não aguenta mais e deixa o carro abandonado, para desespero de quem estava de carro atrás dele no trânsito.
Um policial rodoviário vai até o carro abandonado devido a outro motorista berrando. Martin Prendergast (Robert Duvall), um detetive de LA, prestes a se aposentar, estava por perto, também preso no trânsito, e também ajuda a deslocar o carro abandonado. A placa D-FENS chama a atenção de Prendergast.
O homem desconhecido, depois de deixar o carro, tenta ligar de um orelhão para uma mulher, sem sucesso. Sem conseguir o que deseja, começa a perambular pela cidade.
Na procura de algo para se refrescar do calor, encontra uma mercadinho, e a simples compra de um refrigerante nos mostra com quem realmente estamos lidando. Ele simplesmente não aceita o preço da latinha de Coca-Cola (na época a marca passou por um rebranding e se chamava Coke. É, pois é).
Na explosão de raiva em que se vê vítima, o dono da mercearia, Lee (Michael Paul Chan), pensa se tratar de um assalto, o que irrita ainda mais o homem, que destrói as mercadorias do local. No fim, ele paga pelo refrigerante, obrigando o dono a aceitar o preço que estipulou, e vai embora, levando o taco de beisebol do comerciante.
A narrativa de Joel Schumacher então divide nossa atenção entre esse homem raivoso e Prendergast, um homem muito amoroso e esperto, mas que tem uma relação difícil com a esposa, Amanda (Tuesday Weld), uma mulher muito dependente emocionalmente dele.
O homem agora decide descansar em cima de uma pedra em um terreno baldio. E é acossado por dois membros de uma gangue local. Ele tenta sair na conversa, mas não consegue. E, surpreendentemente, luta contra os dois marginais e se dá bem, inclusive pegando a faca de um deles.
Corta para a delegacia, onde vemos Prendergast atendendo o sr. Lee. O fato do cara ter pago a conta e ter levado o taco intriga o policial. Ele é muito amigo da detetive Sandra Torres (Rachel Ticotin), sua parceira, que tenta ajudá-lo na difícil transição de aposentadoria. Quem está feliz com isso é o Capitão Yardley (Raymond J. Barry), que antagoniza com Prendergast por achar ele frouxo e por nunca dizer palavrão.
Corta de novo para o homem, que pela 2ª vez tenta ligar para a mulher. É sua ex-esposa, que se chama Beth (Barbara Hershey). Eles estão separados há um bom tempo. Dessa vez ela atende. E ficamos sabendo que ele não paga pensão, por isso a casa ficou com ela. Ficamos sabendo também que é aniversário de Adele, a filha deles (por isso a insistência de ligar). E não, a moça não permite que ele a veja.
Há um paralelo aqui: a celebração do nascimento enquanto passagem e uma jornada de morte de encontro a ela.
Aturdido pela ligação, o homem nem nota o ataque dos marginais querendo revanche pela agressão de antes. Os dois criminosos surgem com mais bandidos, todos armados até os dentes, e metralham o lugar em que ele está, sem conseguir acertar o cara — o que não significa que alguém não tenha sido baleado (e com certeza morto).
Não bastante isso, agora é ele quem está armado até os dentes com uma bolsa cheia de armas, e demonstra seu novo poder atirando sem piedade na perna de um dos bandidos.
A insistência do seu ex em ligar para casa faz Beth chamar a polícia, que na burocrática e longa lista de perguntas para tentar entender o que está acontecendo, nos faz saber que o homem nunca bateu na mulher, nem mesmo cometeu outro tipo de violência contra elas. O filme faz questão de mostrar o desconforto dela e do policial com isso.
O homem está perambulando novamente pela cidade, andando em meio a mendigos pedindo comida, desempregados, pedintes, trambiqueiros. A namorada de um dos membros da gangue presta depoimento na delegacia, e Prendergast faz uma dedução de o homem envolvido é o mesmo homem que atacou o sr. Lee.
Em uma das cenas mais emblemáticas, o homem vai em um fast food e quer o prato do café da manhã, servido até às 11h30. Como é 11h33, lhe recusam o pedido. Ele saca uma arma e faz valer sua vontade.
A cena é bem construída e até cômica, já que o cara não parece manusear bem o armamento e fica sem graça de ter que usá-la. Ele obriga o gerente a fazer o lanche. Interessante notar que o homem é alguém que trabalha na indústria da violência mas ele mesmo não está familiarizado com suas ferramentas.
Depois que o ocorrido é comunicado para a polícia, Prendergast descobre que o atirador do fast food pagou pelo lanche, o que liga o alerta do policial mais uma vez.
Em uma cena aparentemente simples, vemos o homem observar um manifestante solitário, alguém “economicamente não-viável” como ele diz em um cartaz, protestando contra a negativa de um empréstimo de uma empresa financeira que lhe recusou.
Ele veste as mesmas roupas que o protagonista, o que talvez explique a empatia gerada na cena. Na mesma cena, ele compra um brinquedo de presente para a filha — aqueles globos de vidro com um unicórnio em meio a neve.
O roteiro agora conduz o cara para uma loja de armas, cujo dono, Nick (Frederic Forrest), não tarda a se revelar um nazista. Ele antagoniza dois moços que entraram no local, por julgar que os dois são gays (e eles são). O comerciante tenta jogar a conversa para o protagonista, querendo sua concordância também.
O homem é confundido com um vigilante pelo nazista depois que Sandra inadvertidamente entra na loja procurando o maníaco das armas. Nick já tinha ouvido sobre os ataques no rádio, saca a descrição da policial e desconversa sobre seu paradeiro. Ao mostrar seu arsenal particular para ele, vemos um artefato terrível entre tudo: um pote de gás Zyklon-B vazio, provavelmente usado nas câmaras de gás nos campos de concentração nazistas durantes a Segunda Guerra Mundial. Esse parece ser o limite para nosso protagonista.
Na briga entre os dois, o presente que o homem tinha comprado antes para Adele é quebrado. Sem reação, o nazista o domina, e em uma cena extremamente homoerótica, praticamente ia ser violentado. Mas o homem consegue reverter mais essa situação, usando a faca que tinha pego do marginal, e se apoderando da arma do nazista. E enfim comete seu primeiro homicídio.
Prendergast visita o sr. Lee com Sandra e vê um outdoor que já tinha visto antes: de quando estava preso no trânsito horas atrás e ajudou a afastar um carro. E assim ele achar o carro com placa D-FENS de novo. E agora eles (e nós) sabemos com quem estamos lidando.
William Foster, que voltou a morar com a mãe depois do divórcio (em um quarto metodicamente arrumado), projetava mísseis de longo alcance para o Departamento de Defesa, e está desempregado há 1 mês, o que deixa a mãe, interpretada por Lois Smith, intrigada, já que ele aparentemente continuou com a sua rotina de sair de manhã trabalhar e retornar no fim da tarde.
Foster, agora trajado de militar (roupa que pegou na loja de armas, onde se apossou de mais armas inclusive), invade um campo de golfe, e praticamente mata um velho rico do coração ao se exaltar com as benesses que a riqueza permite, como a construção de tal local em detrimento de um parque público acessível para todos.
O poder bélico nas mãos dele encontra o ápice quando decide usar uma bazuca para explodir uma obra rodoviária. A cegueira de Foster alcança níveis perigosos quando acaba por ameaçar uma família que aproveitava uma mansão na ausência dos donos. Enfim, ele alcança a casa, mas a ex-mulher e filha conseguem escapar a tempo dele.
Enquanto isso, William põe vídeos antigos da família na sala no VHS. O longa não explica uma razão crucial: por qual razão Beth e Adele ainda ficaram perto da casa, que é nos arredores de um cais? Porque quando William sai da casa para procurar por elas, ele as encontra com certa facilidade. Esse talvez seja um dos únicos furo de roteiro de Um Dia de Fúria.
De qualquer maneira, cabe a Pendergast resolver a situação, no que parece ser um impasse mexicano terrível, e que por mais anticlimático possa ser, é funcional para toda a temática do filme.
A violência é resolvida na conversa.
Ainda que não seja o final que pensávamos.
História além da fúria
O roteirista de Um Dia de Fúria é Ebbe Roe Smith, e foi o 1º roteiro que ele escreveu para o cinema. Ele tinha escrito um telefilme no mesmo ano, o drama Partners, dirigido por Peter Wellers (sim, o próprio ator e protagonista de Robocop) e uma comédia chamada Chamando Carro 54 (1994). Smith nunca mais escreveu nada, e se dedicou a carreira de ator, fazendo pequenos papéis em quase 50 produções.
Quem de fato definiu mesmo Um Dia de Fúria foi o diretor Joel Schumacher e ator Michael Douglas.
Nascido em Nova York, o cineasta Joel Schumacher (falecido em 2020), começou sua carreira na moda, até começar a trabalhar como figurinista em O Dorminhoco (1973), de Woody Allen. Seu primeiro roteiro para o cinema foi para o musical Sparkle (1976), e a primeira direção nas telonas com seu crédito ocorreu na aventura cômica A Incrível Mulher que Encolheu (1981), com Lily Tomlin, mas antes já tinha dirigido o telefilme Virginia Hill (1974).
Seu primeiro “grande” filme foi O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas (1985), uma deliciosa comédia adolescente com vários astros da época (que de adolescentes não tinha nada): Demi Moore, Emilio Estevez, Rob Lowe, Andrew McCarthy, Judd Nelson, Ally Sheedy e Andie MacDowell.
Logo em seguida emplacou seu primeiro sucesso, o terror juvenil Os Garotos Perdidos (1987), com Kiefer Sutherland, Jami Gertz, Corey Haim, Corey Feldman, Jason Patric, Chance Michael Corbitt, Brooke McCarter, Alex Winter e Billy Wirth, um clássico da TV brasileira.
Fez também o suspense Linha Mortal (1990), com Julia Roberts e Sutherland, seguido do drama romântico Tudo por Amor (1991), de novo com Julia. Emplacou o prestigiado O Cliente (1994), com Susan Sarandon, que foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz pelo papel (perdeu para Jessica Lange, por Céu Azul).
Dirigiu Batman Eternamente (1995), estrelado por Val Kilmer, que funciona como estilização moderada do bat-seriado camp dos anos 1960, com Tempo de Matar (1996) entre a sequência, e Batman & Robin (1997), uma hiper-interpretação do mesmo bat-seriado, mas que perde a mão no kitsch e auto homoerotismo — George Clooney, o Batman da vez, interpretou o personagem como se ele fosse gay, turbinado pelas cenas e closes em bat-mamilos e bat-bundas, um dos piores filmes de super-heróis de todos os tempos — Joel e George já pediram desculpas pelo filme diversas vezes.
Joel emplacou diversos suspenses sombrios de sucesso, como 8mm: Oito Milímetros (1999), com Nicolas Cage, no mundo pervertido e assassino dos filmes snuff; o longa de tirar o fôlego Por um Fio (2002), com Colin Farrel e Sutherland, e Número 23 (2007), um dos poucos filmes “sérios” com Jim Carrey.
Schumacher também dirigiu vários videoclipes de artistas como Seal, Bush e INXS — mesmo de depois de Um Dia de Fúria, dirigiu mais um, do Lenny Kravitz. O diretor também esteve no comando dos dois primeiros episódios de House of Cards em 2013 (01×05 e 01×06).
Como se vê, Joel Schumacher dominava com maestria diferentes tipos de cinema, e soube retirar do roteiro de Smith tudo que precisava para fazer um filme inesquecível.
Um Dia de Fúria concorreu a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1993, cujo ganhadores foram Adeus, Minha Concunbina, de Chen Kaige, e O Piano, de Jane Champion. Mas seu filme causa impacto até hoje.
Recentemente, Um Dia de Fúria ficou de novo no radar de Cannes, que deu um prêmio para Michael Douglas por seu papel no longa. Ele recebeu a Palma de Ouro Honorária no 76º Festival de Cinema de Cannes, que “reconheceu sua brilhante carreira e seu compromisso com o cinema“. A cerimônia aconteceu em 16 de maio de 2023.
Roger Ebert, um dos maiores críticos que o cinema dos EUA já teve, escreveu o seguinte a respeito de Um Dia de Fúria: “O que é fascinante sobre o personagem de Douglas, como está escrito e interpretado, é o núcleo de tristeza em sua alma. Mas não há nenhuma alegria em sua fúria, não há liberação. Ele parece cansado e confuso, e em suas ações, ele inconscientemente segue os scripts que ele pode ter aprendido com os filmes, ou no noticiário, onde outros desajustados frustrados desabafam sua raiva em pessoas inocentes.” Isso se liga a uma cena onde Foster destrói uma autoestrada em construção (permanente ao que parece) e crianças relativizam a destruição acreditando ser gravações de um filme.
Michael Douglas já tinha apresentado 4 filmes na história do festival: Síndrome da China (1979), de James Bridges; Instinto Selvagem (1992), de Paul Verhoeven, um longa que ele próprio estrelou antes de Um Dia de Fúria; o próprio Um Dia de Fúria; e Minha Vida com Liberace (2013), de Steven Soderbergh.
Seu pai, Kirk Douglas, presidiu o júri do festival em 1980. Vale lembrar que Michael Douglas ganhou o Oscar de Melhor Ator em 1988, pelo papel do corretor da bolsa de Nova York, Gordon Gekko, em Wall Street (1987), de Oliver Stone. Michael também foi premiado como produtor pelo filme Um Estranho no Ninho (1975), de Milos Forman, que ganhou o Oscar de Melhor Filme em 1976.
O ator já tem 64 trabalhos no audiovisual, a maioria imensa nos cinemas, e segue ativo até hoje, com o mais recente Homem-Formiga 3 – Quantumania (2023), um dos mais recentes filmes do Marvel Studios, franquia a qual ele está desde 2015, com o primeiro filme do herói.
Um Dia de Fúria se tornou o filme favorito de Michael Douglas, e seu pai, o ator Kirk Douglas, também achava o mesmo. “Ele interpretou de forma brilhante. O personagem de Michael não é o ‘herói’ ou ‘mais novo ícone urbano’. Ele é o vilão e a vítima, vemos muitos elementos de nossa sociedade que contribuíram para a sua loucura. Nós até temos pena dele. Mas o filme nunca tolera suas ações“.
E Michael quase que não pega o papel. Já fazia um tempo que ele queria dar uma pausa no cinema e passar mais um tempo com a família, mas por insistência de Schumacher, seu amigo de longa data, concordou em ler o roteiro.
Douglas achou o melhor que já leu na vida, e imediatamente aceitou o papel. Aceitou até ser remunerado menos por isso, já que seu cachê estava elevado já na época e o filme não tinha um orçamento tão grande assim.
Outras estrela no elenco com certeza era Robert Duvall, um ator indicado nada menos que 7 vezes ao Oscar, sendo que ganhou de Melhor Ator por A Força do Carinho (1983), de Bruce Berenford. Mas sua primeira indicação foi por Melhor Ator Coadjuvante por O Poderoso Chefão (1972), quando perdeu para Joel Grey, por Cabaret. É sério.
De novo concorreu na mesma categoria por Apocalypse Now (1979), mas Melvyn Douglas, de Bem-Vindo Mr. Chance, levou. Putz. Foi indicado de novo em Melhor Ator por O Grande Santini – O Dom da Fúria (1980), mas perdeu (dessa vez com razão) para Robert De Niro por Touro Indomável.
Ele ainda concorreu mais uma vez nessa categoria por O Apóstolo (1997), quando perdeu (de novo com razão) para Jack Nicholson em Melhor É Impossível. Duvall tornou a concorreu por Melhor Ator Coadjuvante por A Qualquer Preço (1998), mas perdeu para James Coburn por Affliction, e, de novo, na mesma categoria, por O Juiz (2014), mas perdeu (mais uma vez, com razão) para J.K. Simmons, por Whiplash.
Em certo momento do filme vemos um mural com um Jesus hispânico desenhado, arte vista também no filme As Cores da Violência (1988), também estrelado por Robert Duvall, interpretando um policial de Los Angeles. Falando em Duvall, ele e Frederic Forrest (o nazista) e James Keane (um dos policiais de LA) aparecem em Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola.
O ator Vondie Curtis-Hall, que interpreta o homem “economicamente não-viável”, mesmo em uma pequena participação, é um dos papéis preferidos dele no cinema, e um personagem ele gostaria que o público lhe reconhecesse, segundo o jornalista Roberto Sadovski em uma matéria do UOL, por conta da morte de Schumacher.
“Aquele filme nos entende, cara“, disse o ator para o jornalista. “Entende o sistema, entende tudo que está errado e entende que, cedo ou tarde, alguém vai ceder à pressão.”
Violência social
Jean-Jacques Rousseau (1721-1778) foi um dos principais filósofos do Iluminismo e suas ideias influenciaram profundamente a filosofia política e social. Em sua obra Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1754) e O Contrato Social (1762), Rousseau explorou a natureza humana e a sociedade, argumentando que o homem nasce naturalmente bom e livre, mas é corrompido pela sociedade e suas instituições.
Um Dia de Fúria pode ser interpretado como uma representação contemporânea dos conceitos de Rousseau sobre a sociedade e a natureza humana. William Foster personifica a desilusão e a alienação, que são características comuns das concepções rousseaunianas. O filme o retrata como um homem comum, confrontado com situações cotidianas frustrantes, como engarrafamentos, serviços ineficientes e falta de respeito.
Essas experiências acumulam-se ao longo do dia, levando-o ao limite de sua paciência e racionalidade. Nesse sentido, Um Dia de Fúria aborda a noção rousseauaniana de que a sociedade moderna pode corromper o indivíduo e perturbar seu equilíbrio emocional.
A explosão de violência de Foster é um reflexo da tensão acumulada e da insatisfação. Ela o torna um agente de desordem, desafiando as normas estabelecidas, numa tentativa de recuperar sua dignidade perdida.
Durante os anos 1990, houve uma tendência no cinema de explorar questões relacionadas à alienação, frustração e desespero da vida urbana. Muitos filmes retratavam personagens à margem da sociedade, lutando contra suas próprias frustrações e as injustiças do mundo ao seu redor. Essas narrativas frequentemente mostravam indivíduos comuns sendo empurrados para o limite, resultando em explosões de violência.
Outros filmes já tinham feito isso, como Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese, e outros iriam se aprofundar na questão, como Clube da Luta (1999), de David Fincher.
Na década noventista, os Estados Unidos passaram por uma série de mudanças econômicas significativas. O país enfrentava desafios relacionados à globalização, desindustrialização e crescimento das desigualdades econômicas.
Os avanços tecnológicos e a reestruturação industrial resultaram em altos índices de desemprego, especialmente nas áreas urbanas. Além disso, a polarização da riqueza aumentou, criando uma crescente disparidade entre os mais ricos e os mais pobres.
Foster é apresentado como um indivíduo que se tornou “economicamente não-viável” devido a uma série de fatores, como o desemprego, a alienação social e a perda de oportunidades econômicas. Ele se sente descartado pela sociedade, incapaz de se integrar ao sistema e de encontrar seu lugar na economia em constante mudança. Ele é um retrato daqueles que se sentiam excluídos e impotentes diante das transformações econômicas e sociais da época.
E a violência e a raiva de Foster podem ser interpretadas como uma resposta desesperada às condições socioeconômicas desfavoráveis em que ele se encontra.
Rousseau argumentava que a sociedade e suas instituições corrompem a natureza originalmente boa do homem. Ele acreditava que a propriedade privada, a desigualdade e a competição criavam divisões e conflitos, minando a harmonia social.
Em Um Dia de Fúria, o protagonista é um exemplo dessa corrupção. Ao explorar a trajetória de Foster, o filme questiona a ideia de que o homem é naturalmente pacífico e questiona se a violência é uma resposta inevitável à opressão social.
Rousseau, por sua vez, defendia que o retorno a um estado mais natural e igualitário poderia reverter essa corrupção. Um Dia de Fúria não oferece uma solução direta: ele levanta questões importantes sobre a natureza social do homem, destacando a necessidade de uma reflexão crítica sobre a sociedade em que vivemos.
Um Dia de Fúria e as ideias de Rousseau sobre a natureza social do homem convergem em sua crítica à sociedade moderna e à alienação do indivíduo, e embora o filme não ofereça respostas definitivas, ele nos convida a refletir sobre a importância de uma sociedade mais justa e conectada.
/ UM DIA DE FÚRIA NA MÚSICA. A música Man on the Edge, do Iron Maiden, presente no disco The X-Factor (1995), é baseada no filme Um Dia de Fúria. Foi o primeiro single lançado da banda com Blaze Bayley no vocal. Uma versão ao vivo desta canção de 1999 é apresentada no lançamento do single de 2000 The Wicker Man, com Bruce Dickinson no vocal.
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