CALL OF DUTY | Guerra Fria nos videogames para entender política

Há muito tempo que os videogames flertam com a política como base temática de sua proposta de jogo, e com Call of Duty, uma das franquias mais famosas do mercado, isso é um casamento irrevogável, ainda mais com a temática da Guerra Fria.

Há 10 anos, no mundo dos games de tiro, estávamos na Guerra Fria em um jogo do CoD — como o game é apelidado pelos fãs, e no louco 2020, ano de pandemia e derretimento financeiro, com negação irracional por uma grande parte do mundo, teremos uma nova versão de Call of Duty, que pode se chamar Black Ops Cold War, de acordo com fontes apontadas pelo site IGN Brasil.

Os games de CoD são jogos de guerra, ficção científica e ação em tiro em primeira pessoa (o termo técnico do gênero é FPS).

Call of Duty Black Ops (2010), o game da franquia de dez anos atrás, retratava operações secretas da Guerra Fria dos anos 1960 e traçou uma narrativa misteriosa sob a perspectiva do agente Alex Mason.

O novo game tem previsão de ser lançado para os consoles Playstation 5, Playstation 4, Xbox Series X, Xbox One e PC. As notícias foram divulgadas pela Activision, produtora do CoD, uma das softhouses mais conhecidas e famosas do mercado, dona de games como River Raid, Enduro e Pitfall, clássicos do videogame.

A empresa ainda relacionou a questão, feita em uma conferência financeira, ao coronavírus, e como ele não afetou ou interrompeu o desenvolvimento do jogo. Outras apostas dizem que a campanha será durante a Guerra do Vietnã

Call of Duty Guerra Fria
O Call of Duty situado na Guerra Fria: Black Ops, palavra em inglês para designar operações secretas

Se o jogo Game of Duty revisitar a Guerra Fria, será mais uma vez holofotes em cima do conflito geopolítico que redesenhou a maior parte do mundo depois da Segunda Guerra Mundial, e que ainda risca com força as paredes de quase todos os palácios presidenciais da nações da Terra.

Se há alguma dúvida disso, é só pegar o noticiário político de qualquer nação ocidental de perfis de redes sociais desses governantes, e verificar os discursos sobre capitalismo e comunismo que neles aparecem.

O Brasil de Jair Bolsonaro e os Estados Unidos de Donald Trump que o digam. Era um fantasma apagado, tornado mais sólido nos últimos anos a fim de polarização do atual cenário político mundial.

A Guerra Fria na vida real aconteceu de 1947 a 1991, e muitos historiadores determinam um fim para ela quando o bloco soviético desmorona, um evento que embaralhou as cartas dos poderosos do capitalismo.

A URSS era a principal fiadora de Cuba, país que teve seu contexto muito bem representado em um jogo de tiro da softhouse japonesa SNK chamado Guevara — referência delicada como um tiro de bazuca marxista na cara.

GUEVARA / GUERRILLA WAR | O game de Che e Fidel feito pela SNK

Guevara foi possível graças a uma particularidade muito especial do capitalismo, que é a sua absorção para anulação.

Uma das engrenagens mais bem azeitadas desse capitalismo é a indústria cultural, e o entretenimento digital na forma de videogames é uma das mais relevantes peças que a faz funcionar, com rendimentos que há muito tempo ultrapassam o cinema e a música, belas artes por excelência.

Usar o principal fetiche americano — o complexo industrial militar — como base desses games, é o feijão com arroz de todo o negócio da máquina cultural dos EUA.

Um chamado às armas

Call of Duty Guerra Fria
Cuba no universo de Call of Duty

Em 2003, o ano da invasão dos EUA ao Iraque em busca de supostas armas químicas, surgiu o primeiro jogo Call of Duty.

Os jogos de tiro da série passeiam por diversos teatros de guerra que tiverem seu lugar real no mundo. Os primeiros títulos têm como cenário a Segunda Guerra Mundial: Call of Duty, Call of Duty 2 e Call of Duty 3.

Em Call of Duty 4: Modern Warfare, de 2007, a ação acontece nos tempos modernos. Call of Duty: World at War retoma o tema da Segunda Guerra Mundial, e Call of Duty: Modern Warfare 2 volta ao período atual.

Call of Duty Black Ops (2010) foi o primeiro a se passar durante a Guerra Fria. Modern Warfare 3 (2011) acontece num futuro próximo.

Black Ops II (2012) corre da Guerra Fria e avança ainda mais, para o ano 2025. Em abril de 2015, saiu Black Ops III, e em novembro de 2016, Call of Duty: Infinite Warfare.

Em novembro de 2017, a Activision lançou Call of Duty: WWII, que marcou o retorno da série para a temática da Segunda Guerra. Em março de 2018, Call of Duty: Black Ops IV foi lançado. Em outubro de 2019, foi lançado Call of Duty: Modern Warfare.

Muitos desses últimos games citados tem temas sci-fi bem pesados, com armas futuristas, regimes ditatoriais e terroristas, e até mesmo zumbis.

O que em 2020, ano de explosão de vulcão, vídeos de OVNIs pela Nasa, pandemia mundial e ascensão de movimentos fascistas e normatização do fascismo e neonazismo, pode estar mais perigosamente perto de ser real do que qualquer um gostaria.

Como Call of Duty ajuda a entender a política

O primeiro jogo, mesmo hoje, ainda oferece uma experiência marcante de videogame, em cenários enorme urbanos, com uma riqueza incrível de detalhes ao mostrar a cidade de Stalingrado, depois que somos transportados pelo Rio Volga pelo Exército Vermelho.

A dinâmica de mostrar vários soldados em diferentes teatros de guerra funciona muito bem,. O Call of Duty 2, de 15 anos atrás, só empilha qualidades em cima — em Satlingrado, ou você está atirando em alguém, ou está recarregando a arma e atento para uma granada não cair em seu colo.

Como uma tortura da CIA, não dá pra respirar.

Call of Duty ganha mais importância ao se notar o seu uso militar na vida real. Em 2014, o criador do game Call of Duty, Dave Anthony, foi chamado a Washington para ajudar militares americanos a “visualizar guerras do futuro”.

O desenvolvedor  foi ao Centro de Estudos Atlantic Council para fazer os militares pensarem “fora da caixa”. O objetivo era mudar o jeito de pensar, e não sugerir políticas.

O cenário apresentado por ele foi drones na guerra, armas inteligentes dando mais poder a indivíduos que a Estados e desastres cibernéticos.

As informações foram largamente noticiadas pela imprensa na época, como essa reportagem da BBC mostra.

A matéria ainda tem um sabor bizarro de 2020, ao indicar que o jogo Call of Duty também era um hit entre militantes do autodenominado Estado Islâmico, cujo militante faziam referência à Call of Duty e jogos similares em vídeos de recrutamento.

Na época da matéria, os games do CoD em destaque eram o Call of Duty: Ghosts (2013), que mostrava uma cronologia alternativa com eventos de uma destruição nuclear do Oriente Médio, graças a uma narrativa envolvendo nações produtoras de petróleo da América do Sul.

O outro game da época é Call of Duty: Advanced Warfare (2014), que mostrava o terrível futuro de 2054 em que a organização terrorista KVA é a maior força política do mundo.

O povo do Oriente Médio e a máquina cultural americana já estavam ligados desde os anos 1980, com Rambo III como ponto alto da narrativa torta a favor dos EUA, é claro.

RAMBO III | O cinema político e o suspiro da Doutrina Brejnev

Call of Duty Guerra Fria
O Call of Duty na época da ascensão do Estado Islâmico: Ghosts, destruição nuclear do Oriente Médio, graças a uma narrativa envolvendo nações produtoras de petróleo da América do Sul

Durante os anos em que Call of Duty estava dentro dos videogames de jogadores de todo o mundo, a geopolítica do Oriente Médio era reescrita.

Saddam Hussein foi morto em 2006, e Muammar al-Gaddafi morto em 2010. Outro político de grande expressão na região é Bashar Al-Assad, no poder da Líbia desde o ano 2000.

Um ano depois da morte de Gaddafi, uma série de protestos levaram à queda de presidentes autoritários e a mudanças de regime no Oriente Médio e norte da África. Essa onda de manifestações em 2011 ficou conhecida como Primavera Árabe, que gerou barulho suficiente para derrubar os governos da Tunísia, do Egito, do Iêmen e do Barein.

Na Síria de Assad, no entanto, ela foi freada violentamente pelo governo. Assad e sua família, há 40 anos no poder, temiam cair que nem os presidentes do Egito ou Iêmen, ou até pior, encontrar a morte, como Saddam Hussein.

A Síria, prejudicada por essa constante guerra civil e política, foi terreno fértil para que o Estado Islâmico ali crescesse em poder ali, ao se apropriar de cidades e comércio. Suas origens remontam a 1999, mas foi em 2003 (o ano de lançamento do primeiro Call of Duty) que o organização fundamentalista que segue as leis antigas do Alcorão à risca, se tornou fértil e forte, no terreno arrasado e instável que os EUA provocaram no Iraque ao invadi-lo nesse ano.

A invasão do Iraque pelas forças americanas é tratada de modo superficial e com uma célebre cinética de ação sensacional no filme Zona Verde, de Paul Greengrass, de 2010.

A simetria de forças vista aqui é significativa, ainda mais por conta das chamas que queimam moral e politicamente os Estados Unidos desde a morte de George Floyd por policiais. [

As manifestações atuais dos EUA se dão depois da morte do ex-segurança negro em Minneapolis, em maio de 2020. O norte-americano de 46 anos foi asfixiado por um policial branco que usou o joelho para pressionar o pescoço de Floyd, que já estava imobilizado.

A América pega fogo em um cenário econômico em começo de queda, desemprego e instabilidade social, somados a uma pandemia de vírus e um ano eleitoral crucial para Donald Trump.

Tudo isso pode ser o prenúncio de uma Primavera Árabe para o mundo ocidental, lotado de presidentes autoritários, e que se não está tomado por militantes do Estado Islâmico que jogam Call of Duty, estão cheias de fascistas e racistas que com certeza encontram abrigo psicológico na matança eletrônica que games como o CoD promove.

Ter um CoD com destruição nuclear no Oriente Médio quando o Estado Islâmico jogava o game, e ter um novo Cod de Guerra Fria na incerta América — e América do Sul, mais especificamente o Brasil, atolado em narrativas e delírios imaginários de guerra contra o comunismo — será um bom ponto de análise, se ainda estivermos todos aqui no pós-normal que surgirá.

O trailer de Call of Duty Black Ops (2010), o título situado na Guerra Fria da franquia

Complexo Industrial-Militar

O termo complexo industrial-militar foi utilizado pelo presidente Dwight D. Eisenhower (1953-1961) para descrever o intricado processo pelo qual os EUA cada vez mais produziam armas e tecnologias bélicas.

Einsehower e um dos maiores discursos políticos da história, onde cunhou o termo complexo industrial militar

Essa força ainda exerce influência no desenho da política externa norte-americana e geopolítica mundial, e sua natureza híbrida é o que movimenta as peças desse jogo.

Esse relacionamento político entre as forças armadas de um governo nacional e a indústria tem como objetivo obter para o setor privado a aprovação política para pesquisa, desenvolvimento e produção, assim como o apoio para treinos militares, armas, equipamentos e instalações.

Essa conjunção de um imenso establishment militar e uma grande indústria de armas é nova na experiência estadunidense. A influência total – econômica, política e, até mesmo, espiritual – é sentida em cada cidade, em cada legislativo, em cada gabinete do Governo Federal.”

Com o complexo industrial-militar, todo avanço técnico radicalmente novo produzido pelo trabalho de Pesquisa e Desenvolvimento da sociedade ou é gestado pelo próprio militarismo ou é imediatamente empregado em fins militares no capitalismo.

Na sinergia macabra em que isso opera, se desenvolvem as forças produtivas em uma mão, enquanto outra avança com a barbárie em forma de dominação.

O Presidente admitiu que a Guerra Fria deixava clara a “imperativa necessidade de seu desenvolvimento (militar)”, mas se mostrou preocupado sobre a “injustificada influência que o complexo militar-industrial estava crescentemente conquistando.” Em especial, pediu à nação a se precaver contra “o perigo que esta política pública poderia tornar-se prisioneira de uma elite científico-tecnológica.”

Parte da transcrição do discurso em inglês

É importante considerar, no entanto, que o governo de Eisenhower ampliou o arsenal atômico, ao mesmo tempo em que defendia a redução dos efetivos militares regulares. Eisenhower governou o país no auge da Guerra Fria, e os americanos viviam o terror de serem mortos na fogueira nuclear de mil bombas atômicas.

Eisenhower era um General Cinco Estrelas do Exército Americano, sendo o Comandante Supremo das Forças Aliadas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Foi o responsável pela dessegregação racial nas Forças Armadas e pela Lei dos Direitos Civis de 1957. Mais do que ninguém, tinha amplo conhecimento do setor militar nos EUA.

/ GUERRA FRIA LITERAL. Um videogame que é a mais pura Guerra Fria nos videogames é Guevara, um jogo de tiro de fogo marxista, em que se controla Fidel Castro e Ernesto Che Guevara contra os soldados imperialistas americanos do ditador Fulgêncio Batista, em uma improvável produção da softhouse SNK, uma das maiores produtoras de títulos de luta da indústria. Matéria completa aqui.

/// GAME ESSENCIAL. Call of Duty tem quatro títulos de sua franquia entre os games recomendados por Tony Mott ena bíblia obrigatória de gamers1001 Videogames Para Jogar Antes de Morrer. São eles: o primeiro, de 2003;, o segundo; o quarto, Modern Warfare; e sua sequência direta, Modern Warfare 2.

/// CHEGADA. Ainda não há nenhuma confirmação de data de chegada para o suposto Call of Duty: Black Ops Cold War. O histórico da janela de lançamento da franquia pela Activison pode indicar uma data entre os meses de outubro e novembro.

Mas mesmo isso tem que se dobrar ao poder da pandemia de corona vírus, que afeta todos os mercados de entretenimento de forma significativa, e ainda há o peso da nova geração chegando. Os quatro últimos jogos de CoD chegaram entre esse espaço de tempo para PS4 e Xbox One, mas a chegada do PS5 e Xbox Series X em dezembro pode alterar os planos da softhouse.

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