Johnny Mnemonic, mais do que um filme baseado numa obra do pai de Matrix, William Gibson, mais do que antecipar conceitos e teses do filme de mesmo nome, e mais do que ser estrelado pelo mesmo ator, Keanu Reeves, entrega diversos elementos da síntese do que se esperava nos anos 90 a respeito dos anos 2000, do novo milênio.
O longa-metragem Johnny Mnemonic é um cyberpunk dirigido por um artista plástico, Robert Longo, e lançado nos cinemas em 1995, e que se passa em 2021, e surpreendentemente acerta muitas situações que vivenciamos na atualidade.
A mais louca é uma epidemia global virótica que atinge toda a Terra, o que alterou toda a dinâmica da sociedade em questão.
E o inevitável e previsível reflexo de uma estafa mental que o excesso de informações causa nas pessoas.
Há boas (e desnecessárias?) cenas de ação, luta, tiroteios, mortes e violência gore (tem um torso picotado!), e o protagonista, vivido por Keanu Reeves, já antecipa o filme que faria a fama do ator alguns anos depois, o já citado Matrix, que empresta/chupa vários conceitos e mood de Johnny Mnemonic.
O filme é baseado em uma história curta de mesmo nome, escrita por William Gibson, o mesmo criador de Neuromancer (1984), praticamente o inventor do gênero cyberpunk.
Gibson foi o sucessor natural de outro pai do gênero, o escritor Philip K. Dick, que escreveu Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968), mais tarde adaptado para os cinemas como Blade Runner – O Caçador de Androides (1982).
Em Neuromancer, Gibson usa termos como “hacker” e “matrix” (sim, MATRIX) como conceitos de construção e interferência de consciências, anos antes dos (então) Irmãos Wachowski fazerem isso em seu filme Matrix.
Ainda que não seja um grande filme, nem mesmo a visão idealizada do diretor, muito menos do seu autor original literário, nenhum filme capturou tanto as ansiedades e exaustão da vida online tão bem até hoje quanto Johnny Mnemonic.
Tal qual seu implante HD no cérebro que vaza e lhe confunde, as ideias e predições que fez se confundem numa realidade distópica real em que todos estamos.
Se a Pharmakom esconde a cura da praga SAM, no mundo real a Pfizer e Moderna correm atrás de contratos federais para assegurar a maior quantia de vacinas contra covid-19. Se todos os eletrônicos causam SAM no mundo de Johnny, no nosso as redes sociais derretem sanidade mental da geração millenium e Z de modo talvez irreversível.
Esse pequeno clássico cyberpunk de 1995 captura o espírito pré-Matrix (1999) e pré-Cyberpunk 2077 (2020).
Um erro comum de interpretação a respeito de ficção científica é que ela pode predizer o futuro, quando na verdade está mais como aviso de descrição.
Quando um ainda desconhecido William Gibson escreveu o conto neon noir Johnny Mnemonic em 1981, ele o fez no rastro de um de seus escritores preferidos, Ray Bradbury, autor de Fahrenheit 451 (1953), e não pensava ser presciente, nem mesmo quando se tornou um dos pais do cyberpunk.
A presciência não pode ser uma intenção da ficção científica, mas o senso de autodestruição inata na humanidade se encarrega de ligar a escuridão com o que pode se tornar real.
O famoso e popular Matrix construiu seu filme com elementos de Johnny Mnemonic, de Cidade das Sombras (1998), o filme/anime Ghost in The Shell (1995), muitas referências literárias e filosóficas, além de uma chupada monstra da história em quadrinhos Os Invisíveis (1994-2000), da editora DC Comics, criada pelo escritor Grant Morrison, onde temos a primeira personagem transsexual em um elenco principal de uma empresa mainstream (e ela é brasileira!).
De Johnny/Keanu Reeves, os Wachowski pegaram para seu Neo/Keanu Reeves os implantes neurais/hardware da cabeça, uma inquietação para querer saber mais de si mesmo, uma habilidade inerente para agressão e lutas, um inevitável senso de auto sacrifício (forçado a princípio, depois por fortaleza moral), e mais importante, a ambientação cyberpunk inerente à ele. Johnny Mnemonic (que não é chamado desse jeito no filme) se sustenta sozinho, é um bom filme divertido de ação e alguma consideração filosófica sobre o que o futuro previsto para 2021 teria pela frente — como a praga da Covid-19 e o estresse de consumo de informação.
Os caracteres japoneses que aparecem em cima dos dizeres “Internet-2021” na abertura do filme quer dizer “hackneyed, clichéd” em inglês, algo como “hackeado, como sempre”, em tradução livre para o português.
Esse é outro ponto que Matrix pegou do filme Johnny Mnemonic, o mix oriental-ocidental em grafias para criar uma identidade visual nas interfaces gráficas que são apresentadas.
Essa ambientação oriental é reflexo direto da escrita de Gibson, que povoou seus livros (que são uma espécie de “Gibson-verso) de uma influência demográfica e sócio-cultural de povos asiáticos, bem como a influência nefasta das grandes corporações, que controlam muitos ou todos os setores da sociedade.
Johnny Mnemonic, O Cyborg do Futuro
(Johnny Mnemonic, 1995,
de Robert Longo)
spoilers
Johnny (Keanu Reeves) transporta dados importantes num HD localizado em seu cérebro, com capacidade de memória de 80 gigabytes.
Para realizar um serviço no qual pode recuperar suas memórias perdidas, ele duplica a capacidade de armazenamento para 160 gigas. Mas seu último contrato exige que ele transporte 320 gigas de informação. Isso o coloca entre numa grande conspiração que envolve uma praga mundial, corporações, guerrilheiros anarquistas e os excluídos da sociedade.
Essa visão distópica de um futuro dominado por um do de hi-tech executivo dominante e um low-tech social pobre vai temperar todo o longa de Robert Longo, sua primeira e única experiência cinematográfica.
Nada mais 2021 do que ver em Johnny Mnemonic uma tela com os dizeres “Internet 2021“. O filme começa no dia 17 de janeiro de 2021, e é uma quinta-feira no filme (mas a data caiu em um domingo, confere aí no calendário rs).
Johnny acorda depois de uma noite de sexo com uma jovem. Ele parece esquivo, e diz não se lembrar de seu nome, e o que parece um desdém para a moça, na verdade é reflexo do seu implante cerebral HD, já que para fazer o tpo de serviço que executa, teve que “abrir espaço” em sua mente, e lembranças de sua infância foram perdidas.
Como dito, as grandes corporações comandam no mundo hoje, que sofre com uma pandemia de SAM – Síndrome de Atenção Nervosa (“nerve attenuation syndrome” – NAS, no original), que provoca epilepsia até a morte.
Sua causa é desconhecida, bem como a cura. Uma das pistas é o excesso de informação na atualidade.
Na resistência, estão os Lo-Teks, um grupo de oposição formado por hackers e guerrilheiros dos conflitos informatizados.
As corporações não se furtam a contratar mercenários para se protegerem e atacarem, e grande sindicatos do crime prosperaram nesse 2021, como a Yakuza, máfia japonesa de enorme poder.
Vírus letais como o Gelo Negro queimam o cérebro das pessoas desatentas e desprotegidas que acessam a internet.
A informação é um bem valioso, e não pode transitar seguro na rede. É nisso que entram os couriers mnemônicos, agentes de elite que transportam grande quantidade de dados em implantes cerebrais. Johnny é um deles.
Mais do que tudo, ele deseja recuperar suas lembranças. É isso que faz ele pegar um serviço de Ralf (Udo Kier), um intermediário que lhe manda os jobs.
O diretor Longo indica que a praga pode ter começado na Noruega em 2010 em algumas cenas, e uma em Beijing Central, para onde Johnny vai, é assustadoramente real, com a população usando máscaras tal qual a covid-19 para se proteger.
Outro momento surpreendente é quando o agente encontra seus clientes, que parecem ser cientistas orientais bem ansiosos e nervosos, e mostra o implante na nuca para começar os trabalhos, bem parecido com o que teria em Matrix dos Wachowski.
Os 320 gigabytes que ele recebe oferece grandes riscos, como vazamento sináptico, o que pode lhe afetar suas funções cerebrais, bem como aumentar as chances do arquivo corromper na hora da transferência de entrega.
Aparentemente, seus clientes atuais são desertores de uma corporação médica, a Pharmakom.
Sabemos que tudo vai dar errado quando Johnny luta para se manter em pé depois de receber as informações no implante e mafiosos da Yakuza entram no prédio em que estão, liderados por Shinji (Denis Akiyama).
O agente tem que correr e lutar por sua vida, mas os cientistas e alguns seguranças deles são massacrados pelos yakuzas.
Para não deixar as referências japonesas ainda mais salientes, passa até um anime na TV durante a matança. Shinji tem uma arma bem legal e hi-tech: uma espécie de laço laser que pode cortar praticamente qualquer coisa.
Johnny consegue escapar (sem conseguir a chave completa de decodificação que é necessária para retirar o que foi colocado no implante), e em uma cena quando ele passa no aeroporto, um scanner automático médico de segurança já lhe alerta que ele está com princípio de vazamento sináptico.
O courier mnemônico tem que correr contra o tempo agora (o scanner também diz que Johnny tem dislexia, situação que Keanu Reeves realmente sofre).
É hora de vermos Takahashi (Takeshi Kitano), um dos chefões da Pharmakom, e que parece ter uma relação bem íntima com a alta cúpula da Yakuza também.
Johnny suspeita de todo o acontecido, e desconfia que foi enganado por Ralf. Ele decide procurar uma clínica médica-cibernética de segunda em um gueto qualquer em New Jersey, mas quase é morto.
É salvo à revelia por J-Bone (Ice-T), aparentemente um guerrilheiro, que passava por onde ele estava. Johnny então resolve procurar diretamente Ralf, no bar-balada onde fica. Também conhecemos agora Jane (Dina Meyer), uma segurança ciberneticamente aprimorada que deseja ser contratada como guarda-costas deles, mas é recusada por estar com sintomas de SAM.
Johnny pressiona Ralfi, e de novo se vê em apuros quando descobre que ele está em conluio com a Yakuza, com Shinji e seus homens já a caminho do lugar.
Jane decide ajudar Johnny por dinheiro e a dupla consegue fugir depois de um confronto. Shinji fica tão furioso em perder Johnny pela segunda vez que mata sem cerimônias Ralf, em uma ótima cena de gore gráfico.
O agente e Jane recebem ajuda de J-Bone também — ele aparenta ser o líder de um grupo que detém alguns recursos, o que deixa dúvidas em Johnny sobre quem ele realmente é.
Entre outras antecipações que Johnny Mnemonic trouxe, em uma cena dentro de uma loja de eletrônicos, Johnny se refere a um aparelho como “iPhone“, mais de 20 anos antes da Apple criar seu aparelho com o mesmo nome — a referência em questão diz a respeito de um “eyephone“, um aparelho comunicador ativado pelos olhos (“eye” em inglês). É aqui que vemos caracteres japoneses e chineses integrados ao alfabeto convencional, o que Matrix usaria muito em seu longa
Ele explica para Jane, que não entende nada dos trabalhos mnemônicos, que para caber informações na sua cabeça, precisou retirar algo. Ela fica horrorizada ao saber que ele não tem lembranças da infância.
Robert Longo mostra aqui Johnny todo paramentado com aparelhos de realidade virtual, óculos de imersão, luvas de tecnologia touch de hologramas e tudo mais que era “futurista” nos anos 90, com vários acertos sobre o que temos realmente hoje em dia.
É chegada a hora também da inserção mais louca do filme, quando Takahashi contrata um assassino profissional de fora dos quadros da Yakuza para rastrear a matar Johnny.
É hora de entrar em cena Karl Honig, o Pregador, um padre maluco semi-cyborg da Igreja da RE-Transfiguração, interpretado por um Dolph Loudgren cabeludo e barbudo completamente pirado, que trucida suas vítimas em nome de Jesus (!).
Enquanto isso, Johnny descobre que Jane tem SAM, e ela diz para procurarem Spider (Henry Rollins), um médico que pode ajudar o courier, que já sofre com sintomas mais fortes do vazamento sináptico do implante.
É lá que Johnny descobre mais a respeito da SAM, que Spider diz ser provocada por absolutamente tudo que é eletrônico.
Takahashi conversa com um holograma, que logo saberemos se tratar de Anna Kalmann (Barbara Sukowa), a fundadora da Pharmakom, que agora vive no ciberespaço (!). Ela está bem apreensiva com o que Johnny carrega.
Os cientistas desertores de sua empresa na verdade hackearam os arquivos internos da firma, e deram para Johnny levar em seu cérebro/HD nada mais nada menos que a cura da SAM. Spider descobre isso também com Johnny, e indica que alguém chamado Jones, que está com os Lo-Teks, pode ajudar a extrair as informações.
O Pregador finalmente rastreia o agente e Jane, e Spider se sacrifica para salvar os dois. Eles retornam para J-Bone — que na verdade é o líder dos Lo-Teks –, e ele sabe como extrair o que Johnny carrega para salvar o mundo.
Jones na verdade é um golfinho (!), que consegue decodificar qualquer código. Na história original, os Lo Teks eram anti tecnologias, mas na adaptação para o cinema eles estão bem próximos disso.
Tendo sido treinado pela Marinha dos EUA para hackear submarinos inimigos remotamente, Jones, o golfinho, tem todas as qualificações para tentar quebrar os códigos e arrancar a cura da cabeça de Johnny.
Pois sem as chaves criptografadas de entrega para extrair o implante, Johnny vai ter que passar por esse processo se quiser viver.
Os vazamentos sinápticos estão em níveis perigosos, e a aparência de Johnny já está bem detonada nessa altura. A Yakuza consegue rastrear a localização, e chega todo mundo: Takahashi, Shinji e até o Pregador.
As estruturas do esconderijo são danificados e Johnny perde a chance de decodificarem os arquivos. Agora ele fica entre a vida e a morte, com a única opção de extraírem tudo do seu cérebro.
Robert Longo não consegue definir muito bem o objetivo de Takahashi no lugar, que num primeiro momento rende Johnny e parece querer matá-lo (lembre-se que ele foi quem contratou o padre psicopata).
Mas Shinji aparece e mata seu chefe, aparentemente seguindo ordens superiores (Anna Kallman?). Ele e Johnny lutam, e o agente o mata com sua própria arma.
Takahashi ainda está vivo, e entrega uma peça que descriptografa as informações para Johnny. O que fica subentendido é que ele faz tudo isso por conta da sua pequena filha, morta pela SAM, uma doença que tinha cura ao alcance de suas mãos — é sua forma de vingança pessoal contra Anna e a Pharmakom. Ainda tem o problema do Pregador, que está detonando geral.
A luta e sua morte — torrado! — é outra síntese dos anos 90 no que se pensava a respeito de confronto e desfecho.
É a mesma situação do que acontece depois, quando Johnny tem que mergulhar no ciberespaço, numa representação virtal-metafísica dele e de Jones ao tentar descriptografar os arquivos e achar a cura, com Anna aparecendo no meio do processo.
Ao que parece, ela poderia ser mãe de Johnny? E quer ajudar, é isso? É o que as lembranças recuperadas do rapaz parecem indicar.
Johnny Mnemonic termina de modo querendo ser poético, com ele e e Jane juntos, sua memória finalmente recuperada, o prédio da Pharmakom em chamas, e com direito a uma mal-clocada piadinha final, com o cadáver do semicyborg Pregador torrado aparentemente se levantando. Mas era apenas ele sendo guinchado para se retirado dali.
“É só lixo, tira isso daqui.”
Uma metáfora, talvez?
Uma produção cyberpunk
O filme foi um fracasso, como qualquer obra de ficção científica pretensiosa e à frente de seu tempo.
Não arrecadou nem 20 milhões de dólares dos 30 milhões gastos na produção, bancada pela Tristar Pictures, então subsidiária da Sony, que tinha grandes planos para o longa-metragem.
O papo metafísico de Johnny Mnemonic, tal qual o implante neuronal HD dele, começou a vazar, literalmente no mundo real: a campanha de marketing do filme cyberpunk foi uma das primeiras a aproveitar a mais popular onda dos anos 90: a internet, uma das jogadas mais criativas e inteligentes da Sony.
Foi lançado um site oficial do filme, que prometia “hackear o cérebro” dos visitantes, a fictícia Pharmakom teve ações de branding em cafeterias com a marca da empresa, mas o destaque ficou por conta de mais de 20 mil dólares em prêmios (!) de uma caça virtual de pistas em diferentes sites.
Curiosamente, William Gibson, criador do conceito de ciberespaço, não participou de nenhuma ação virtual nessas ações de marketing — até porque ele não gostou do resultado final de Johnny Mnemonic.
Conhecido por ser recluso e avesso à entrevistas, isso não foi novidade. Abaixo você pode conferir uma rara aparição do escritor, explicando como que criou o ciberespaço.
Outro produto relacionado nos planos ambiciosos do marketing envolveu um game em CD-ROM para computadores.
Com o mesmo nome do filme, Johnny Mnemonic, ele apresenta outro courier mnemônico, em um game de puzzle.
A softhouse CineACTIVE desenvolveu o jogo, que tem mais de 90 minutos de full-motion video, gravação com atores reais, como num filme, uma febre na indústria de videogames na época, mas que encaixou bem aqui.
Cheio de quebra-cabeças e elementos vistos no filme, o jogo chegou a ter uma adaptação para o Mega-CD/Sega CD, o add-on “32-bits” da Sega para seu console 16-bits, mas não chegou a ser lançado. Ele vazou do implante, digo, dos arquivos da empresa, anos depois para a internet.
A intenção de Robert Longo e William Gibson com Johnny Mnemonic era fazer um filme de arte (!), com orçamento pequeno e controle criativo absoluto.
Mas a produção escalonou tanto que eles estavam com 30 milhões de dólares na mão, quando apenas 1,5 milhões bastariam para o que eles estavam querendo.
O crescimento da alta tecnologia, os diversos gadgets que estavam sendo lançados, a novidade da internet, tudo isso fez a Sony injetar grana, já que via um ambiente favorável para o crescimento disso tudo atrelado à um filme que tratasse desse universo.
Há duas versões de Johnny Mnemonic, uma versão ocidental e outra exclusiva do mercado japonês, que tem mais cenas com o ator Takeshi Kitano, que é uma celebridade no país.
É essa versão que mais se aproxima de uma “versão do diretor”, e da qual Gibson mais gosta. Aliás, o escritor sempre recusou a autoria do roteiro, e queria inclusive retirar seus créditos do longa.
Há 3 trilhas sonoras de Johnny Mnemonic: uma com música da banda de rock industrial Black Rain, escolhidas a dedo por Longo, que não entraram no filme (lançadas posteriormente em CD); uma segunda, composta por Mychael Danna, usada para o lançamento japonês; e a versão padrão internacional, composta por Brad Fiedel a pedido da Sony, a revelia de Longo e Gibson.
Em certo momento toca a canção I See Through, dos cara do Rollins Band, escrita pelo vocalista e frontman, Henry Rollins, que está no filme no papel de Spider.
Em 2021, Robert Longo criou uma nova versão de Johnny Mnemonic, preto e branco (!), onde ele mais se aproximou da versão do que sempre imaginou.
Uma entrevista para o site Screen Slate ainda revela que ele se baseou nos filmes A Pista (1962) e Alphaville (1965) para fazer seu Johnny Mnemonic.
O longa foi lançado promocionalmente nos festivais The Tribeca e Rockaway Film.
Sempre foi um desejo de Longo marcar o aniversário de 25 anos do longa com uma espécie de redenção do filme, dada a sua relação particular que criou com a obra. Ele relata na entrevista muitas dificuldades para fazê-lo.
Em certo ponto, pensou em reescrever todo o longa, de filmar em preto e branco, que, aliás, era o plano original dele desde o começo — queria ser a versão contemporânea de Alphaville, filme francês de 1965, sobre uma cidade de mesmo nome, dominada pelo computador Alpha 60 que aboliu os sentimentos, uma obra dirigida por Jean-Luc Godard, um dos grandes mestres do cinema mundial.
Mas trabalhar em Hollywood foi difícil, lamenta Longo, que diz que nem mesmo queriam usar “mnemonic” no título (a palavra mnemônico vem de um conjunto de técnicas utilizadas para auxiliar o processo de memorização, com suportes criativos como esquemas, gráficos, símbolos, palavras e/ou frases relacionadas com o assunto que se pretende memorizar), e, com efeito, o filme quase se chamou “Johnny Gets His Gun“, algo como “Johnny pega sua arma“, “or some shit like that“, nas palavras do diretor.
Com o mega sucesso de Velocidade Máxima, lançado meses antes de Johnny Mnemonic, os executivos ficaram mais eufóricos ainda em aproveitar o hype, antecipando seu lançamento na grade de verão nas telonas, destinado à grandes produções
Com isso, o filme de Longo teve que competir com pesos pesados como Batman Eternamente e Duro de Matar 3 – A Vingança.
Longo editou seu filme com Ron Sanders, que trabalhou muitas vezes com David Cronenberg, um cineasta bem disruptivo em seus temas sci-fi urbanos cabeçudos, metódicos e sexualmente pesados.
Eles estavam indo em uma direção bem específica, mas o estúdio trouxe outro que mudou tudo. “I mean, I’d say half the movie is what I want“, afirmou Longo.
A nova versão de Johnny Mnemonic começou com uma versão ripada de um blu-ray do Longo, por iniciativa única e exclusiva dele (!).
Eventualmente, ele contatou um dos produtores do filme na época, Don Carmody (de quem ele gostava), e disse que estava planejando uma versão preto e branco do filme por conta de aniversário de 25 anos de lançamento.
Queria jogar no YouTube mesmo, mas foi convencido a esperar. Don conseguiu as filmagens originais, o que eliminou um dos medos de Longo, já que sua versão arrancada do blu-ray podia ter qualidade ruim em um projeto de cinema.
A Sony só não quis que essa nova versão fosse entendida como um “director´s cut“, um corte do diretor, mas o público não viu assim, a despeito das duas versões do longa — internacional e japonesa (que tem mais cenas com Takahashi).
A lot of black-and-white movies are not really black-and-white. They’re kind of gray. The contrast is really pumped up now [in this cut] so it’s very black-and-white
afirma Longo na entrevista para o Screenslate
O diretor ainda indica La Jetée (1962), outro filme francês como inspiração, a base para o remake famoso americano, 12 Macacos, de Terry Gilliam, outro sci-fi cabeçudo e maluco, dessa vez com viagens no tempo e discussões morais sobre a sanidade.
William, Keanu e Longo se tornaram bem próximos durante a produção do filme (o ator é padrinho do filho do diretor), e a frustração de Longo com o andamento do filme perpassa para o personagem de Reeves, por isso a angústia e raiva de Johnny em muitos momentos.
Em uma cena que aparece um monitor médico, é indicado que Johnny tem dislexia, de forma a disfarçar o implante, mas Keanu Reeves realmente sofre disso. Ele não foi a primeira escolha para o filme, já que Val Kilmer estava no páreo, mas deixou o projeto quando recebeu o papel do Homem-Morcego em Batman Eternamente (1995), um dos longas mais fracos do herói (mas não o pior).
Ele ainda faria o bandido Chris Shilerhis em Fogo Contra Fogo (1995), de Michael Mann, um dos melhores filmes policiais de todos os tempos no cinema, com dois dos melhores atores da geração anos 1970/80/90: Robert De Niro e Al Pacino.
O papel de Chris estava com Reeves, mas ele teve que declinar. Em algum momento, até Christopher Lambert foi considerado para ser Johnny Mnemonic.
No Brasil, Johnny Mnemonic teve o sub-título “O Cyborg do Futuro“, tentando pegar onda no título Exterminador do Futuro (1984), filme de James Cameron que se chama na verdade apenas The Terminator, mas que por conta do novo nome BR, provocou uma enxurrada de nomes adaptados.
Tudo deve ter começado com De Volta para o Futuro (1985), que realmente é traduzido corretamente (Back to The Future), mas depois o mercado brasileiro se viu com RoboCop: O Policial do Futuro (1987), mas que se chama apenas Robocop; depois veio Cyborg: O Dragão do Futuro (1989), uma bomba divertida da Cannon com Jean-Claude Van Damme que tem quase o mesmo nome de Johnny Mnemonic, sendo que é apenas Cyborg no original; Vingador do Futuro (1990), que na verdade se chama Total Recall (“Rechamado Total“); também teve O Passageiro do Futuro (1992), um conto de terror sci-fi adaptado de Stephen King (que odiou a obra e exigiu que seus créditos fossem retirados), que leva o nome The Lawnmower Man no original (algo como “o cara do cortador de grama“); e até em obras não-Hollywoodianas, como o já citado anime Ghost in The Shell, lançado no mesmo ano de 1995, e que aqui se chama Fantasma do Futuro.
Nem filmes fora do gênero de ficção científica escaparam, como O Garoto do Futuro (1985), que é Teen Wolf no original (“Lobo Adolescente“).
O fato do protagonista ser Michael J. Fox, o mesmo de De Volta Para o Futuro, lançado poucos meses depois, talvez explique a “jogada jenial” de marketing da distribuidora por aqui.
Neuromancer/Johnny Mnemonic
O cyberpunk nasce com o livro Neuromancer (1984), que mostra como o avanço tecnológico foi destrutivo para a humanidade e como a dependência dela nos tornou ainda piores como seres humanos.
Conceitualmente, a expressão “realidade virtual” se encontra no tecido cultural desde a época do Renascimento, sendo que nos anos 1930, Antoine Marie Joseph Artaud (1896-1948) já o usava em experimentações de seu teatro.
O francês foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês, ligado fortemente ao surrealismo, criador do O Teatro e seu Duplo, um dos principais escritos sobre a arte do teatro no século XX.
Em 1982, a Disney fez um de seus filmes mais ousados, Tron – Uma Odisseia Eletrônica, que primeiro mostrou nas telonas uma realidade digital virtual bem crível para a época — os efeitos especiais foram considerados proibidos até de concorrer ao Oscar!
Uma das sinopses oficiais de Neuromancer, da edição de 30 anos que a editora Aleph lançou em 2014: “No futuro, existe a matrix: uma alucinação coletiva virtual, na qual todos se conectam para saber tudo sobre tudo. Case, porém, não pode mais acessá-la. Ele foi banido e, hoje, sobrevive como pode nos subúrbios de Tóquio. E continuaria a se destruir se não encontrasse Molly, uma samurai das ruas que o convoca para uma missão da qual depende toda a existência da rede. O romance de estreia de Gibson é o primeiro volume da chamada Trilogia do Sprawl, que ainda inclui os livros Count Zero e Mona Lisa Overdrive. Esta edição comemorativa de 30 anos contém os extras: prefácio do autor escrito especialmente para o público brasileiro, três contos inéditos no Brasil e ambientados no universo Sprawl: Johnny Mnemônico, Hotel New Rose e Queimando Cromo (os contos trazem personagens e eventos presentes no livro) e uma entrevista de Gibson concedida ao escritor e crítico literário Larry McCaffery.”
Aqui podemos entrar nas diferenças de Johnny Mnemonic, o filme e o livro. A mais importante delas é a ausência da personagem Molly Millions, a samurai urbana fodona que Gibson criou e que transita entre seus romances e contos.
Jane entrou em seu lugar para o filme de Johnny Mnemonic, talvez porque Molly tivesse seus direitos autorais reservados à uma possível adaptação cinematográfica de Neuromancer, que (até hoje) nunca aconteceu. É a primeira aparição da personagem no “Gibson-verse”.
Quando vemos um atendente de bar com um braço biônico, é uma referência ao Ratz, outro personagem de Neuromancer.
Obviamente, tudo escalonou de maneira absurda desde 1996 na tecnologia. Johnny diz que poderia levar a biblioteca inteira do Congresso americano (uma das maiores do mundo) na cabeça, com seus 320 gigabytes.
Mas só os livros do Congresso em 2019 alcançariam 100 terabytes para serem armazenados — sem contar documentos, imagens, músicas e filmes do acervo. Sendo que: 1 terabyte = 1000 gigabytes.
No livro, Johnny não é tão desenvolto em lutas e esperteza de malandro, com esse papel sendo de Molly, sua guarda-costas
Johnny é um traficante de informação, bem próximo do submundo e das grandes corporações. Um grande oportunista egoísta, ele está há tanto tempo no ramo que nem sabe mais quem é direito.
Numa confusão com Ralf, que lhe passou dados da Hosaka, uma das grandes corporações desse mundo, é Molly quem o salva. Também temos aqui o golfinho Jones, da Marinha, está presente como um grande decriptador, que consegue liberar a carga de informação que Johnny carrega — os grandes podres de vários executivos corporativos.
O livro de Gibson é bem claro em mostrar a sujeira social de prostituição, bebida e drogas, um mundo de ruínas e decadência para quem é pobre, que se viram como podem com as podreiras cibernéticas que arrumam.
Há cenas de perseguição e confrontos da dupla e a Yakuza, e Molly acaba até em uma arena de gladiadores modificados ciberneticamente.
No final, Johnny se junta aos Lo-Teks. O conto apareceu originalmente na revista Omin, em maio de 1981, e depois incluído na coletânea Burning Chrome (1986). Em Neuromancer, Molly revela para Case (o protagonista), que Johnny foi assassinado por um ninja Yakuza tempos depois da aventura dos dois juntos.
Ah, e mais importante de tudo: a SAM não existe no livro Johnny Mnemonic.
Keanu Reeves
Poucos atores fizeram uma transição de carreira tão boa quanto Keanu Reeves. De bons papéis enquanto jovem, como no drama de relacionamentos Ligações Perigosas (1988) e a comédia Bill & Ted: Uma Aventura Fantástica (1989); do incrível filme policial/criminal surfista-paraquedista Caçadores de Emoção (1991), o épico Drácula de Bram Stoker (1992); o inacreditável Velocidade Máxima (1994); o diabólico e inocente Advogado do Diabo (1998); o insuperável Matrix (1999), que fecha o milênio pra ele; ao errático Constantine (2005); o criativo O Homem Duplo (2006) — baseado em uma história de Philip K. Dick, A Scanner Darkly –; ao incrível Os Reis da Rua (2008), — também um dos melhores papéis de Chris Evans –, mesmo ano em que Reeves teve uma baixa, com O Dia em Que a Terra Parou, remake de um clássico da ficção científica, um belo tropicão de carreira, e que afundou de vez com o fracasso de 47 Ronins (2013).
Mas quando interpretou Keanu Reevs John Wick em De Volta ao Jogo (2014) — outro título bosta brasileiro –, o primeiro de vários filmes do assassino sem seu cachorro, o ator voltou à velha forma de maneira magistral.
Os paralelos de Johnny Mnemonic ainda são percebidos mesmo hoje em dia. No videogame multiplataforma Cyberpunk 2077 (2020), você joga com um personagem com um chip mortal instalado em sua cabeça, tal qual Johhny. No game, ele contém uma persona virtual com quem você pode interagir, Johnny Silverhand, interpretado por…Keanu Reeves.
É por isso que poucos não conseguem resiste à empolgação com sua mais nova empreitada cinematográfica em 2021, o mesmo ano de Johnny Mnemonic.
Claro, não poderia ser outro filme.
A inevitável e esperada continuação da trilogia Matrix.
Matrix Ressurections
O que mais 2021 nos reserva?
O real e o virtual?
/// CRÍTICA DA ÉPOCA. Segue abaixo a crítica do filme na Folha de São Paulo, na época de lançamento do filme, escrita por Bia Abramo.
“Tinha tudo para dar certo. O próprio escritor William Gibson roteirizou seu conto “Johnny Mnemonic”, a direção foi entregue ao artista plástico Robert Longo, até mesmo Keanu Reeves parecia adequadamente mecânico para o papel de Johnny.
Mas ainda não foi dessa vez que o cyberpunk, subgênero da ficção científica criada nos anos 80 por Gibson e Bruce Sterling, teve uma tradução decente para o cinema. Talvez a própria história de Gibson já tenha envelhecido.
No começo dos anos 80, um mundo dominado por megacorporações, ligado por redes de computadores, com hordas de desempregados morando nas ruas das grandes cidades, ainda era material de ficção. Hoje, está nas primeiras páginas dos jornais.
Johnny (Keanu Reeves), uma espécie de office-boy altamente especializado, transporta dados em seu cérebro, a forma mais segura e sigilosa de movimentar informações no século 21. Em uma de suas missões, ele aceita um volume muito maior de memória que pode suportar -sua cabeça pode literalmente explodir.
Como se não bastasse, uma poderosa empresa farmacêutica também está interessada em sua preciosa carga cerebral e manda a Yazuka ao encalço de Johnny. Jane (Dina Meyer), uma guarda-costas viciada em drogas, leva Johnny ao quartel-general dos Lo-Techs, guerrilheiros urbanos que combatem o excesso de tecnologia.
A trama é típica das histórias cyberpunk: os vilões são os braços armados das megacorporações, o herói é um sujeito com grandes habilidades em computadores, o cenário é pós-apocalíptico.
A direção de Longo não se afasta nem por um milímetro das convenções do filme de ação -e não dos de primeira linha. Correria, tiros, pancadaria e explosões se sucedem e se repetem.
A sequência de computação gráfica no ciberespaço, na qual poderia se esperar um pouco mais de criatividade e impacto visual, também repete clichês. E, por incrível que pareça, a ambientação futurista de “Blade Runner ainda ganha de longe dos cenários de “Johnny Mnemonic”.
Keanu Reeves nunca mais deveria fazer filmes de ação. Toda luta em que ele se mete fica parecendo piada.
Para dar algum charme pop, o roqueiro Henry Rollins (o médico Spider) e o rapper Ice-T (o líder dos Lo-Techs, J-Bone) trabalham como atores. Mas ainda é muito pouco.”
Obrigado por ler até aqui!
O Destrutor é uma publicação online jornalística independente focada na análise do consumo dos produtos e tecnologia da cultura pop: música, cinema, quadrinhos, entretenimento digital (streaming, videogame), mídia e muito mais. Produzir matérias de fôlego e pesquisa como essa, mostrando todas essas informações, dá um trabalhão danado. A ajuda de quem tem interesse é essencial.
Apoie meu trabalho
- Qualquer valor via PIX, a chave é destrutor1981@gmail.com
- Compartilhe essa matéria com seus amigos e nas suas redes sociais se você gostou.
- O Destrutor está disponível para criar um #publi genuíno. Me mande um e-mail!
O Destrutor nas redes: Instagram do Destrutor (siga lá!)
Todas as imagens dessa matéria têm seus direitos reservados
aos seus respectivos proprietários, e são reproduzidas aqui a título de ilustração.
LEIA TAMBÉM: