FUGA DO INFERNO | Raul Julia e um thriller da Orion Pictures e HBO em Cuba

Fuga do Inferno (Florida Straits) é um telefilme de ação lançado em 1986, estrelado por Raul Julia e dirigido por Mike Hodges. Embora seja um thriller até que interessante — e prejudicado pelo roteiro inchado –, a obra possui um contexto cultural mais amplo, abordando as problemáticas e tensões entre os Estados Unidos e Cuba.

Ao explorar essa conexão, Fuga do Inferno revela uma parte da narrativa histórica e política que envolve as relações bilaterais entre esses dois países, e entrega um filme bem mais interessante do que aparenta, já que enquanto produto ele é bem sofrível.

Fuga do Inferno
Um dos posteres promocionais de Fuga do Inferno. Você reconhece as feições de alguém aí?

Com produção da Orion Pictures e HBO (emissora de televisão americana que se provaria fonte de criatividade e inovação com seus futuros seriados), Fuga do Inferno é estrelado, além de Raul, por Fred Ward, Daniel Jenkins, Antonio Fargas e outros. Raul é o primeiro nome a ser creditado em tela, dada a importância já obtida enquanto profissional de atuação no cinema.

Fuga do Inferno
Raul Julia é um dos protagonistas e o primeiro a ser creditado

Ele é Carlos Jayne, um ex-prisioneiro político de Cuba, mantido atrás das grades por 20 anos desde o fracasso da Invasão da Baía dos Porcos. Apesar de sair de um jeito pobre do navio que o trouxe ao exílio aos EUA, ele logo se recompõe, e como figura altiva, inicia sua longa jornada para voltar ao lugar de onde partiu.

Fuga do Inferno

“Lucky” Boone (Fred Ward) opera um barco no litoral da Florida, o The White Witch (“A Bruxa Branca”). Ele vive no meio de trambiqueiros, contrabandistas e outras figuras do submundo, e acaba uma amizade forçada com o habilidoso jogador de cartas e fanfarrão Mac (Daniel Jenkins) em um jogo de pôquer, e acabam por fazer uma parceria quando Lucky fica sem dinheiro para pagar o jogo.

Fuga do Inferno
A outra estrela na produção é Fred Ward

É quando surge Carlos, que tem 2 razões para querer voltar para Cuba: uma é reencontrar um antigo caso amoroso, Carmen (Ilka Tanya Payán). E a outra é financeira: na tentativa de invasão, ele era piloto de um avião (DC-3), carregado de ouro, que acabou sendo jogado em um determinado ponto. Para convencer Boone e Mac a levá-lo até Cuba, ele promete dividir o ouro com eles.

Fuga do Inferno

Assim, o trio tenta a sorte em uma “invasão” em Cuba. O andamento de Fuga do Inferno é lento, e com o filme com pouco mais de 1h30, eles ainda não tinham chegando na ilha aos 30 minutos de filme.

Tudo piora quando eles são interceptados por militares com sede de sangue, especialmente seu líder, “El Gato Negro” (Antonio Fargas). A espiral continua com a incerteza da localização do ouro e a certeza infeliz que Carlos tinha de reencontrar uma ex 20 anos depois. Será que ela o esperaria todo esse tempo mesmo? Por isso não surpreende o final de Fuga do Inferno. Não havia outra saída para ele.

A Orion produziu esse filme para HBO, e ela já era uma velha conhecida do cinema, com ótimos longas no catálogo, como Platoon (lançado no mesmo ano que Fuga do Inferno), além de A Vida de Brian (1979), Excalibur (1981), Rambo – Programado Para Matar (1982), Exterminador do Futuro (1984), os filmes do Robocop (1987-1990-1993), os filmes de Bill & Ted (1989-1991), O Silêncio dos Inocentes (1991), Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994) e muitos outros.

Fuga do Inferno
Mais um poster de Fuga do Inferno, esse com uma arte mais condizente com as feições dos protagonistas

O blog já tinha falado um pouco de Fred Ward por conta de sua participação no filme O Ataque dos Vermes Malditos (1990), com quem ele divide o protagonismo com Kevin Bacon.

Fred Ward e Kevin Bacon

O ATAQUE DOS VERMES MALDITOS | 30 anos de tremores do terror de rir

Com uma carreira que durou 4 décadas, fez sua estreia no cinema americano interpretando um cowboy em Hearts of the West (1975), e ficou mais conhecido quando filmou Alcatraz – Fuga Impossível (1979), um clássico dirigido por Don Siegel, com Clint Eastwood, mesmo ano que fez 2 episódios do seriado O Incrível Hulk.

O primeiro filme de prestígio de Fred foi Os Eleitos: Onde o Futuro Começa (1983), dirigido por Phillip Kauffman, o que deu estofo para ele ser chamado para ser o protagonista de Remo – Desarmado e Perigoso (1985), onde interpreta um agente especial de uma organização secreta dotado de habilidades incríveis.

A intenção dos produtores de Remo, baseada na série literária The Destroyer, criada por Warren Murphy e Richard Sapir em 1971, e que teve 150 novelas (!), era ser uma espécie de cinessérie estilo 007, mas o filme não obteve grande sucesso assim.

Fred também interpretou o escritor erótico americano Henry Miller em Henry & June – Delírios Eróticos (1990), ao lado de Uma Thurman. E venceu um Globo de Ouro por seu papel em Short Cuts – Os Americanos (1993), premiado filme de Robert Altman.

Ele fez também a comédia Corra que a Polícia vem Aí! 33 1/3: O Insulto Final (1994) e o thriller Reação em Cadeia (1996). Nos anos 2000, fez algumas pontas em seriados como Plantão Médico e Grey´s Anatomy. Sua última participação relevante foi em um episódio da terceira temporada de True Detective.

Fred morreu aos 79 anos em maio de 2022.

Mike Hodges (1932-2022) nasceu em Bristol, Inglaterra. Era diretor e produtor e ficou conhecido principalmente pelo filme Flash Gordon (1980), que adaptou a famosa tira em quadrinhos criada em 1936 por Alex Raymond, um dos marcos da ficção científica na cultura pop, em um longa mais lembrado pelas músicas da banda britânica Queen.

Mike também filmou o thriller Carter, o Vingador (1971), estrelado por Michael Caine, e Arco-Íris Negro (1989), com Rosana Arquette. Ele também dirigiu (não-creditado) A Profecia II (1978).

Roderick Taylor não teve grandes trabalhos de destaque, escrevendo roteiros para os seriados de comédia sci-fi Otherworld (1985), a ação futurista de um astronauta que vira um tira em 2020 em Super Force (1990) e o filme Valente (2007) — que não é aquele da Disney. Talvez o mais famoso trabalho dele tenha sido o script de 3 episódios de Witchblade (2001-2002), personagem baseada nos quadrinhos da Image Comics.

Neste mais um capítulo para a nossa Maratona Cinematográfica Raul Julia, vale destacar que se trata do 17º filme da carreira dele (e a 28ª obra audiovisual), todas elas resenhadas, sendo que algumas delas várias em um único post.

O filme anterior de Raul Julia, La Gran Fiesta, tratava de Porto Rico, e tal qual ele, vamos passar agora por um contexto geopolítico por Cuba, ainda mais com eles compartilhando a mesma sombra política: os Estados Unidos.

Fuga do Inferno (de Cuba?)

No mundo geopolítico de 1986, a Guerra Fria estava em um momento de tensão e rivalidade contínuas entre os Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

O presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, adotou uma política externa agressiva contra a União Soviética, chamada informalmente de Doutrina Reagan.

Ele promoveu uma expansão militar e uma postura assertiva em relação ao comunismo, buscando enfraquecer a influência soviética globalmente.

Em outubro de 1986, Reagan e o líder soviético, Mikhail Gorbachev, se encontraram em Reykjavik, na Islândia, para discutir a redução de armas nucleares. Embora não tenham chegado a um acordo final, a reunião foi um marco importante nas negociações sobre desarmamento nuclear.

Ronald & Mikhail

Nos anos 1980, as relações entre os Estados Unidos e Cuba estavam tensas devido ao embargo econômico e político imposto pelos EUA à ilha caribenha.

Esse embargo foi estabelecido em 1960 e reforçado em 1962 após a crise dos mísseis cubanos. As tensões decorrentes dessa política de embargo e isolamento se refletiram nas produções culturais, incluindo o cinema.

Mas Fuga do Inferno se encaixa em um contexto mais amplo relacionado às problemáticas com Cuba. Durante décadas, a cultura popular americana tem explorado a relação complexa entre os dois países, abordando temas como imigração, exílio, a luta pela liberdade e os efeitos do embargo econômico.

Neste caso, o que temos aqui no roteiro é algo intrínseco ligado à Invasão da Baía dos Porcos.

A Invasão da Baía dos Porcos (conhecida em Cuba como La Batalla de Girón) foi uma tentativa frustrada de invadir Cuba em abril de 1961 por um grupo paramilitar de exilados cubanos anticastristas (a chamada Brigada de Asalto 2506).

Uma das raras imagens do conflito

O grupo tinha sido treinado e dirigido pela CIA, a agência americana secreta de espionagem, com apoio das Forças Armadas dos Estados Unidos. O objetivo da operação era derrubar o governo socialista de Fidel Castro.

O plano foi posto em prática em 1961, menos de 3 meses depois de John F. Kennedy ter assumido a Presidência dos EUA. A arriscada ação terminou em fracasso. As forças armadas cubanas derrotaram os combatentes do exílio em 3 dias e a maior parte dos agressores se rendeu.

O ataque fazia parte da chamada Operação Mangusto, que tinha como objetivo derrubar o recém-formado governo comunista e assassinar o líder da Revolução Cubana, Fidel Castro.

Os EUA tentaram matar Castro

Por meio da CIA, o governo americano treinou 1.297 exilados cubanos, a maioria deles baseados em Miami. Como o planejado apoio da Força Aérea Americana fora vetado pelo presidente Kennedy (que temia um envolvimento institucional aberto), a operação foi lançada com pouco apoio logístico.

Castro, temendo uma nova invasão americana, com a ajuda da URSS, em 1962, instalou misseis nucleares soviéticos nas praias cubanas, em direção aos EUA, uma estratégia para se contrapor a uma movimentação americana semelhante, feita na Itália e Turquia.

Conhecida como Crise dos Mísseis, esse evento durou 13 dias e foi o mais próximo que a humanidade chegou de uma guerra nuclear. Foram 13 dias em que o mundo ficou mais perto da destruição do que jamais tinha ficado.

Na imagem podemos ver uma das fotos captadas em voos de baixa altitude pelo capitão William Eckner, que confirmariam a presença de mísseis soviéticos em Cuba

Cuba

Cuba, esse arquipélago do Caribe, é o responsável em manter vivo a narrativa do comunismo no mundo. Antiga colônia espanhola no século XIX, “obtida” pelos Estados Unidos após a Guerra Hispano Americana, Cuba conseguiu sua independência eventualmente, mas foi dominada por mais de 30 anos pelo ditador Fulgêncio Batista, um fantoche americano.

O açúcar e tabaco cubanos eram poderosas ferramentas comerciais nas mãos do governo dos EUA, e que junto com a Máfia ítalo-americana e criminosos cubanos, acabavam por dominar Cuba, distante apenas 140 km dos EUA.

Censura e pena de morte para opositores oprimiam a população, pobre e sem estudo. Em 1953, junto com outros guerrilheiros revolucionários, Fidel Castro tentou derrubar o poder de Fulgêncio.

Falharam e foram presos, e depois mandados para o exílio. Fidel e seu irmão Raul foram para o México, onde formaram o grupo 26 de Julho, nome dado em referência à data do ataque que tentaram anteriormente.

Usando a lancha Granma, invadiram Cuba de novo. Um combate entre as forças revolucionários e o governo deixou grandes baixas dos dois lados, e os sobreviventes se esconderam na floresta de Sierra Maestra.

Raul, Fidel, o argentino Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos, de 1956 a 1958, promoveram guerrilhas (e reforma agrária) sem parar em Cuba, até que o governo colapsou. Fulgêncio fugiu para a República Dominicana, e Fidel toma o poder.

A princípio, a despeito de promoverem mudanças sociais, desapropriação de terras e protagonismo de fundo militar, Fidel e os revolucionários não eram comunistas.

Uma vez no poder, investiram tanto na área de saúde que até hoje Cuba exporta médicos em missões humanitárias por todo o globo. Na Cuba de Fidel não havia imprensa livre, os críticos ao governo eram presos e a pena de morte por fuzilamento foi generalizada (só em 2003 que foi abolida).

A população LGBT foi perseguida também. Em 1960, Fidel Castro foi fardado numa Assembleia das Nações Unidas, onde fez um discurso de mais de 4 horas. Foi aí que o mundo — e os Estados Unidos — entenderam como que Cuba se posicionaria.

Fidel estatizou empresas estrangeiras em prol do povo cubano, e os EUA decidiram se mexer rápido, e além de um embargo econômico, fez a CIA elaborar um plano para derrubar o governo cubano.

Após a Invasão da Baía dos Porcos e a Crise dos Mísseis, negociações acalmaram os ânimos dos dois lados, e Cuba saiu com a promessa que não sofreria mais interferências americanas.

Em 1967, Che morreu na Bolívia. O apoio de Moscou durantes os anos 60, 70 e 80 foi fundamental para Cuba durante o embargo econômico dos EUA, e quando a URSS colapsou em 1991, os cubanos ficaram na pior.

Itens básicos sumiram do país. Em 1995, o presidente americano Bill Clinton dobrou a força do embargo, ampliando o alcance delas para empresas que fazem negócios com Cuba — se fizeram com ela, nunca mais farão com os EUA.

Em 2008, Fidel Castro passou o poder para Raul, seu irmão. Em 2015, o presidente Barack Obama faz uma visita histórica ao país, e no ano seguinte, a embaixada americana é reaberta em Cuba, fechada desde 1961.

Fidel Castro morreu em 2016, e em 2018, Miguel Diaz-Canel assume a presidência, o primeiro político a comandar o país nascido após a Revolução.

Um ano depois de Fuga do Inferno, apareceu o jogo Guevara (1987), um game de tiro produzido pela softhouse SNK para os arcades japonesas, e lançado com grande sucesso no mercado ocidental com o nome de Guerrilla War. Saiu até no Brasil, pós-redemocratização. A trama? Você controla os próprios Che Guevara e Fidel Castro contra soldados de um ditador marionete.

GUEVARA / GUERRILLA WAR | O game de Che e Fidel feito pela SNK

Maratona Raul Julia

Raul Rafael Carlos Julia y Arcelay nasceu em San Juan, cidade de Porto Rico, em 9 de março de 1940. Era o mais novo de quatro irmãos.

Desde cedo, o pequeno Raul Rafael demonstrava interesse pelas artes dramáticas. E quando ficou grande — grande mesmo, com 1,87 de altura — se encantou com a performance do ator Orson Bean em uma boate noturna, o que fez tomar a decisão de estudar teatro na Universidade de Porto Rico.

Se mudou para Manhattan (NY), em 1964, e rapidamente encontrou trabalho em peças e shows da Broadway.

O Internet Movie Database50 créditos de atuação de Raul Julia como ator em produções de cinema e filmes para a TV. O imenso legado criativo de Raul Julia no cinema será resenhado aqui, tal qual já fizemos por aqui com a atriz Jennifer Connelly, e traremos todas essas produções para cá.

Abaixo, um vídeo produzido pelo American Masters, que destaca profissionais da arte e cultura nos Estados Unidos. E a rendição deles para o talento de Raul Julia.

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