No fim dos anos 80, uma empresa de games do Japão usou o tema da Revolução Cubana em um jogo de tiro, e criou Guevara — cujo nome obviamente foi trocado para Guerrilla War no Ocidente — para jogadores brincarem de ser Che Guevara e Fidel Castro.
Eles são duas das principais figuras históricas do movimento, em um dos mais inusitados momentos da indústria de videogames.
O fato de uma empresa japonesa criarem uma diversão eletrônica usando dois comunistas em um produto capitalista já renderia por si só um batalhão de análises semióticas geopolíticas, que consumiriam caminhões de charutos cubanos para serem finalizados.
Mas longe de criar teses pseudo intelectuais sobre produtos meramente comerciais, como um videogame ordinário, ressalto aqui a bela obra que é o jogo Guevara / Guerrilla War, game de tiro run and gun, produzido pela softhouse japonesa SNK, em 1987, onde podemos matar imperialistas americanos com fogo marxista.
Guevara / Guerrilla War
(1987, da SNK)
O público-alvo dessa preciosidade (criada inicialmente para máquinas arcade, mais conhecidos aqui como fliperama) eram americanos, japoneses, e qualquer ser humano do mundo que tivesse uma moedinha ao seu alcance. Os aparelhos de jogo eletrônicos de arcades entulhavam bares e galerias de vários países do mundo no final dos anos 80 e 90, inclusive no Brasil.
Na segunda metade dos anos 1980, o Japão era um país que remontava sua economia pós-guerra com passos difíceis, mas largos o suficiente para se reestruturaram econômica e culturalmente.
E a SNK percorreu um longo caminho durante os anos 80 até chegar a ser uma das gigantes do setor de videogames durante todo os anos 90.
Sua trajetória de sucesso começa em 1981, com o game Vanguard, game de tiro com nave em movimentação horizontal, com gerenciamento obrigatório de combustível para continuar avançando.
Foi um dos grandes games da época, e influenciou jogos como Gradius, da Konami, e R-Type, da Irem.
Tamanha popularidade permitiu para a empresa japonesa abrir sua filial americana no fim do mesmo ano, a SNK Corporation of America. Entre 1978 e 1989, a softhouse publicou 45 jogos de diversos estilos e gêneros.
Capcom, outra softhouse de enorme prestígio no mercado, e concorrente direta da SNK em games de luta nos anos 90, ainda publicava títulos diversos na indústria nos anos 80.
Em 1985, ela lança Commando, game de Tokuro Fujiwara, um jogo de correr e atirar com ponto de vista do alto, com estratégias como saber quando avançar ou recuar dos inimigos.
Foi um sucesso imediato, já que nos cinemas astros de filmes de ação como Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone faziam toneladas de filmes em que eram o exército de um homem só, como Comando Para Matar e Rambo 2 – A Missão, respectivamente.
Em 1986, a SNK publicaria um de seus maiores sucessos, Ikari Warriors, jogo de tiro com visão aérea com dois soldados tendo que enfrentar um exército inteiro sozinhos.
Bebendo diretamente do game Commando e dos filmes de Rambo e John Matrix, o jogo deixava no controle do jogador Ralf e Clark em um combate de progressão vertical com uma proposta muito parecida com do game da Capcom.
Rambo 2- A Missão é um passo claro da máquina da indústria cultural americana em exorcizar fantasmas da Guerra do Vietnã, e encontrar novas narrativas para os EUA posarem de bonzinhos na história.
Sábia, a SNK promoveu em Ikari Warriors apenas a imagética necessária para pegar a audiência dos gamers jovens no que realmente interessa: o design parecido com o guerreiro invencível, a faixa na cabeça, armas aos montes e explosões sem parar.
O game é um filme de ação onde vários homens são mortos, e é isso.
Logo, é uma decisão muito curiosa que a SNK tenha saído com um game na sequência, em 1987, usando a mesma engine gráfica e proposta de jogabilidade.
Talvez, pensando no uso político da Guerra do Vietnã nos cinemas, a softhouse se viu permitida a ser atrevida e usar o conflito EUA vs Cuba em um videogame de tiro.
Não apenas a Capcom viu o potencial disso, mas anos à frente a Activision criaria Call of Duty, a maior franquia de videogames do gênero.
CALL OF DUTY | Guerra Fria nos videogames para entender política
Em Guevara, controlamos ninguém menos que o guerrilheiro Che Guevara em pessoa.
O jogo permite um segundo player, um amigo em modo cooperativo, e ele é Castro — o Fidel com certeza, e não seu irmão, Raul.
Os dois tem que combater os soldados do fantoche americano no poder da ilha, e que atende pelo nome de Fulgêncio Batista.
E como um bom jogo de tiro, não há segredo para chegar até o fim do game — é meter bala em todo o inimigo que aparecer.
Na versão européia e americana chamada Guerrilla War, controlamos dois soldados americanos não-nomeados, que invadem uma ilha tropical X qualquer no Mar do Caribe, para livrá-la da ditadura de um tal de “King” (“rei“), e é isso.
Tudo começa com uma hilária cena de introdução em ilustração pixelizada de Che Guevara com a frase “Hail the heros [sic] of the revolution!“, conclamando a derrubada do “King” da ilha em questão.
Mas tratemos aqui da versão japonesa. O jogo começa direto na ação, com os personagens saindo de um bote, quando já temos que lidar com um tiroteio.
Soldados inimigos atiram com metralhadoras, jogam granadas, se escondem em barricada, disparam tiros de bazuca e usam blindados.
Não há barras de life, então um dano já era. Além de acabar com os soldados do ditador em diversas fases, em Guevara resgatamos reféns. Se um deles é morto, nossa pontuação diminui.
A visão de controle é aérea, e podemos ir caminhando e atirando em oito direções. Temos armas, granadas e blindados (do tamanho de uma banheira) disponíveis para a matança.
O primeiro player é sempre Che, e caso um amigo entre na partida, ele controla Castro.
Os personagens são mostrados de costas, e apenas de lado podemos ver a fisionomia deles. O avanço se dá de baixo para cima.
A jogabilidade é única nos arcades, pois o controle se move realmente em oito direções, o que se perde nos emuladores, reduzindo e prejudicando a jogatina nos tempos atuais.
Um botão dá tiro, e outro botão joga granadas. Resgatar reféns dá 1.000 pontos, e matá-los tira 500 pontos.
Algumas parte do jogo entregam power-ups, como bazucas e lança-chamas. São cinco fases compostas desses elementos.
Um mapa da ilha é mostrado (baseado em Cuba mesmo) e temos que chegar até o palácio do chefão final. Os chefes são soldados usando blindados e helicópteros, e o final boss não poderia ser outro senão Fulgêncio Batista.
Ele fica dando risada atirando milhares de tiros e bombas em cima de você, auxiliado por dois tanques de guerra, e foge no momento final, escapando da morte.
Guerrilla War e a história
de Cuba em bits
O game Guerrila War finaliza com o jogador sendo aclamado “líder” pela população e alçado a posição de “general” da nação.
Em Guevara, há um texto em caracteres japoneses, com uma data em especial: 1 de janeiro de 1959.
É o dia em que o ditador Fulgêncio Batista fugiu de Cuba para a República Dominicana.
O ano de 1987, quando rolava Guevara nos arcades, era importante para Cuba. É quando acontece a Batalha de Cuito Cuanavale, o maior confronto militar da Guerra Civil Angolana, ocorrido entre 15 de novembro de 1987 e 23 de março de 1988.
O local da batalha foi o sul de Angola, na região do Cuíto Cuanavale, província de Cuando-Cubango, onde se confrontaram os exércitos de Angola (FAPLA) e Cuba (FAR) contra a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) e o exército sul-africano.
Foi a batalha mais prolongada que teve lugar no continente africano desde a Segunda Guerra Mundial, e resultou em grandes acontecimentos no tecido geopolítico mundial, com diferentes narrativas se sobrepondo em importância.
Muito se deve ao fim do apartheid na África do Sul por conta desse conflito, por exemplo.
Guerrilla War / Guevara é um típico sub-gênero de videogames de tiro do fim dos anos 80 no mundo dos games, mas a experiência entregue é mais coesa do que em Ikari Warriors, mas infelizmente o game não alcançou popularidade suficiente para se sobressair a seus primos irmãos.
Ironicamente, é de Ikari Warriors que saíram duas estrelas da SNK, os soldados Ralf Jones e Clark Steel, hoje protagonizando a série de game de porrada The King of Fighters.
Metal Slug, outro game de tiro da SNK, é muito mais famosa entre os gamers, e representa o ápice criativo (e de diversão) do gênero.
As diferentes versões do
mundo comunista e capitalista
Guevara, para o console super família Famicon, como o Nintendo 8-bits é conhecido no Japão. Aqui, chamamos de Nintendinho, que também teve uma edição nacional, lançada com o nome de Revolution Heroes
A revolução que Che Guevara e Fidel Castro promoveram para derrubar o regime de ditadura em Cuba nos anos 50 teve todas as referências na versão americana e européia omitidas, tanto na programação do game quanto no manual de instrução.
O game alcançou um sucesso moderado, e com toda essa bagagem, várias versões foram lançadas.
A softhouse Data East produziu as versões de PC, Commodore 64 e Apple II. A Imagine Software publicou nos computadores Amstrad CPC e ZX Spectrum na Europa. E a SNK publicou ela mesma o game para o NES/Famicom 8-bit da Nintendo.
Por causa dos limites do console, as versões não contam com as rotações em oito direções, e a jogabilidade sofreu diversas adaptações.
Guevara para Famicon é uma raridade entre os gamers, e alcança valores altos nas vendas.
A versão arcade de Guevara e Guerrilla War foram lançadas em um pacote promocional chamado SNK 40th Anniversary Collection, disponível para Nintendo Switch, PlayStation 4 e Xbox One.
É uma compilação de dezenas de games desenvolvida pela Digital Eclipse, que reúne games da SNK produzidos entre 1979 e 1990.
O pacote para Nintendo Switch saiu em 2018, e PlayStation 4, Xbox One e a Steam o receberam em 2019.
Versão brasileira
No Brasil, Guevara / Guerrila War foi lançado “oficialmente”.
A empresa CCE, que produzia e venda o clone de Nintendinho chamado Top Game, lançou o game com o nome de Revolution Heroes, uma adaptação do cartucho americano.
O Top Game teve três versões conhecidas: VG-8000 , VG-9000 e VG-9000T, esse último também conhecido como Turbogame.
A versão VG-8000 teve seu design inspirado no console da Sega, o SG-1000, caso único no mundo em quem uma fabricante usou a carcaça de um rival para produzir a sua máquina. Coisas de Brasil.
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