A série A Casa do Dragão (The House of Dragon, 2022 ~) representa um revival bem construído da série Game of Thrones (2011-2019), que colocou o mood novela melodramática de um mundo medieval em uma embalagem pop violenta e sexy. Funciona como diversão ligeira, com toda a certeza.
Aclamada pelo público e bem resenhada pela crítica, o jogo de tronos no mundo de Westeros de GoT trouxe para essas intrigas palacianas medievais ordinárias muitos temas originais como identidade étnica, costuras de poder entre grandes famílias, imigração e emigração, tudo coberto por um verniz cool de batalhas sangrentas, combates de honra, guerras enormes e até elementos de fantasia, como dragões e zumbis.
Em A Casa do Dragão, tudo isso retorna (menos os zumbis), e entendemos como que a força-motriz dessa terra desgraçada é a engenharia social que ela promove em cada aspecto da vida de quem mora nessas terras infernais: você faz o que deve, e não o que quer, e muitas vezes faz isso sacrificando seus anseios pessoais ao custo de sua honra, dignidade e até mesmo a vida.
Para ser palatável em um assunto tão denso, a série é criativa em reviravoltas legais, execução de cenas de ação bem cinéticas, constrói personagens ambíguos e densos (vai de sobrinha apaixonada por tio a cavaleiro incel corno imaginário) e nudez e sexo em tempos de problematização extrema, arriscando temas espinhosos como sexo por obrigação via casamento familiar medieval e…podofilia? Sim.
O mais interessante da série se dá no legado familiar na forma de ódio repassado de geração em geração, como fica claro quando os filhos das protagonistas Rhaenyra Targaryen e Alicent Hightower (e Targaryen depois) crescem, ainda mais no último episódio, catalisador para a guerra civil que (provavelmente) aparecerá na segunda temporada.
Vale citar, tudo bem contextualizado e rápido demais, afinal, é um mundo medieval onde a vida é breve, assim como a série, que tem apenas 10 episódios.
Surgida nos livros dos anos 90 de George R.R. Martin, Game of Thrones foi um sucesso desde a publicação do primeiro livro, no mercado literário inglês. Originalmente concebida para ser uma trilogia, a série consiste em já cinco volumes publicados, com mais dois planejados — e nunca publicados.
O primeiro é o Game of Thrones, lançado em 1996; o segundo é A Clash of Kings, de 1998; o terceiro foi A Storm of Swords, publicado em 2000; o seguinte foi A Feast for Crows, lançado em 2005; e o mais recente livro das Crônicas de Gelo e Fogo foi Dance with Dragons, publicado em 2011, quando teve início a série de TV, desenvolvida pela HBO, canal de TV pioneiro na criação de seriados adultos e sofisticados que mudaram a indústria de entretenimento da TV americana.
Com oito temporadas e 73 episódios (alguns com mais de 1h de duração), de 2011 a 2019, GoT teve um final polêmico que desagradou muitos fãs, e deixou a dúvida sobre qual seria o legado da obra, já que sem novos livros de Martin para basear as últimas temporadas, os roteiristas tiveram que apostar na criação original e ficaram distantes da qualidade literária do material-base.
Mesmo assim, é claro que a Warner/HBO, donas do produto, não deixaria de aproveitar o tsunami que a série representou.
Ainda que a pandemia de Covid-19 tenha arrasado por dois anos a indústria de entretenimento de X e Y maneiras, eles se saíram muito bem agora em 2022 com A Casa do Dragão, que conta histórias passadas mais de 100 anos do começo de Game of Thrones.
A trama de A Casa do Dragão foca na família Targaryen, com base no livro Fogo e Sangue (2018), de Martin, uma obra spin-off da série principal. Na obra, vemos a história dos loiros e loiras dragonescos de Valíria desde a conquista dos Sete Reinos, cerca de 300 anos antes dos eventos de GoT.
Mas na série, a produção decidiu começar adiantado, na briga entre os irmãos Aegon II e Rhaenyra, que travaram uma guerra pelo direito ao trono deixado por seu pai, Viserys.
A Casa do Dragão em 2022
Ambientada 172 anos antes dos eventos de Game of Thrones (muito tempo antes do nascimento de Daenerys Targaryen), House of Dragon/Casa do Dragão cobre um período de tempo conhecido como a Dança dos Dragões, onde uma guerra civil entre a dinastia Targaryen quase destruiu o mundo de Westeros, e onde tudo se resume a história simples e habitual que estamos mais do que acostumados: a luta pelo poder do Trono de Ferro.
O primeiro episódio, The Heirs of the Dragon (01×01), serve para estabelecer a narrativa e introduzir os personagens que iremos acompanhar, em diferentes tempos, de modo linear: o rei Viserys Targaryen (Paddy Considine); seu irmão impulsivo, príncipe Daemon (Matt Smith); a Mão do Rei, Otto Hightower (Rhys Ifans), e sua filha Alicent Hightower (Emily Carey jovem e Olivia Cooke adulta); a filha de Viserys, princesa Rhaenyra Targaryen (Milly Alcock jovem — ela tem 22 e faz uma mina de 15 — e Emma D’Arcy adulta) e dezenas de outros.
A trama acompanha um período específico da dinastia Targaryen, pois Viserys se encontra no meio de um conflito político, já que tem apenas uma filha, Rhaenyra, o que representa um empecilho tradicional (e sexista) na sucessão.
Junto a isso, temos Daemon aparentemente desejando o trono e outros filhos do Rei, meio-irmãos de Rhaenyra.
The Heirs of the Dragon tem roteiro de Ryan Condal (criador da série ao lado de George R.R. Martin), que apenas posiciona as peças do tabuleiro desse xadrez político de Westeros.
Ele nos deixa próximos e entendidos de Daemon e a Mão do Rei, Otto Hightower, e suas relações intrínsecas e problemáticas com o Rei Vyseris, e uma amizade íntima de Rhaenyra com Alicent, que é na verdade o mood da série, ao tornar o protagonismo feminino anulado a veia condutora de eventos sangrentos e permissivos.
Isso se dá desde o começo, na figura de Rhaenys Targaryen (Eve Best), conhecida como a “rainha que nunca foi”, já que é Viserys o escolhido para ser o Rei.
O primeiro episódio se ocupa de celebrar o iminente nascimento do segundo filho do Rei (vai dar ruim) e Rhaenyra ansiosa para reencontrar seu tio Daemon, de volta à Fortaleza Vermelha.
O irmão do Rei é um sociopata que não para em nenhum lugar sem fazer alguma merda.
Uma das poucas gorduras na série de A Casa do Dragão se dá apenas no segundo episódio, The Rogue Prince, que repete os temas que vemos no fim do primeiro. De 10, apenas um ser “ruim”, é uma vantagem imensa e mérito de qualidade disso deve ser ressaltado.
A série é boa em determinar as ocupações morais e dúbias de seus diversos personagens, como o incel cavaleiro com síndrome de corno imaginário Ser Criston Cole (Fabien Frankel) e Otto Hightower, maestro-mestre do golpe governamental desde o começo dos eventos da série, ao literalmente jogar a própria filha menor de idade no luto do recém-viúvo Viserys.
A história da série revela o suficiente sobre cada um dos seus personagens eles para manter o interesse no drama que vai se desenrolar.
O carisma de alguns atores é uma verdadeira carreta de emoções nesse aspecto, caso de Matt Smith na pele de Daemon, sempre uma presença tão ameaçadora quanto digna da simpatia.
Até mesmo Milly Alcock e Emily Carey conseguem capturar bem o senso dramático que seus papéis exigem em A Casa do Dragão.
O destaque vai para Paddy Considine e seu Viserys, que sofre com uma lepra que corrói pouco a pouco seu corpo (ele chega a perder um braço), uma metáfora excelente para sua mente também, que sofre com o estresse constante das maquinações políticas, intrigas e invasões de inimigos em seus domínios, como a Triarquia.
Os 10 episódios passam rápido, e sua construção linear ajuda a deixar mais nítido que tudo acontece para que a guerra seja inevitável. O último episódio, The Black Queen (01×10), mostra como que Aemond Targaryen (Ewan Michell) dá a ignição para que tudo se exploda em seu encontro ao acaso com Lucerys “Luke” Velaryon (Elliot Grihualut).
A Casa do Dragão também teve o retorno de Miguel Sapochnik, que dirigiu episódios icônicos de Game of Thrones, como a Batalha dos Bastardos (06×09, 2016).
O episódio venceu o prêmio de Melhor Roteiro e Melhor Direção no Emmy Awards do ano seguinte.
As cenas da Batalha dos Bastardos são um dos melhores momentos de Game of ThronesMiguel é o produtor executivo, showrunner e diretor de alguns dos episódios — os mais importantes: o primeiro e o sexto e sétimo, The Princess and the Queen e Driftmark, respectivamente, que mostram as mocinhas protagonistas mais velhas, Emma D’Arcy como Rhaenyra e Olivia Cooke como Alicent, e com seus filhos já crescidos.
A trilha sonora também é do mesmo compositor de GoT, Ramin Djawadi. E a abertura não poderia ser outra que a mesma música de GoT, A Song of Ice and Fire.
Quem não voltou foram D.B Weiss e David Benioff. Os showrunners originais de Game of Thrones não estão envolvidos com a série, atualmente em um projeto na Netflix — eles tinham um para Star Wars, que foi engavetado.
Dinheiro não foi o que faltou para a série, com cada episódio batendo a casa dos milhões de dólares para serem feitos. Muito da grana foram para os efeitos especiais, destinados para as grandes estrelas, os dragões.
Temos vários deles em tela: Syrax, a dragoa de Rhaenyra; Caraxes, o vermelhão de Daemon; Seasmoke, um branco cinzento de Laenor Velaryon (Theo Nate jovem e John Macmillan adulto), filho de Corlys Velaryon (Steve Toussaint) e Rhaenys Targaryen.
Vale destacar os Velaryon, outra família poderosa da antiga Valíria, local original do povo que domina os dragões de Westeros, situado em Essos, o outro continente desse mundo fantástico. Eles rivalizam com os Targaryen em força e prestígio.
São citados ainda outros três dragões em A Casa do Dragão: Balerion, O Terror Negro, o dragão de Aegon, O Conquistador, que saiu de Valíria para dominar Westeros, e que foi montado pela última vez por Viserys, cuja caveira reside na Fortaleza Vermelha; Vhagar, uma dragoa da mesma época da Conquista, ainda viva, cujo paradeiro permanece desconhecido; e a dragoa Dreamfyre.
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