O cinemão-pipoca de Hollywood é um dos melhores motores culturais do mundo para entortar narrativas ou ficcionalizar a favor dos Estados Unidos, em qualquer cenário que ele perca ou pareça perder, e com Zona Verde (2010), isso não foi diferente.
O diretor Paul Greengrass usa a invasão americana contra o Iraque em 2003 para criar um filme de ação nível Bourne — franquia que pegou para si depois que cineasta Doug Liman a criou em 2002, Identidade Bourne, um filme de ação pós-11 de setembro, que redefiniu o cinema de espionagem, enterrando um J.B., James Bond, e elevando outro J.B., Jason Bourne.
Paul frequentemente estoura os orçamentos dos filmes que realiza, e isso foi um dos motivos para que o quarto capítulo da franquia Bourne demorasse tanto para sair.
Enquanto a Universal Studios decidia o que fazer (e ela cederia), Greengrass aproveitou o template de Matt Damon/Jason Bourne como supersoldado e fez mais um Bourne sem a marca oficial, e com um selo de pretenso senso elevado histórico social, ao contar uma história totalmente válida de como os tons cinzas permeiam qualquer decisão geopolítica das grandes potências.
Mas isso não quer dizer que o filme é panfletário, ou que seja excessivamente formulaico. É apenas um cinema de ação pipoca com um final bem americano.
A filmografia de Greengrass é cheia de filmes de ação dinâmicos e inventivos, sempre com toques atmosféricos militar/black ops ou urbanos/casuísticos, como a trilogia original do assassino desmemoriado visto em Supremacia Bourne (2004) e Ultimato Bourne (2007), baseados vagamente nos livros escritos por Robert Ludlum; o melhor filme sobre os ataques de 11 de setembro (que não é sobre o ataque às Torres Gêmeas), Vôo United 93 (2006); Capitão Philips (2013) e enfim o quarto filme Bourne, intitulado simplesmente Jason Bourne (2016).
Com Zona Verde, toda a cinética é ligeira e estilosa, o que deixa um filme gostoso e liso de assistir, mas sintético em suas idiossincrasias, que não são poucas.
O enredo do filme foi concebido a partir de um roteiro escrito por Brian Helgeland, baseado em um livro de não-ficção de 2006, Imperial Life in the Emerald City, do jornalista indiano-americano Rajiv Chandrasekaran. O livro documentou a vida dentro da Zona Verde em Bagdá durante a invasão do Iraque em 2003. Brian foi indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado na edição de 2004 pelo trabalho na obra Sobre Meninos e Lobos e venceu na Oscar 1998 por Los Angeles – Cidade Proibida, ao lado de Curtis Hanson. Com um time de produção robusto desse pra dar estofo à sustentação da história, não é a toa que Zona Verde seja um bom filme.
A produção de Zona Verde começou em janeiro de 2008 na Espanha e mudou-se mais tarde para o Marrocos, local de todas as gravações “iraquianas”.
Rajiv Chandrasekaran escreveu o livro e não economizou nas informações a respeito do extraordinário nível de incompetência americana em administrar o mundo de problemas do Iraque pós-invasão e a própria Zona Verde em si — termo aplicado à área isolada de diplomacia ao redor do palácio tomado de Saddam Hussein em Bagdá.
Os produtores de Zona verde tomaram Imperial Life in the Emerald City como base, mas não o transpuseram fielmente no longa-metragem — precisavam de um sabor americano de um autêntico hambúrguer fast-food.
Zona Verde
(Green Zone, 2010,
de Paul Greengrass)
O capitão Roy Miller (Matt Damon) comanda um pelotão no Iraque, atrás de armas de destruição em massa, em diferentes locais, onde nunca encontrada nada.
É por meio dele que acompanhamos a rotina dos militares dos Estados Unidos no Iraque, o berço da civilização humana desde tempos imemoriais. Estamos no momento pós-invasão americana, em 2003. Clark Poundstone (Greg Kinnear) é um dos burocratas de Washington, com alto poder militar na feitura da composição política do país, que está caindo aos pedaços.
Ele precisa realizar uma reunião com três representantes principais do povo iraquiano: curdos, sunitas e xiitas. Todos eles almejam diferentes níveis de poder, mas a figura política a emergir em posição de liderança deve ser alinhada a Washington.
Roy logo descobre que suas missões furadas tem uma razão de ser, e fica mais confuso quando a CIA (agência secreta americana de operações militares), na figura de Martin Brown (Brendan Gleeson), prefere trabalhar com o exército iraquiano para acabar com o caos que reina fora da Zona Verde.
É verde por termo militar, mas a verdade é que é verde de dinheiro americano: serviço chique de hotel, piscina, garotas de biquíni, bebidas e comidas, um mundo irreal dentro do Iraque em frangalhos.
No meio disso tudo, Greengrass nos mostra quem acredita num novo país feito só por iraquianos, outros que acreditam na democracia americana forçada goela abaixo, e quem prefere trabalhar em conjunto para tentar algum resultado.
A mistura explosiva de soldados, agentes da CIA e burocratas não escapa dos olhos de Lawrie Dayne (Amy Ryan), jornalista que quer a todo custo descobrir quem é a fonte de Poundstone, que ele trata como Magalhães — alguém que fornece informações a respeito dos locais das supostas armas de destruição em massa no Iraque.
Assim como há iraquianos de etnias diferentes, Zone Verde mostra soldados com variados propósitos e agendas.
Aliás, é uma agenda que serve para Miller construir a sua própria para tentar encontrar a verdade no meio de toda essa conspiração de bagunça, explosões, tiroteios e até mortes, com direito até a um antagonista, Major Briggs (Jason Isaacs), o cão de guerra de Poundstone.
É um painel desenhado para parecer complexo, e de fato há certo peso, mas nunca a mais do que dita o bom mocismo americano. Se há algum civil iraquiano aliado, ele é tratado como capacho – a ele é negado até a constituição física completa, pois não tem uma perna, assim como o Iraque, aleijado por um país invasor.
Roy Miller foi baseado no militar Richard “Monty” Gonzales (U.S. Army Chief Warrant Officer), que realmente foi designado pelo exército para vasculhar Bagdá atrás de armas de destruição em massa — ele foi consultor do filme inclusive. Já Ahmed Zubaidi, o “político iraquiano de Washington”é baseado em Ahmad Chalabi, político iraquiano deposto depois da invasão americana.
O ator Igal Naor, que interpreta o general Al Rawi (o vilão?), fez o Saddam Hussein dois anos antes para a série de TV House of Saddam (2008) — Naor é israelense com descendência judia-iraquiana. Além de fazer a franquia Bourne, a interpretação de militar de Matt Damon foi apurada em anos fazendo filmes do gênero (ou parecidos): Gerônimo – Uma Lenda Americana (1993), Coragem sob Fogo (1996), O Resgate do Soldado Ryan (1998), Lendas da Vida (2000), Cine Majestic (2001) e Che 2: A Guerrilha (2008).
Complexo Industrial-Militar
O termo complexo industrial-militar foi utilizado pelo presidente Dwight D. Eisenhower (1953-1961) para descrever o intricado processo pelo qual os EUA cada vez mais produziam armas e tecnologias bélicas.
Essa força ainda exerce influência no desenho da política externa norte-americana e geopolítica mundial, e sua natureza híbrida é o que movimenta as peças desse jogo.
Esse relacionamento político entre as forças armadas de um governo nacional e a indústria tem como objetivo obter para o setor privado a aprovação política para pesquisa, desenvolvimento e produção, assim como o apoio para treinos militares, armas, equipamentos e instalações.
“Essa conjunção de um imenso establishment militar e uma grande indústria de armas é nova na experiência estadunidense. A influência total – econômica, política e, até mesmo, espiritual – é sentida em cada cidade, em cada legislativo, em cada gabinete do Governo Federal.”
Com o complexo industrial-militar, todo avanço técnico radicalmente novo produzido pelo trabalho de Pesquisa e Desenvolvimento da sociedade ou é gestado pelo próprio militarismo ou é imediatamente empregado em fins militares no capitalismo.
Na sinergia macabra em que isso opera, se desenvolvem as forças produtivas em uma mão, enquanto outra avança com a barbárie em forma de dominação.
O Presidente admitiu que a Guerra Fria deixava clara a “imperativa necessidade de seu desenvolvimento (militar)”, mas se mostrou preocupado sobre a “injustificada influência que o complexo militar-industrial estava crescentemente conquistando.” Em especial, pediu à nação a se precaver contra “o perigo que esta política pública poderia tornar-se prisioneira de uma elite científico-tecnológica.”
É importante considerar, no entanto, que o governo de Eisenhower ampliou o arsenal atômico, ao mesmo tempo em que defendia a redução dos efetivos militares regulares. Eisenhower governou o país no auge da Guerra Fria, e os americanos viviam o terror de serem mortos na fogueira nuclear de mil bombas atômicas.
Eisenhower era um General Cinco Estrelas do Exército Americano, sendo o Comandante Supremo das Forças Aliadas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Foi o responsável pela dessegregação racial nas Forças Armadas e pela Lei dos Direitos Civis de 1957. Mais do que ninguém, tinha amplo conhecimento do setor militar nos EUA.
Greengrass começou a carreira na direção de documentários em zonas de guerra. Foi em 2003, o ano da invasão dos EUA ao Iraque em busca das supostas armas, que surgiu o primeiro jogo Call of Duty, um dos games mais populares da indústria de videogame, da softhouse Activision, com cada lançamento muito aguardado pela comunidade gamer.
Os jogos de tiro da série passeiam por diversos teatros de guerra que tiverem seu lugar real no mundo.
Os primeiros títulos têm como cenário a Segunda Guerra Mundial: Call of Duty, Call of Duty 2 e Call of Duty 3. Em Call of Duty 4: Modern Warfare, de 2007, a ação acontece nos tempos modernos. Call of Duty: World at War retoma o tema da Segunda Guerra Mundial, e Call of Duty: Modern Warfare 2 volta ao período atual.
Call of Duty Black Ops (2010) foi o primeiro a se passar durante a Guerra Fria. Modern Warfare 3 (2011) acontece num futuro próximo. Black Ops II (2012) corre da Guerra Fria e avança ainda mais, para o ano 2025.
Em abril de 2015, saiu Black Ops III, e em novembro de 2016, Call of Duty: Infinite Warfare. Em novembro de 2017, a Activision lançou Call of Duty: WWII, que marcou o retorno da série para a temática da Segunda Guerra. Em março de 2018, Call of Duty: Black Ops IV foi lançado. Em outubro de 2019, foi lançado Call of Duty: Modern Warfare.
CALL OF DUTY | Guerra Fria nos videogames para entender política
Saddam Hussein foi morto em 2006, e Muammar al-Gaddafi (Líbia) morto em 2010. Outro político de grande expressão na região é Bashar Al-Assad, no poder da Líbia desde o ano 2000.
Um ano depois da morte de Gaddafi, uma série de protestos levaram à queda de presidentes autoritários e a mudanças de regime no Oriente Médio e norte da África.
Essa onda de manifestações em 2011 ficou conhecida como Primavera Árabe, que gerou barulho suficiente para derrubar os governos da Tunísia, do Egito, do Iêmen e do Barein. Na Síria de Assad, no entanto, ela foi freada violentamente pelo governo.
Assad e sua família, há 40 anos no poder, temiam cair que nem os presidentes do Egito ou Iêmen, ou até pior, encontrar a morte, como Saddam Hussein.
A Síria, prejudicada por essa constante guerra civil e política, foi terreno fértil para que o Estado Islâmico ali crescesse em poder ali, ao se apropriar de cidades e comércio.
Suas origens remontam a 1999, mas foi em 2003, o ano de lançamento do primeiro Call of Duty, e quando se passa Zona Verde, que o organização fundamentalista que segue as leis antigas do Alcorão à risca, se tornou fértil e forte, no terreno arrasado e instável que os EUA provocaram no Iraque ao invadi-lo nesse ano.
A Guerra Fria aconteceu de 1947 a 1991, e muitos historiadores determinam um fim para ela quando o bloco soviético desmorona, um evento que embaralhou as cartas dos poderosos do capitalismo.
A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas era a principal fiadora de Cuba, país que teve seu contexto muito bem representado em um jogo de tiro da softhouse japonesa SNK chamado Guevara — referência delicada como um tiro de bazuca marxista na cara.
Guevara foi possível graças a uma particularidade muito especial do capitalismo, que é a sua absorção para anulação.
Uma das engrenagens mais bem azeitadas desse capitalismo é a indústria cultural, e o entretenimento digital na forma de videogames é uma das mais relevantes peças que a faz funcionar, com rendimentos que há muito tempo ultrapassam o cinema e a música, belas artes por excelência.
Usar o principal fetiche americano — o complexo industrial militar — como base desses games, é o feijão com arroz de todo o negócio da máquina cultural dos EUA.
GUEVARA / GUERRILLA WAR | O game de Che e Fidel feito pela SNK
Quanto mais se entende a respeito de ações militares, mais uma frase atribuída ao músico alternativo americano Frank Zappa faz sentido: “Política é a divisão de entretenimento do complexo industrial militar”.
Os Estados Unidos se mantêm em uma permanente economia de guerra. Tendo em vista manter essa economia em funcionamento, é preciso ter inimigos permanentes.
Isso é criado elaborando esses inimigos e alimentando depois as duas partes em conflito, uma situação da qual extraem o máximo lucro nos passos seguintes. Zona Verde foi um fracasso de bilheteria nos Estados Unidos.
O tempero soft porn de “crítica” que Greengrass jogou no hambúrguer deve ter acusado no estômago do público americano. Zona Verde está longe de Os Gritos do Silêncio e muito perto de Rambo III.
RAMBO III | O cinema político e o suspiro da Doutrina Brejnev
/ O LIVRO. O livro de Rajiv Chandrasekaran e sua sinopse: “No meio de uma zona de guerra, Bagdá, ergue-se um enclave fortemente murado e protegido, a Zona Verde – também conhecida como Cidade Esmeralda –, onde está sedeado o contingente da administração de ocupação norte-americana no Iraque. É um mundo à parte, com vivendas luxuosas, piscinas, bares, centros comerciais, jipes novos, enfim todas as comodidades que encontraríamos nos Estados Unidos. Com base em centenas de entrevistas que fez a pessoas que ali vivem e recorrendo a documentos confidenciais, Rajiv Chandrasekaran elabora uma crítica ácida aos representantes do governo dos EUA no Iraque e ao seu desfasamento da realidade que os rodeia.”
/ REINVENÇÃO BOURNE. Em uma matéria de Isabela Boscov para a VEJA, a jornalista resume de modo magistral como o Bourne de Greengrass mudou o cinema de ação. “A Identidade Bourne, de Doug Liman, reembalou o filme de espionagem em um contexto mais pop. Mas, com A Supremacia Bourne e O Ultimato Bourne, de 2004 e 2007, o inglês Paul Greengrass reinventou a ação cinematográfica: transferiu-a para as entranhas menos fotogênicas dos cenários urbanos, transformou-a em algo sumamente urgente, em que o momento presente é tudo que conta, e livrou-a de vícios teatralizantes e dos artifícios para realçar (por exemplo, planos e contraplanos, tomadas de cobertura e tudo mais que interfira com a embolação naturalista da ação)”. A matéria completa aqui > https://veja.abril.com.br/blog/isabela-boscov/pancadaria-no-cinema/
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