CHARLTON COMICS | Revistas piratas de músicas, máfia e super-heróis

A editora Charlton Comics foi fundada por John Santangelo, um imigrante italiano do ramo da construção civil, nos anos 1940, nos Estados Unidos.

A empresa ficou famosa no mercado ao publicar histórias em quadrinhos de terror, guerra, policiais, romance e ficção científica, e quando se aventurou pelo gênero colorido dos combatentes fantasiados do crime, os famosos super-heróis, ganhou destaque devido ao talento dos envolvidos nas histórias e arte.

A investida valeria futuramente para todo o sempre, quando seus personagens se tornaram fonte de inspiração para a criação de uma obra que desconstruiria o gênero super-herói e se tornaria TOP 1 do gênero — Watchmen.

A Charlton utilizava muito papel para suas revistas, e suspeitas que estivesse envolvida com a máfia, nome genérico dado ao crime organizado de imigrantes italianos na América, nunca pararam.

A Charlton Comics operou no mercado de 1945 até o fim dos anos 1980, e Santangelo inovou ao ser o próprio distribuidor — tinha uma frota de caminhões, ter uma gráfica própria, e muitas vezes atuava como editor das publicações.

Ele começou na área com revistas de letras de música. Sua mulher era cantora amadora, e ele pensou em ganhar algum dinheiro relacionado a isso. Foi preso por publicar as letras das músicas sem licença alguma dos proprietários das canções.

O fato da editora surgir dentro de uma prisão, quando Santangelo foi detido pelas infrações de direito autoral, é auto-explicativo na história da empresa.

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Hit Parader, uma das publicações mais clássicas dos Estados Unidos sobre música, idealizada por John Santangelo

Ele cumpriria a pena integralmente na Penitenciária Estadual de New Haven, no estado de Connecticut, não muito longe de Derby, a pequena cidade onde ele e sua mulher moravam.

Na prisão, conheceu um advogado picareta, Edv Levy, preso por faturamentos falsos. Ficaram amigos, e não demoraram muito a criar uma empresa juntos, T.W.O. Charles Company, em 1940.

O advogado ajudou a legalizar as músicas, e mais uma vez Santangelo estava publicando revistas de música. Já no início de 1942, a T.W.O. Charles Company lançou Hit Pareder, um dos primeiros e mais duradouros magazines musicais do país, publicado sem parar por meio século.

Ela foi acompanhada da Song Hits, e o catálogo aumentou com a publicação de livros e revistas de palavras cruzadas. O lar da editora era em Derby, fora do conhecido eixo mainstream da costa leste, como Nova York.

Publicada de 1942 até 2008 (em 1991, outra editora assumiu a direção da revista), a Hit Parader teve milhares de matérias, fotos e entrevistas dos maiores artistas da América e do mundo.

Sua trajetória acompanhou a evolução do mercado editorial e as dinâmicas da indústria da música.

De modo mais especial, registrou o início de grupos emergentes que fundariam o rock como o conhecemos, como os Beatles e os Beach Boys, e seguiria acompanhando Led Zeppelin, Rolling Stones, Elton John, David Bowie, Blue Öyster Cult, the Kinks, Three Dog Night, The Who, Cheap Trick, Kiss e Van Halen.

Em 1984, a revista surfou a popularidade do heavy metal, com Mötley Crüe, Quiet Riot, Def Leppard, Ratt e Ozzy Osbourne nas capas.

O grunge em enorme destaque na Hit Parader

Para adornar a coleção de fatos encrenqueiros com a lei da Charlton, o Guns N’ Roses, em seu álbum Use Your Illusion II (1991), incluiu a canção Get in the Ring, que acusa a revista de inventar mentiras e rasgar crianças (!).

Os caras do Guns estavam putos da vida com a edição da Hit Parader de março de 1991, na qual uma entrevista com o vocalista Axl Rose e Sebastian Bach, do Skid Row, teria sido inteira editada.

Não apenas a Hit Parader foi mirada, mas também a Kerrang! (na forma do jornalista Mick Wall) e a Spin (na forma de Bob Gucciane Jr.) — as das publicações eram grandes representantes da imprensa musical na época.

Em dezembro de 2008, já prenunciando a queda do jornalismo musical, a Hit Parader encerrou as atividades.

Algumas dezenas das milhares de matérias da Hit Parader podem ser acessadas neste link.

A notícia mais recente a respeito da marca Hit Parader data de 2020, quando a Variety reportou que a revisa ganharia um formato de programa seriado, chamado de Paradise City, que reimagina o business da música. 

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O símbolo pelo qual a editora Charlton Comics ficaria conhecido

Os quadrinhos de super-heróis surgiram na T.W.O. quando a empresa comprou alguns personagens clássicos de editoras falidas de HQs — como a Superior Comics e a Mainline Publications, essa fundada por Joe Simon e Jack Kirby, criadores do Capitão América (Kirby também seria o co-criador de grande parte dos heróis do Universo Marvel e muitos outros na DC Comics).

Yellowjacket foi o primeiro lançamento, nas bancas em setembro de 1944, com Edy listado como editor.

Em 1945, eles assumem de vez o nome Charlton Comics como empresa, em homenagem ao nome Charles, que era o nome dos filhos de ambos. Em dezembro desse ano, saiu Zoo Funnies, a primeira HQ, humorística, com o novo nome da firma.

Máfia e super-heróis

Em 1950, Santangelo tinha uma empresa que resistia a passagem de ciclos da indústria. A Charlton editava 52 títulos, um volume de trabalho imenso. John segurava as pontas, mas muitos diziam que era com a ajuda da Máfia.

Ela entra na Charlton Comics por meio de um cara chamado Morris Levy. Um arquivo de 1958 do FBI coloca o homem como “consultor musical” na editora.

Uma vez no cargo de editor musical e chefe de laboratório, o homem se tornou um dos mais notórios mafiosos dentro da indústria musical.

Na primeira tour americana dos Beatles, nos anos 1960, o quarteto de Liverpool quase que ficou hospedado em sua mansão em Miami. Há um livro sobre sua vida, escrito por Fredric Danne, chamado Hit Men. Levy era dono da Roullete Records, e dizia que cunhou o termo rock´n´roll no lugar do DJ Alan Freed.

Morris também tentou vender pelos correios um compilado musical de John Lennon feito em 1975 de seu álbum Roots.

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Os Beatles na capa de Hit Parader

Em 1952, a Charlton tinha adquirido uma parte dos direitos da Fawcett Comics, mas o Capitão Marvel, que na época era objeto de uma batalha legal entre a Fawcett e a DC Comics, não foi incluído no acordo.

O Capitão Marvel, dono do famoso jargão “Shazam!” usado para se transformar no superpoderoso herói mágico que era, foi um dos poucos personagens que batia o Superman em vendas, e que futuramente a própria DC iria adquirir.

Mesmo sem essa estrela, o extenso catálogo da Charlton Comics tornou a empresa uma das grandes editoras de HQs de super-heróis (de segunda linha) na Era de Ouro dos quadrinhos.

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O Capitão Átomo em suas diferentes versões, o primeiro super-herói da Charlton Comics

O primeiro super-herói original da Charlton Comics, o Capitão Átomo, surgiu pelo talento de Joe Gill e Steve Ditko, em Space Adventures #33, publicada em março de 1960.

No começo dessa década, Levy desfez a sociedade com um aperto de mãos e se mandou. Quem ficou com sua parte foi o filho de Santangelo, um dos Charles. Só que ele também não ficou muito tempo, e preferiu ser dono de posto de gasolina.

Também foi em meados da década de 60 que a Marvel Comics surgiu, e fez explodir novamente a onda de super-heróis com seu Quarteto Fantástico, Homem-Aranha (co-criado por Ditko, em uma passagem sensacional pela Marvel, onde também co-criou o Doutor Estranho), X-Men, Hulk etc.

Todos eram falhos e viviam as turras com os companheiros e tinham toneladas de problemas para resolver, além de combater o crime. Eram muito mais humanos do que os super-deuses da DC Comics.

O artista Dick Giordano entrou na Charlton em 1957 como desenhista e roteirista.

Em 1966, ele foi alçado ao cargo de editor e encarregado de criar mais revistas do estilo super-herói para a Charlton.

Surgia aí a Action Heroes Line (“Linha dos Heróis de Ação”).

Houve resgate de antigos personagens, como Capitão Átomo e Besouro Azul, que haviam sido abandonados em algum momento.

O desenhista Steve Ditko estava nessas empreitadas, e sua maior contribuição dos quadrinhos pela Charlton Comics foi seu combatente do crime Questão, criado em 1967.

Usava uma máscara sem rosto, era adepto da filosofia do objetivismo da escritora russa, Ayn Rand, cujas ideias Ditko sempre foi fã. Dick re-inventou o Capitão Átomo com Ditko, e foi quem deu as primeiras oportunidades para artistas como John Byrne, Jim Aparo e Dennis O’Neil.

No fim dos anos 60, contudo, a direção da empresa de John Santangelo iria em linha diferente. Os títulos de super-heróis da Charlton foram cancelados gradativamente, e a publicação de material licenciado tomou conta das revistas.

Eles produziram quadrinhos com personagens da Hanna-Barbera (Flintstones, Zé Colméia) e do King Features Syndicate (Popeye), além de versões em HQ de várias séries de televisão.

O Questão, na arte de Alex Toth

A linha de heróis foi parcialmente recuperada na revista Charlton Bullseye, onde havia histórias de Capitão Átomo, escritas por Roger Stern e feitas por Ditko, com tintas de Johh Byrne, e do Questão, feitas por Alex Toth, um dos mestres dos quadrinhos, verdadeira lenda nos EUA, autor de diversas tiras celebradas e personagens clássicos dos quadrinhos e desenhos animados americanos.

A revista era inspirada nas publicações de fanzine próprias das duas grandes editoras, a Friends of Old Marvel – FOOM e The Amazing World of DC Comics, e foi capitaneada por Bob Layton, desenhista e escritor. Ela trazia HQs, artigos, pin-ups e entrevistas, mas não passou do número 5.

A realeza e beleza de trabalhos desenvolvidos na Charlton em Questão de Steve Ditko e Alex Toth; Capitão Átomo, de Ditko e John Byrne (esse também fazia Doomsday Plus One); The Six Million Dollar Man (no Brasil conhecido como o seriado de TV O Homem de Seis Milhões de Dólares), de Joe Staton; Mr. Muscles, Zaza the Mystic e Nature Boy, de Jerry Siegel, o criador do Superman (o último desenhado por John Buscema); Besouro Azul, de Ditko, que o deixou parecido com o Homem-Aranha; Peter Cannon – Thunderbolt, de Pete Morisi; Peacemaker (Pacificador), de Joe Gill e Pat Boyette; Fantasma (famoso herói de tiras de jornais de 1936, criado por Lee Falk), nos traços excelentes de Don Newton e Jim Aparo; e Judomaster, de Frank Mclaughin, falavam por si mesmos.

O coreano Sanho Kim, artista da revista House of Yang, por exemplo, foi primeiro artista de manhwa (como se chama os quadrinhos na Coreia) publicado no Ocidente.

Todo esse ouro não foi suficiente para a Charlton se tornar relevante na década de 1970. Anos antes, um vantajoso contrato de distribuição entre Santangelo e Larry Flint tinha sido encerrado, o que prejudicou um pouco a Charlton Comics.

Larry Flint era um empresário, dono da revista Hustler, uma das publicações eróticas mais icônicas da América. Larry era ele mesmo uma figura ímpar na sociedade americana, muito famoso e polêmico, com trânsito nas mais altas esferas políticas e de entretenimento.

Era tão conhecido, amado e odiado, que levou um tiro em um atentado e ficou paraplégico.

A DC Comics compra os heróis da Charlton Comics

Arte promocional da DC Comics para a chegada dos heróis da Charlton

No meio dos anos 70, a Charlton terceirizou algumas de suas publicações, contratando o estúdio do desenhista superstar Neal Adams, o Continuity, para fazer a revista do The Six Million Dollar Man.

Pedidos de arte extra e uma quantia a mais de dinheiro exigida por Neal irritaram Santangelo, que optou por dar chances a desenhistas novatos fora dos EUA, como a América do Sul e as Filipinas.

Em 1977, Santangelo começou a distribuir suas revistas ensacadas, em pontos comerciais dentro de supermercados. Uma delas era uma edição nova de Capitão Átomo, em um novo uniforme, criado por Steve Ditko, e que tem a primeira aparição de Ted Kord como o Besouro Azul.

Em 1979, John Santangelo faleceu. Tinha 80 anos.

Sua morte foi o início de uma briga pelos direitos de propriedade intelectual de seus vários personagens. De editores de empresas pequenas à gigante DC, de artistas sem relevância até a Jack Kirby e Joe Simon recuperando o material deles, tudo foi desmembrado.

Paul Levitz, vice-presidente da DC Comics, negociou a compra dos heróis da linha Action Heroes Line, e acabou levando grande parte dos heróis em 1983.

A transação foi um aceno ao ótimo trabalho desenvolvido por Giordano na DC enquanto editor-chefe, e segundo especialistas e historiadores da área, um pedido pessoal dele para a empresa.

Em seu multiverso multiconfuso, a DC Comics abrigou os personagens da Charlton na chamada “Terra 4”.

Mas eles logo seriam acondicionados na Terra regular da DC Comics, após a saga Crise nas Infinitas Terras, que reuniu todos os heróis possíveis em um mesmo universo.

Arte promocional de Crise nas Infinitas Terras, por Alex Ross

Por conta disso, vários dos super-heróis Charlton ganharam destaque, alguns com revistas próprias, como o Capitão Átomo, o Besouro Azul  e o Questão.

A fase do Questão foi particularmente feliz, com uma excelente fase de reinício, cortesia dos talentos do escritor Denny O´Neil e o desenhista Denys Cowan.

O Questão de Dennis e Denys é uma das obras-primas da DC Comics nos anos 1980

Charlton Comics e Watchmen

Uma das páginas mais icônicas de Watchmen

Grande parte das propriedades intelectuais de quadrinhos de super-heróis da Charlton Comics ainda influenciam a DC Comics.

Watchmen é bíblia da desconstrução do mito, e ainda reverbera na indústria, por mais que ela signifique um bloqueio criativo mental em todos os escritores que dela bebem e emulam até hoje, sem nem chegar perto de sua qualidade e sofisticação.

Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, publicada em 1986 para a DC Comics, é seminal.

Quando Moore teve a primeira ideia para Watchmen, no entanto, os personagens que ele gostaria de usar eram de outra editora morta, a Archie/MLJ, dona do The Shield (o primeiro herói estilo Capitão América, criado bem antes de Steve Rogers), Hangman e outros.

Alan Moore

Há até mesmo uma referência direta de Hangman em Watchmen, com o personagem Justiceiro Encapuzado. Outra ideia de Moore era usar uma premissa com a pergunta “Quem Matou o Pacificador?“ em uma trama que usasse os recém-chegados da Charlton.

Moore queria usar vários heróis em sua história. Ele os mataria e modificaria de forma irreversível, em uma trama complexa e grandiosa. Giordano não quis que os personagens dos quais era fã e tinha apego fossem drasticamente — e dramaticamente — usados na obra que viria.

A saída de Moore foi contornar isso e usar personagens criados que emulassem as personalidades, poderes e aparência dos originais da Charlton. Assim, o Questão virou o Rorscharch, o Besouro Azul virou o Coruja, Capitão Átomo virou o Doutor Manhattan, o Pacificador virou o Comediante, e por aí vai.

Besouro Azul e o Questão, na Charlton
O Besouro Azul e o Questão, na DC Comics
O redesign de Questão/Vic Sage para Rorscharch

A desculpa dada por Giordano foi que os heróis seriam usados em outras revistas. Mas nunca foram. E foi-se embora a oportunidade perfeita de eternizar os heróis da Charlton no topo dos quadrinhos mundiais.

Giordano, que foi trazido pela DC Comics também para reagir frente a Marvel, em 1968, afirmou em entrevistas que a decisão de vetar os personagens era um de seus maiores arrependimentos, haja vista a importância que Watchmen ganhou — Giordano foi o editor dela inclusive. Nas palavras do próprio Alan Moore:

Se usássemos os personagens da Charlton em Watchmen, depois da edição 12, mesmo que o Capitão Átomo ainda estivesse vivo, a DC não poderia fazer uma história sobre todos eles sem realmente tirar a essência de Watchmen. Então, no primeiro momento, eu não achava que poderíamos fazer a história simplesmente com personagens copiados, pois acreditava que aquilo perderia toda a ressonância emocional com o leitor, o que eu acreditava ser uma importante parte da história. Eventualmente me toquei de que, se escrevesse os personagens com a ressonância correta para o leitor, trazendo certos aspectos familiares a eles, estes personagens poderiam funcionar.

Então começamos a remodelar o conceito – usando os personagens da Charlton como ponto de partida, pois foram eles que mandamos a Dick de exemplo – e foi nisso que o plot girou. Começamos a mutá-los aos poucos e então percebi que estas mudanças me davam total liberdade. Eu não conseguiria fazer com o Capitão Átomo toda a percepção quântica de tempo que o Dr. Manhattan teve levando em conta apenas a sombra de sua origem nuclear. Mas admito que não pensei assim de primeira instância. Só fui perceber mais tarde que esta era a melhor decisão a se tomar.”

Dada a importância colossal da obra, em frequente posição de Top 1 em qualquer lista de melhores HQs de super-heróis, todas as críticas e análises possíveis a respeito de Watchmen já foram feitas.

O blog Destrutor tem algumas considerações a respeito do impacto da obra, vistas em contextos de matérias sobre o Esquadrão Suicida, no agente secreto Nêmesis e de Doomsday Clock, a HQ q integra o universo de Watchmen ao universo regular da DC.

Uma das poucas artes fora do convencional da obra de Watchmen, usada na edição de luxo americana

Não é possível falar de uma história da Charlton Comics e não falar sobre Watchmen. Portanto, tomamos a liberdade de reproduzir o texto que Grant Morrison escreveu em seu livro Superdeuses (2012), a respeito da obra de Moore e Gibson.

Grant é um escritor escocês e trabalhou em grandes títulos de quadrinhos de super-heróis da DC e da Marvel, e não é raro emitir opiniões contrárias aos de Moore, e, com efeito, criticá-lo. Eis o que Grant pensa de Watchmen:

“O ‘Vigilante nos muros da civilização ocidental’: foi assim que a romancista Lathy Acker descreveu, generosamente e com certa hipérbole, Alan Moore. Watchmen tinha suas raízes no amor de Moore pelas vastas, intrincadas e autorreflexivas ficções de Thomas Pynchon e os filmes de superestrutura complexa de Nicolas Roeg, como Inverno de Sangue em Veneza. Tinha também muito em comum com a obra de Peter Greenaway, relembrando universos codificados e perfeccionistas do diretor britânico com quabra-cabeças, truques, arquitetura e simetria. Com Watchmen, Moore impôs um devastador ‘siga por aqui’ aos quadrinhos de super-herói americanos. Com seu talento clínico e sua análise fria da política externa interesseira dos Estados Unidos à guisa de uma história alternativa com super-humanos e combatentes do crime mascarados, ela foi lançada no coração da DC Comics e se permitiu detonar lá, no cerne do Sistema. Watchmen foi um acontecimento de dimensões apocalípticas da pop art, um assassino de dinossauros e devastador de mundos. Quando acabou — e suas reverberações ainda se sentem –, a lição que deixou para as histórias de super-heróis foi só uma: evoluam ou morram.”

Isso foi apenas 1/3 de uma página — de sete –, que Grant escreveu a respeito de Watchmen.

Watchmen, originalmente publicada durante 1986 e 1987 nos Estados Unidos, foi escrita por Alan Moore, desenhada por Dave Gibbons e colorida por John Higgins, e é considerada por críticos e especialistas como a maior história em quadrinhos de super-heróis de todos os tempos.

Capa de Watchmen em uma de suas edições mais recentes, pelo selo DC Black Label

Desconstrutora do gênero, a história traz influências de contracultura, história real, geopolítica e violência. Conta com formas narrativas que ainda hoje são exploradas e discutidas. Venceu vários prêmios de quadrinhos, além de ser a única HQ a receber um Hugo Awards, o maior prêmio de literatura do mundo.

A Charlton Comics nos cinemas e streaming

O novo filme do Esquadrão Suicida será a chance de ver a Charlton Comics em destaque de alguma maneira

O novo filme do Esquadrão Suicida da Warner/DC Comics dessa vez será feito pelo cineasta James Gunn (dos dois Guardiões da Galáxia, da Marvel Studios).

O longa-metragem vai ignorar a péssima impressão do primeiro filme, Esquadrão Suicida (2016), de David Ayer, mas vai manter certos personagens, como Amanda Waller (Viola Davis) e Arlequina (Margot Robbie).

Intitulado The Suicide Squad, há muitos outros personagens inéditos, inclusive a presença de ninguém menos que o Pacificador (interpretado por Jonh Cena), em uma grata surpresa aos fãs da Charlton Comics.

Apesar do Pacificador nunca ter feito parte do line-up do Esquadrão Suicida nos quadrinhos, seu background de personagem secreto no mundo da espionagem o tornou companheiro da equipe em algumas aventuras, como no arco de histórias chamado Conspiração Janus.

O Pacificador em sua primeira interação com o Esquadrão Suicida nos quadrinhos, em Conspiração Janus

Uma personagem da Charlton Comics atrelada ao Esquadrão Suicida desde o começo foi a Sombra da Noite, reformulada de sua versão Charlton após Crise nas Infinitas Terras.

Sombra da Noite com Nêmesis e Amanda Waller, no Esquadrão Suicida, na DC pós-Crise nas Infinitas Terras

O Pacificador foi criado pela Charlton em novembro de 1966, nas páginas de Fightin’ 5 #40. Seus criadores são Joe Gill e Pat Boyette.

Na Charlton, ele era Chistopher Smith, um diplomata esquizofrênico que na verdade era um gênio da mecânica e armamento, que possuía um arsenal numa montanha da Suíça que nunca usava, a não ser para “fazer guerra para provocar a paz”.

Ele pouco mudou de sua versão Charlton quando foi introduzido na DC após Crise nas Infinitas Terras.

Sua identidade continuou Christopher Smith, filho de um ex-oficial nazista. Desgostoso com o segredo do pai, decide partir em uma cruzada em busca da paz total, ainda que para isso precisasse empregar violência.

Ele entra na carreira militar, luta na Guerra do Vietnã, onde massacra uma vila inteira. Pega corte marcial e é preso por 20 anos.  Ao sair, no melhor estilo Esquadrão Suicida, é recrutado pelo governo para missões secretas anti-terrorismo.

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A edição de estreia do Pacificador na Charlton Comics (1966) e a edição de estreia dele na DC Comics (1988)

Sua estreia na DC foi em uma minissérie em quatro edições, publicada de janeiro a abril de 1988. O Pacificador chegou até mesmo a ter essas edições publicadas no Brasil, em DC Especial n° 6, em maio de 1991.

O personagem teve participações esporádicas e de pouca relevância, e a trajetória do Pacificador nunca alcançou tanto destaque quanto o Capitão Átomo, companheiro de ex-editora na nova casa.

Quando a DC fez seu reboot Os Novos 52, em 2011, ele não foi muito usado nas histórias.

Mas na transição para outro reboot, o Renascimento, de 2016, Grant Morrison usou o Pacificador e todo o line-up da Charlton que apareceu em Watchmen na história “In Which We Burn“, publicada originalmente em Multiversity, The: Pax Americana, de 2015 — com efeito, essa história é o próprio mini-Watchmen de Grant Morrison.

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O Pacificador e outros heróis da Charlton Comics na versão DC em Pax Americana, de Grant Morrison

Ainda não há trailers do novo filme do Esquadrão Suicida, mas durante o painel DC Fandome, realizado em 2020, quando detalhes do longa e imagens e vídeos de bastidores foram liberados, John Cena descreveu seu personagem como um “Capitão América babaca”, uma definição que dá pistas sobre como o personagem deve aparecer no longa.

]Com a decisão da Warner de integrá-lo ao grupo, além de dar a ele uma série solo antes mesmo da estreia do filme, e que está sendo gravada para passar no canal de streaming HBO Max, é esperado que o Pacificador se torne pop.

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Imagem de bastidores do novo filme do Esquadrão Suicida, com John Cena como o Pacificador, um “Capitão América babaca”, nas palavras do próprio ator
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O Pacificador terá sua própria série no HBO Max, uma oportunidade perfeita para mostrar mais heróis da Charlton Comics

Dick Giordano, Charlton e DC

Richard Joseph “Dick” Giordano nasceu em 20 de julho de 1932, em Manhattan, em Nova York, nos Estados Unidos.

Sua carreira nos quadrinhos começou em 1951, trabalhando no estúdio de Jerry Iger, desenhando Shenna para a editora Fiction House. Suas maiores influências na época eram Stan Drake, Alex Raymond e Hal Foster, todos mestres de tiras em quadrinhos nos EUA. Era considerado um dos melhores arte-finalistas da área.

Ajudou a fazer a Crise Nas Infinitas Terras, Batman – o Cavaleiro das Trevas e Watchmen, três das HQs mais importantes de todos os tempos. Karen Berger, criadora do selo alternativo da DC, Vertigo, a “HBO dos quadrinhos“, o fez com Giordano.

Ao assumir a cadeira de edição da DC Comics em 1968, Dick Giordano trouxe parte dos artistas da Charton. Entre eles, Jim Aparo, o desenhista do Fantasma, e Denny O´Neil, um roteirista que faria grandes trabalhos na DC e na Marvel.

Dick instituiu novas linhas para publicações cansadas, como Batman, Aquaman e Blackhawk (conhecido no Brasil como Falcão Negro) e criou séries como Creeper e Hawl & Dove (respectivamente, Rastejante e Rapina & Columba, criações de Steve Ditko).

No começo dos anos 80, tornou-se o editor de todas as revistas do Batman. Em 1983, era vice-presidente e editor executivo da DC, quando foi responsável por toda o renascimento editorial, artístico e comercial da editora na época.

É muito por conta dele que os heróis da Charlton apareceram na saga Crise Nas Infinitas Terras, onde foram introduzidos na cronologia da DC Comics. Após Crise, vários dos heróis foram aproveitados em títulos solos e chegaram até mesmo a revistas de primeira linha, como Liga da Justiça (casos do Capitão Átomo, Besouro Azul) e Esquadrão Suicida (a já citada Sombra da Noite).

Dick esperava usar os heróis em uma revista chamada Comics Cavalcade Weekly, uma revista semanal de HQ, com os personagens Charlton, que nunca foi feita.

A imagem abaixo é uma arte de Dave Gibbons, o artista de Watchmen, criada e nunca usada para a revista dos sonhos de Giordano.

A revista dos sonhos de Dick Giordano, nunca feita

Giordano tanto se arrependeu de não ter botado os personagens da Charlton em Watchmen, que acabou criando uma minissérie em seis partes chamada The L.A.W. (Living Assault Weapons), lançada em de 1999.

Seu amigo de longa data na Charlton, Bob Layton, desenhou a derradeira obra dos heróis. Dick Giordano morreu em 2010.

A Charlton Comics teve um total de 373 títulos, com mais de 6.500 números lançados ao longo dos anos. No fim, de uma empresa com 250 funcionários com mais de 80 títulos sendo trabalhados, acabou sua vida com apenas 8 caras em duas revistas de músicas.

A Charlton fechou totalmente em março de 1991.

A participação mais relevante e recente dos heróis Charlton na DC aconteceu nos números finais de Doomsday Clock, em 2019, quando parte deles se dirige para Marte para enfrentar o Doutor Manhattan.

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Besouro Azul, Capitão Átomo, Sombra da Noite e o Questão

/// STEVE DITKO/QUESTÃO. O Questão é a identidade que o repórter Vic Sage criou para combater o crime. Steve Ditko concebeu o personagem em 1967 na revista Blue Beetle #1. Pela DC, obteve grande sucesso em 1987, ao ser escrito por Dennis O’Neil e desenhado por Denys Coway. Ela somou 36 edições mensais e 2 anuais.

Das páginas de Marvel: A História Secreta, de Sean Howe: “(…) A linha mais séria, ‘Action Heroes’, da Charlton Comics, era lar de Steve Ditko, onde acabou utilizando a plataforma para apresentar o Questão, vigilante de direita liberto do irritante relativismo moral de Stan Lee (…) Steve estava livre para inserir lugares-comums randianos (Ann Rand) em seus quadrinhos sem a interferência de Goodman ou de Lee (os diretores criativos da Marvel). Uma amostra, das páginas de Mysterious Suspense #1: ‘A maior batalha que a pessoa enfrenta, com constância, é a defesa de seus princípios, suas verdades, contra tudo o que tem de lidar! Nada derrota uma verdade!”.

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O Questão de Steve Ditko

/// ENTREVISTA DO ALAN MOORE. A fala de Alan Moore citada vem do site especializado em HQ Comic Book Resources, de uma matéria escrita por Brian Cronin.  E um improvável domínio Geocities ainda ativo, com uma entrevista de Alan Moore a respeito da Charlton e de Watchmen, aqui > http://www.geocities.ws/watchmenbrasil/09moore.html / Ela vem da revista Comic Book Artist, dedicada a artigos, análises e entrevistas de artistas dos quadrinhos, publicada pela TwoMorrows Publishing de 1998 à 2002, e pela Top Shelf Productions, de 2003 à 2005.

Nas palavras dele:

O Questão era o Rorschach, certo. Dr. Manhattan e Capitão Átomo era obviamente equivalentes. Coruja e o novo Besouro Azul – quer dizer, o Besouro Azul Ted Kord – eram equivalentes. Porque havia um Besouro Azul original na cosmologia da Charlton, eu achei que seria legal ter um Coruja original. Não posso dizer realmente que a Sombra da Noite foi uma grande inspiração. A Espectral era apenas uma personagem feminina porque eu precisava ter uma heroína ali. Já que não estávamos usando os personagens da Charlton mais, não havia razão para eu me prender à Sombra da Noite, eu poderia pegar um outro tipo de super-heroína, algo como a Lady Fantasma, a Canário Negro, geralmente o meu tipo de super-heroína. A Espectral, ali ela é a garota do grupo, mais ou menos equivalente à Sombra da Noite, mas realmente, não há outra grande conexão com ela. O Comediante era o Pacificador, nós tínhamos um grau de liberdade maior, e decidimos fazê-lo como o tipo de cara de direita, patriótico, e misturamos um pouco de Nick Fury na concepção do Pacificador, e provavelmente um pouco da base do Capitão América (herói-patriota). Então, sim, esses personagens começaram assim, para preencher as lacunas da história deixada pelos heróis da Charlton, mas nós não tínhamos que nos prender estritamente à fórmula da Charlton. Em alguns lugares, nos prendemos mais, e em outros, não.

Adrian Veidt era Peter Cannon: Thunderbolt; eu sempre gostei do Thunderbolt de Pete Morisi… havia algo com o estilo da arte, quase limitando-se com o estilo de Alex Toth, apesar de que aquilo nunca foi tão bom como Toth, mas às vezes tinha uma prazerosa sensibilidade e um bom senso de design sobre aquilo que eu fui quase pêgo. E eu gostava da idéia de que seu personagem usava 100% de se cérebro e tinha completo controle físico e mental. Adrian Veidt realmente cresceu diretamente paralelo ao personagem de Peter Cannon: Thunderbolt.

Quando eu era criança, eu cresci de uma maneira bastante de esquerda, e eu lembro de ver o Pacificador com a frase embaixo “Ele gosta tanto de paz que está doido para brigar por ela”. Eu pensei, “Ugh. Muito reacionário para mim”, e passei por cima.
Quando eu li isso pela primeira vez, eu pensei, “Bem, isso é idiota!” (risos) Eu tinha apenas 10 anos ou algo assim, e eu não tinha realmente crescido em uma família de esquerda – minha família votava no partido trabalhista, e isso era quando o partido trabalhista era socialista – mas era uma família de classe trabalhadora, provavelmente uma não muito bem-educada, e então suas opiniões políticas não eram muito profundas, mas mesmo assim, sim, a ideia de que “Ele gosta tanto de paz que está doido para brigar por ela”, (risos) eu poderia ver os buracos naquilo imediatamente.”

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