Hannibal Lecter em O Silêncio dos Inocentes é o nascimento de um dos grandes vilões da cultura pop do cinema, feito em carne e osso por Sir Anthony Hopkins , no longa-metragem de Jonathan Demme, em 1991, o começo da década da violência cínica.
O doutor psiquiatra psicopata canibal hipnotiza em suas poucas aparições na tela, tempo suficiente para deixar um legado que dura mais de 30 anos, e conseguir a proeza de levar um Oscar mesmo com poucos minutos de atuação.
Hopkins ganhou o maior prêmio do cinema e o mundo com o papel do Dr. Lecter, e a indústria cinematográfica foi rápida em tentar mais dividendos com o sucesso, com dois outros filmes — Hannibal, de 2001, e Dragão Vermelho, de 2002, ambos com resultados deficitários, uma conta que não pode ser cobrada de Sir Anthony Hopkins.
Hannibal Lecter / Anthony Hopkins em O Silêncio dos Inocentes
(The Silence of the Lambs, 1991)
Em O Silêncio dos Inocentes, cada palavra proferida é importante, e cada uma delas têm mais significados do que se aparenta.
Uma trilha sonora perturbadora de Howard Shore e a direção de fotografia de Tak Fujimoto torna o primeiro dos três filmes de Hannibal Lecter o único e merecedor de todos os elogios.
Não bastasse a estrela brilhante de Hannibal Lecter / Anthony Hopkins, temos uma poderosa linguagem em ação com Clarice Starling / Jodie Foster, ao acentuar as dificuldades das mulheres no que é percebido como um mundo masculino — o policial criminal.
O complexo, inteligente e lógico Hannibal Lecter tem consciência de tudo que acontece ao seu redor.
Ele surge originalmente na literatura, nos livros de Thomas Harris. Começa em Dragão Vermelho, segue para O Silêncio dos Inocentes, termina em Hannibal, com participações exponenciais nas tramas.
Há um livro extra, que conta a infância e adolescência de Lecter, em Hannibal Rising.
Dr. Lecter, desde o começo do filme, se mostra uma figura singular, com uma gravidade mágica que puxa todos a seu redor.
Dono de imenso conhecimento médico e psiquiátrico, nosso primeiro vislumbre dele é num hospital para criminosos, onde está preso há oito anos, desde que foi capturado pela polícia. Quando Clarice o vê, ele está de pé, altivo, como senhor de seu domínio, ainda que isso seja apenas uma cela.
A agente do FBI Clarice Starling é designada por seu chefe, Jack Crowford (Scott Glenn) para desvendar a série de assassinatos cometidos pelo assassino serial Bufallo Bill, que já esfolou cinco mulheres em seus crimes.
Uma pista o liga ao distinto e psicopata Hannibal Lecter, e a trama de Jonathan Demme começa a se mover a partir disso.
Lecter gosta de Clarice de imediato, e vemos um jogo psicológico de gato e rato entre os dois, na busca de mais informações que levem a prisão de Buffalo Bill.
Com 1h30, Jonathan nos faz crer que a história já encontrou seu desfecho, apenas para subverter expectativas e criar uma tensão final de arrepiar qualquer um.
Não é sem merecimentos que O Silêncio dos Inocentes levou os cinco Oscar principais da indústria cinematográfica — Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro, Melhor Ator (para Anthony Hopkins) e Melhor Atriz (para Jodie Foster).
Outros dois filmes podem se gabar do feito: Aconteceu Naquela Noite (1934) e Um Estranho no Ninho (1975). É importante frisar que O Silêncio dos Inocentes foi o primeiro filme de “terror” a ganhar todas essas honrarias ao mesmo tempo.
Para construir a persona única de Lecter, Hopkins afirmou em algumas entrevistas que se baseou na lógica dura do computador H.A.L. 9000, do filme 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968), de Stanely Kubrick.
Além, é claro, de estudar diversos casos de serial killers, visitar prisões e analisar assassinos convictos em alguns julgamentos.
Com uma performance em tela que soma apenas 24 minutos e 52 segundos, de um filme de quase 2 horas, Sir Anthony Hopkins levou o Oscar pela sua performance.
Apenas outro ator conseguiu tal feito: David Niven em Vidas Separadas (1958), com 23m39s.
Na primeira conversa entre Clarice e Lecter, já temos a dinâmica estabelecida.
Há apenas 4 interações entre os personagens em tela, mas em todas elas Jonathan Demme extraiu o que precisava, pois cada encontro dá a ignição necessária para que a trama avance.
Foster e Hopkins mereceram os prêmios, pois cada fala e movimento nas telas de cinema é um tijolo a mais na construção da relação dos dois — nenhum dos dois termina o filme como começou, e isso é um prazer ver em tela.
Hopkins tem a vantagem de poder trabalhar todas as nuances do diabolismo que Lecter provoca quando explode em violência, e Foster mostra como que pode ser frágil e forte ao mesmo tempo.
Na edição especial do DVD do filme, há dezenas de cenas deletadas, e várias delas são mais interações de Clarice e Lecter nesses 4 encontros.
Durante o desenrolar da trama, fica claro o fascínio de Clarice por Lecter, que a obriga a confrontar fantasmas do seu passado.
O masculino aqui é sempre o perigo, até mesmo de aliados.
É uma mulher em mundo de homens, como diversas vezes Jonathan Demme faz questão de mostrar em cenas de sexismo, como no início do longa, no elevador; quando Clarice é chamada por Jack e, sua sala, e sofre diversos olhares; ou mesmo quando o próprio Jack comenta sobre omitir fatos de violência sexual na frente da agente — ser sexista acontece sem querer também.
A produção de O Silêncio dos Inocentes contou com total apoio do FBI, que viu o longa como uma excelente oportunidade de recrutar mais agentes do sexo feminino para a agência de polícia federal americana.
Clarice Starling se tornou uma das grandes heroínas do cinema, e sua figura serviu de inspiração declarada de Chris Carter para criar a agente Dana Scully, do seriado Arquivo X.
A sugestão de Foster para o papel de Clarice partiu do roteirista Ted Tally, mas quando Jonathan Demme foi contratado para a direção, sua escolha era a atriz Michelle Pfeiffer.
Ela pediu um cachê de U$2 milhões de dólares para a Orion Pictures, o que inviabilizou qualquer negócio.
Jonathan então aceitou Jodie Foster como Clarice logo depois do primeiro encontro, pois viu a força e energia da atriz. A empolgação de Demme com o filme era grande, e ele nem esperou Ted finalizar o roteiro.
Assim que terminou de ler o livro de Thomas Harris, já estava assinado com a Orion para fazer o longa.
Os direitos de filmagem de O Silêncio de Inocentes eram do ator Gene Hackman, e ele mesmo queria interpretar Hannibal Lecter, ou Jack Crowford.
Mas depois que viu um clipe seu, na cerimônia do Oscar, por conta do filme Mississipi em Chamas (1988), achou que seria desgastante demais fazer papéis violentos.
A Orion topou produzir o longa com uma divisão de lucros com Gene.
Originalmente, os direitos eram do conhecido produtor megalomaníaco Dino de Laurentiis, que depois do fracasso de Manhunter (a primeira adaptação de Dragão Vermelho, primeiro livro de Thomas Harris de Hannibal Lecter, e que é chamado de Caçador de Assassinos aqui no Brasil), não quis mais renovar para a adaptação do segundo livro.
Mas o sucesso gigantesco de O Silêncio dos Inocentes o fez mudar de ideia, e ele foi o produtor das sequências, em dois longas lançados um ano após o outro, o que pode explicar a lamentável desidratação que Hannibal Lecter / Anthony Hopkins sofreu: Hannibal, que conta a história do que aconteceu com Lecter após os eventos de O Silêncio dos Inocentes, e mais uma vez Dragão Vermelho, dessa vez com o seu nome original.
Essa dinâmica também explica uma escolha criativa dos produtores de O Silêncio dos Inocentes.
O filme começa com Lecter preso, e Crowford é apontado como o responsável pela sua prisão. Mas no livro Dragão Vermelho (e sua primeira adaptação cinematográfica, Caçador de Assassinos, de 1986, e a segunda, Dragão Vermelho, de 2002), quem prendeu o doutor canibal foi o agente Will Graham.
O fato dele ser omitido no longa de Demme é por conta dos produtores de Silêncio não terem os direitos do primeiro livro, que ainda pertenciam a Dino, e não queriam apresentar O Silêncio dos Inocentes como sequencia de Caçador de Assassinos.
O Silêncio dos Inocentes é o produto mais bem apurado visceralmente de Hannibal Lecter nos cinemas.
Um filme obrigatório em qualquer biblioteca e listas de 10 Mais.
O estúdio de cinema americano entregou belos exemplares cinematográficos, além de O Silêncio dos Inocentes. Fez filmes como A Vida de Brian, Excalibur, Rambo – Programado Para Matar, Exterminador do Futuro, Platoon, os filmes do Robocop, os filmes de Bill & Ted, entre dezenas de outros. Hot Spot – Um Local Muito Quente, filme dirigido por Dennis Hopper, com Jennifer Connelly, também é da Orion.
Hannibal Lecter / Anthony Hopkins em Hannibal
(Hannibal, 2001)
Dez anos depois de O Silêncio dos Inocentes, tivemos mais uma aparição de Hannibal Lecter nos cinemas.
O produtor Dino de Laurentiis retomou os direitos da obra, e no nascer do novo século, quis dar nova vida ao psicopata canibal para comer quem aparecesse na frente.
Jonathan Demme e Jodie Foster não foram convencidos para retornarem a cadeira de direção e ao papel da agente Clarice Starling. Sir Anthony Hopkins, a princípio muito contrariado, aceitou retornar.
Dez anos se passaram desde que a astuta Clarice (agora interpretada por Julianne Moore) entrevistou Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) para a resolução dos crimes hediondos de Buffalo Bill.
Depois dos eventos finais do longa anterior, Hannibal fugiu para a Europa, e atua como um bibliotecário de uma família nobre de Florença.
Baseado no livro Hannibal, o filme adapta diversos pontos da obra, e dá um giro de 180 graus no final — no romance de Thomas Harris, Clarice e Hannibal se tornam amantes e são vistos pela última vez juntos em Buenos Aires.
Harris criou o final dessa maneira para não ter que escrever mais sobre Lecter. O diretor trazido por Dino para realizar a versão cinematográfica, Ridley Scott, perguntou ao escritor se ele estava “casado com o final“.
Harris disse que não, e essa bizarra escolha de casal feliz juntos foi abandonada a favor de um mais “american way of life“.
Scott, além da direção, também assumiu a produção do longa-metragem.
Caso Hopkins recusasse o papel de Lecter, os atores John Malkovich e Tim Roth foram considerados para o papel. O diretor vinha das filmagens de Gladiador, e aceitou a cadeira de direção após ler todos os romances de Harris.
Sir Anthony Hopkins tinha escrito ele mesmo um roteiro de uma possível sequência, onde Clarice matava o doutor, mas isso nem chegou a ser considerado. Foi ele quem indicou a atriz Juliane Moore para fazer a agente.
Eles já tinha trabalhado juntos no filme Os Amores de Picasso (1996). Jodie Foster não queira mais atuar em um papel pesado e violento, tinha detestado o livro de continuação, mas chegou a indicar a atriz Claire Danes para ser a nova Clarice.
Juliane Morre se mostrou um grande acerto. Ela não tentar emular a atuação de Jodie Foster, e constrói uma mulher segura e confiante, com olhar perdido quando a cena exige, e voluntariosa e assertiva quando necessária.
Juliane/ Clarice se impõe logo nas primeiras cenas, onde coordena um cerco contra uma criminosa, que, lamentavelmente, se torna uma ferida mortal em sua carreira, e é a força motriz que carrega o filme.
O que Clarice fará agora que 10 anos de sua vida no FBI estão em cheque?
Hannibal Lecter sumiu no mundo há uma década, mas uma pista trazida por uma de suas poucas vítimas sobreviventes, o multimilionário Mason Verger, pode fazer o canibal surgir novamente.
Terrivelmente deformado e paralisado por ações indiretas de Lecter, Mason Verger é um irreconhecível Gary Oldman, em uma atuação bastante convincente.
Aliás, Scott trabalha com a nata do Oscar no longa — Sir Anthony Hopkins, Julianne Moore e Gary Oldman têm os prêmios em suas estantes; e Giancarlo Giannini foi nomeado para um.
O ator italiano faz o policial Pazzi, que investiga a morte de um funcionário de um museu em Florença. É aqui que Hannibal Lecter se esconde, sob a identidade de Dr. Fell.
Pacci acaba descobrindo sua real identidade, e decide entregá-lo para Mason, que paga U$3 milhões de dólares por pistas que levem ao psicopata canibal.
Tudo que Mason deseja é uma vingação terrível contra Hannibal Lecter, e Pazzi só quer mais dinheiro para agradar sua jovem e linda esposa — os U$ 250 mil dólares pagos pelo FBI não dariam conta.
Ridley Scott constrói sua trama em cima desse eixo criativo, junto com a queda de Clarice no FBI, por conta da ação desastrosa no começo do longa.
Não há (outro) serial killer a ser perseguido, a não ser os fantasmas interiores que cada um alimenta.
A primeira aparição de Lecter em Hannibal acontece aos 22 minutos, em uma cena de flashback bem clichê e brega. E o primeiro encontro de Clarice com o doutor é uma cena rápida e distante em um sequestro-relâmpago.
Isso diz muito sobre a condução que Scott imprime ao longa, deixando cerimônias de lado com a mesma força de boas oportunidades desperdiçadas.
Anthony Hopkins está em uma interpretação bem mais suave do que O Silêncio dos Inocentes, e não se furta a matar Pazzi, e deixar sua mulher em paz.
Não se furta em matar capangas, mas deixar um vivo. Não se furta em ter Clarice nas mãos, para logo depois deixá-la ir em paz.
Hopkins está livre em um ambiente predatório, mas os bichos papões ficam na representação de Mason Verger e Paul Krendler.
“Ele sempre está comigo, como um mau hábito“, diz em certa parte Clarice, o que mostra que Ridley Scott tinha material bom para trabalhar, mas suas escolhas não o deixaram com um bom filme nas mãos, como se esperaria.
O ato final contra os “vilões” é simplista demais, com Lecter resolvendo o desfecho fácil, e Scott prefere focar a vida destruída de Clarice.
Paul Krendler, o escroto representante do Departamento de Justiça dos EUA — que tinha um papel menor em o Silêncio dos Inocentes, e aqui é interpretado por Ray Liotta — faz uma figura vilanesca, e ajuda a empurrar Clarice para o fundo do poço.
O fim que ele encontra, nas mãos de Hannibal Lecter, compensa o longa-metragem. É a sequencia que presenciamos o talento de Juliane Moore, alternando diversos estados de espírito e físicos, antes do encerramento.
Uma atuação intensa, metódica e concreta, ainda que ela não tenha resolução. Scott preferiu mostrar didaticamente tudo que acontece ao doutor canibal.
Em Hannibal, o brilho fica dividido entre Juliane Moore / Clarice Starling, em uma notável surpresa de substituição de Jodie Foster, sem no entanto superá-la, e Anthony Hopkins / Hannibal Lecter, livre e solto na selva humana para comer qualquer um que cruze seu caminho — só que alguns são mais que quaisquer outros.
O romance Hannibal de Thomas Harris foi considerado um dos piores de 1999.
Hannibal, de 2001, não é o pior filme do ano, mas não é uma continuação a altura.
Hannibal Lecter / Anthony Hopkins em Dragão Vermelho
(Red Dragon, 2002)
Lançado apenas um ano depois de Hannibal, Dino de Laurentis produziu de novo um filme do Dragão Vermelho.
Sua tentativa fracassada de 1986 o fez deixar de lado o bom doutor canibal, mas ver o sucesso de Silêncio lhe deu fome de novo. E ele quis fazer logo duas refeições.
Se a primeira, Hannibal, não foi tão boa, Dragão Vermelho aposta seguro no arroz com feijão. Thomas Harris aproveitou todo o sucesso que seu personagem estava obtendo, e relançou o livro Dragão Vermelho com um novo prólogo, que não tinha no original.
Claro, dedicado ao Dr. Hannibal Lecter. É com isso que o longa-metragem de Brett Ratner abre: a prisão de Hannibal Lecter, novamente interpretado por Anthony Hopkins, pelas mãos do agente do FBI Will Graham, interpretado por Edward Norton.
Anos depois, para desvendar outro crime, Graham tem que novamente se defrontar com o homem que quase o matou.
Toda a velha classe do Dr. Lecter está de volta ao espetáculo do cinema, mas que tem um sabor muito do tipo “já comi tudo isso antes… e melhor”.
Dragão Vermelho é menos apurado tecnicamente, usa soluções baratas de jump scare — sons altos na hora do susto — e a criação de tensão é básico demais.
Graham e Lecter aparecem juntos em apenas 4 cenas, assim como aconteceu com Clarice em O Silêncio dos Inocentes.
Passamos mais de 45 minutos de filme até sermos mostrados ao serial killer Fada dos Dentes. Graham leva bem mais tempo que isso.
Os antecedentes de Silêncio constroem ligações inevitáveis com esse Dragão Vermelho, que se passa em 1980, quase 12 anos antes dos eventos do filme de Demme.
Ratner prefere se ligar muito mais ao Silêncio do que criar uma obra realmente instigante com Hannibal Lecter.
A bela direção de fotografia de Dante Spinotti e da arrepiante trilha sonora de Danny Elfman emulam muito do longa de Demme, e takes-homenagem são constantes, o que imprime diversas lembranças ao espectador, ao mesmo tempo que mostra que ousadia não tem muito espaço aqui.
Mesmas cenas e modus operandi são vistos. Apesar de se passar em 1980, pouco parece que estamos dentro dessa época.
O nome Dragão Vermelho remete as duas pinturas de William Blake, realizadas entre 1805 e 1810, a respeito de uma série de ilustrações para a Bíblia, feitas por encomenda, e utilizadas para interpretação do livro bíblico do Apocalipse, Capítulo 12, Versículo 3.
O grande dragão vermelho e a mulher vestida no sol são fundidas no livro de Thomas Harris, base para o roteiro de Ted Tally, que retorna também para essa terceira parte.
Esses simbolismos são usados pelo serial killer da vez, o perigoso e problemático Francis Dolarhyde, apelidado pela imprensa de “Fada dos Dentes“.
Ele já trucidou duas famílias, de acordo com o calendário lunar, e a polícia corre contra o tempo para impedir um novo massacre. Ralph Fiennes interpreta o vilão, e convence com sua periculosidade e certa pena pelas provações que passou na vida.
O elenco que Dino arregimentou para o filme é muito bom: Harvey Keitel faz o papel de Jack Crowford (no lugar de Scott Glenn), Philipe Seymour Hoffman faz o repórter Freddy Lounds, e Emily Watson dá vida a Reba, que por pouco não promove a redenção do assassino.
Eles dão certo suporte ao drama de Will Graham, que entrega uma figura um tanto fragilizada para se criar expectativas de herói infalível.
Lecter se encanta com Graham, e vê muitas similaridades entre eles, o que provoca demais Graham em seu íntimo.
O agente é um prodígio em deduzir as formas da arquitetura mental com que os criminosos cometem seus atos, o que com frequência o põe nos próprios espaços de loucuras desses seriais killers.
Isso desgasta tanto Graham, que na ocasião da prisão de Lecter, ambos se feriram gravemente quando o agente deduziu que o canibal que procurava era o próprio doutor com quem procurava conselhos forenses.
Admirador de Lecter e do poeta místico William Blake, Dolarhyde continuaria a matança de famílias, mas não sabe o que fazer com o afeto que lhe é manifestado por Reba McClane (Emily Watson), uma deficiente visual que é sua colega de trabalho.
A abertura emocional que ela consegue de Francis é o que nos faz simpatizar um pouco com o assassino, e é o elemento mais interessante e subversivo que o longa-metragem de Ratner consegue.
A construção final do filme é boa, com um desfecho inesperado para Will, e um plot twist que, se parece barato, faz parte dos clichês dos quais o diretor Brett Ratner não podia escapar.
É de se destacar a atuação da atriz Mary-Louise Parker como Molly Graham, esposa de Will, que, apesar de pequena, é pontual.
O ator Anthony Heald volta como o dr. Erick Chilton e Frankie Faison como o enfermeiro Barnes.
Sir Anthony Hopkins afirmou que essa seria a última vez em que ele interpretaria Hannibal Lecter.
Dragão Vermelho se apoia demais em O Silêncio dos Inocentes, e assim se priva de mostrar a que jogo veio.
BÔNUS:
Hannibal Lecktor / Brian Cox em Caçador de Assassinos
(Manhunter,1986)
Em 1986, estreava nos cinemas a primeira adaptação do livro Dragão Vermelho, de Thomas Harris.
Michael Mann escreveu e dirigiu o filme, que ganhou o título Manhunter, traduzido aqui no Brasil como Caçador de Assassinos.
É nele que temos a primeiríssima aparição do doutor canibal na sétima arte — interpretado na ocasião pelo ator escocês Brian Cox.
Michael Mann é um diretor de apuro artístico visual intenso, bastante técnico, e tomou para si a missão de transformar o filme criminal em manifestação artística.
Ele tem estilo e substância, e seu Manhunter é prova disso, apesar de não ter obtido o sucesso que se esperava.
David Lynch foi considerado pelo estúdio para a direção, mas as conversas não avançaram.
O que não significou que Lynch não tocou no canibal: Sir Anthony Hopkins já afirmou em diversas ocasiões que Jonathan Demme sempre tinha um filme na cabeça quando estava fazendo O Silêncio dos Inocentes: o longa O Homem Elefante (1980), dirigido por Lynch.
A obra serviu de guia para Lynch pensar Hannibal Lecter.
Mann teve que alterar o título do filme de Dragão Vermelho para Manhunter a pedido do produtor Dino de Laurentiis, já que no mesmo ano havia um filme chamado O Ano do Dragão, e os executivos não queriam causar confusão com similaridades.
Se tratava também de um filme policial, dirigido por Michael Cimino, com roteiro de Oliver Stone, e estrelado por Mickey Rourke.
O papel de Jack Crawford neste filme é de Dennis Farina, um dos atores mais legais da indústria do cinema, um ex-policial que virou ator quase com 40 anos, e que interpretou diversos vilões durante sua carreira.
Ainda não existia Clarice Starling nessa época, e como em Dragão Vermelho de Ratner, quem Jack orienta aqui é outro agente, Will Graham, interpretado por William Petersen.
O ator não era o preferido do estúdio, que desejava Don Johnson, para repetir uma dobradinha com Michael Mann, como em Miami Vice, seriado que o diretor e ator trabalhavam juntos. Mas Petersen que trabalhou com Mann em Profissão: Ladrão (1981), tinha a preferência do diretor.
Enquanto Brian Cox fazia Hannibal Lecktor em Manhunter — uma inexplicável alteração de grafia — Anthony Hopkins, nessa época, fazia o Rei Lear nos Teatro Nacional, na Inglaterra.]
Em 1991, quando Jonathan Demme já tinha feito O Silêncio dos Inocentes e a fama de Hannibal ganhava o mundo, era Brian Cox quem fazia o Rei Lear, no Teatro Nacional, na Inglaterra.
Cox afirmou que a base de sua atuação para Hannibal foi o serial killer Peter Manuel, a “Fera de Birkenshaw“, que matou sete pessoas na Escócia.
Ele aparece por cerca de 24 minutos no filme, sempre em sua cela, muito branca, com grades regulares. Um cenário bem diferente do qual nos acostumamos em Silêncio.
Mann gravou Cox performando Hannibal em apenas três dias.
O escocês ganhou o papel depois que o diretor o viu atuando em uma peça da Broadway, chamada “Rat in the Skull“. Outros atores no páreo foram Brian Dennehy, Bruce Dern, John Lithgow e Mandy Patinkin.
O filme toca em assuntos como perigo de abandono social, mídia sensacionalista, e as dificuldades de acessibilidade.
Joan Allen interpreta Reba de maneira muito charmosa e sutil, e Steven Lang como Freddy Lounds tem uma morte “brilhante” bem melhor do que Seymour teve no longa de Ratner.
A ação se passa em 1978 no livro, mas no filme é 1981. É dito que Graham prendeu Lecktor há três anos, depois dele matar nove pessoas.
Em certa parte do longa, dá-se a a entender que todas as vítimas eram garotas universitárias. Duas pessoas sobreviveram aos ataques de Hannibal: uma está presa em um respirador em um hospital de Baltimore, e outra em um hospital psiquiátrico em Denver.
Há diversas diferenças entre os personagens do longa de Ratner e Mann. O Graham de Petersen é bem mais perturbado, e sua relação com Lecktor mais problemática, e apesar dos diálogos serem os mesmos, a sagacidade de Hopkins em tripudiar em cima do Graham de Norton é mais eficaz.
Não há o prólogo visto no filme de Ratner, já que esse foi incluído tempos depois em uma edição revisada do livro.
“Você se julga mais esperto do que eu?”
“Eu sei que eu não sou, doutor”
“Então como que você me pegou?”
“O senhor tem certas…desvantagens”
“Como assim?”
“Você é…insano”
Todas as particularidades de Mann estão em Caçador de Assassinos: belas tomadas, mar, e azul. Muito azul.
Mann é dono de excelente olhar cinematográfico, e até uma cena de elevador com ele ganha contornos sofisticados.
A trilha sonora é marcante em muitos momentos: cenas chaves como descoberta de uma pista, um ataque criminoso, interações de personagens, com destaque especial para a cena final.
Michel Rubini e The Reds são os autores da trilha de Caçador de Assassinos, e são fundamentais para Mann construir seu longa.
Seu apuro técnico permite que este seja um thriller atmosférico, hipnótico, incômodo e perturbador, mas policial demais.
O peso do horror, da violência e da carga psicológica são menores na conta. Uma cena final ensolarada na praia — claro, com mar — mostra que Mann tinha uma ideia na cabeça, e que não era a que Demme viu anos depois.
Hannibal na televisão
Uma onda (nada) criativa durante a segunda parte da década de 2010 foi transformar filmes consagrados em seriados de TV, e, no caso, de streaming.
Os exemplos vão de O Exorcista, de William Friedkin, a 12 Macacos, de Terry Gillian. O nosso doutor canibal não escapou disso. Hannibal é uma série desenvolvida por Bryan Fuller para a TV americana NBC.
A série tem elementos dos livros Dragão Vermelho e Hannibal de Thomas Harris, e foca na relação entre o Will Graham e o Dr. Hannibal Lecter, aqui interpretado por Mads Mikkelsen, conceituado ator dinamarquês.
A atriz Gillian Anderson faz a dra. Bedelia du Maurier, psicoterapeuta de Hannibal. Anderson foi a agente Dana Scully do FBI no seriado Arquivo X, uma das grandes heroínas da cultura pop, e uma das primeiras a representar as mulheres de maneira mais natural no misógino mundo da indústria cultural.
Sua criação é reflexo direto da obra de Jodie Foster como Clarice Starling em O Silêncio dos Inocentes — o produtor Chris Carter faz questão de frisar isso em diversas entrevistas.
Hannibal teve 3 temporadas, com 13 episódios cada.
JONATHAN DEMME
Nascido em 1944, Jonathan trabalhou para Roger Corman, fez filmes como Totalmente Selvagem (1988), De Caso com a Máfia (1988), filmes musicais como Stop Making the Sense (1984), do Talking Heads, antes de ser agraciado com o Oscar de O Silêncio dos Inocentes.
Depois, ainda fez grandes filmes, como Filadélfia (1993), Sob o Domínio do Mal (2004) e um documentário sobre um dos mais celebrados ex-presidentes dos EUA, Jimmy Carter.
RIDLEY SCOTT
O cineasta britânico Ridley Leighton Scott nasceu em 1937 e é um renomado diretor e produtor de cinema.
Fez Alien (1979), Blade Runner (1982), Thelma e Louise (1991), Gladiador (2000), Falcão Negro em Perigo (2001), Perdido em Marte (2015) e diversos outros longas de prestígio e grande audiência.
É irmão do também cineasta Tony Scott, que infelizmente, cometeu suicídio aos 68 anos, ao pular da Ponte Vincent Thomas em Los Angeles, Estados Unidos. Fez filmes famosos, como Top Gun (1986), Um Tira da Pesada II (1987) e Estranha Obsessão (2001). Fome de Viver (1983) é o mais célebre, e hoje um cult dos cinemas.
BRETT RATNER
O diretor Brett Ratner fez filmes como A Hora do Rush (1998), A Hora do Rush 2 (2001) e X-Men: O Confronto Final (2006). Iniciou a carreira dirigindo videoclipes de rap e hip hop.
Atualmente, está apagado, depois de severas acusações do movimento #MeToo, que escancarou os problemas de abuso e sexismo no setor da cultura.
Foi graças a esse movimento que o produtor de cinema Harvey Weinstein, e outros casos conhecidos do setor do ramo do entretenimento, como os de Les Moonves, Kevin Spacey, Charlie Rose, Brett Ratner ou Bryan Singer, estão sendo acusados de má conduta sexual.
MICHAEL MANN
Michael Mann veio do universo da TV, onde era o responsável pela série Miami Vice, que narrava as aventuras de dois policiais contra o crime, em uma Miami estilosa dos anos 80.
Seu perfil técnico e arrojado permitiram construir uma base sólida no cinema, em especial nos anos 90, com filmes como O Último dos Moicanos (1992), Fogo Contra Fogo (1995) — em que Robert De Niro e Al Pacino contracenam juntos — e O Informante (1999).
DINO DE LAURENTIS
O produtor foi responsável por diversos clássicos do cinema, como Serpico (1973), Os Três Dias do Condor (1975), Flash Gordon (1980), Duna (1984), Comboio do Terror (1986), Uma Noite Alucinante 3 (1992), Corpo em Evidência (1993), os dois filmes de Conan (1982-1984)com Arnold Schwarzenegger, entre muitos outros.
/ EM TODOS OS FILMES. O ator Frankie Faison aparece nos quatro filmes de Hannibal Lecter. Em Silêncio, Hannibal e Dragão, ele interpretou o enfermeiro Barney. Em Caçador, ele faz o tenente Fisk.
/ IGNORÂNCIA. Há mais um filme lançado nos cinemas de Hannibal Lecter. Hannibal: A Origem do Mal, de 2007. Tem roteiro do próprio Thomas Harris, baseado em seu romance Hannibal Rising. Ele conta a infância e adolescência de Hannibal, com Gaspard Ulliel no papel de Lecter. A direção é de Peter Webber, e é sua obrigação ignorar o longa, que é fraquíssimo.
/// CHILTON E LECTER. O ator Tim Roth interpretaria o Dr. Erick Chilton em Dragão Vermelho de 2002, mas o ator Anthony Heald se tornou disponível para a produção, e retomou seu papel de diretor da prisão psiquiátrica de Lecter. Em Hannibal, de 2001, Roth era um dos atores que estavam na mira dos produtores para interpretar Hannibal Lecter.
/// FILHO. No livro Dragão Vermelho, o nome do filho de Will Graham é Willy. Em Caçador de Assassinos, é Kevin. No filme Dragão Vermelho, é Josh.
/// MULHERES. Apesar da força de Clarice Starling, o poderio feminino ainda é reduzido no universo cinematográfico. A Senadora Martin e a agente especial Ardelia Mapp tem papéis pequenos no filme de Demme, e em Hannibal, as duas nem sequer aparecem, assim como Margot Verger, irmã de Mason.
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