Cidade de Vidro entrou pra história da história em quadrinhos como uma das melhores obras de adaptação de qualquer mídia já realizada nas HQs, graças ao poder da escrita de Paul Karasik e a arte de David Mazzucchelli.
Adaptado por um gigante dos quadrinhos como Karasik (How to Read Nancy) e desenhado por um prestigiado mestre como David Mazzucchelli (Asterios Polyp, Demolidor, Batman – Ano Um), essa obra-prima em cima de Paul Auster foi foi surpreendentemente transformada em uma nova linguagem visual pelo talento da dupla. E a editora Mino a publica de novo.
Karasik e Mazzucchelli trabalharam em cima do romance do célebre escritor americano Paul Benjamin Auster, autor de vários best-sellers como Timbuktu, O Livro das Ilusões, A Noite do Oráculo e A Música do Acaso.
Nos anos 1980, Auster lançou sua Trilogia de Nova York, formada pelos livros Cidade de Vidro (1985), Fantasmas (1986) e O Quarto Fechado à Chave (1987).
O suspense de mistério policial que Paul Auster construiu em três histórias foi um sucesso. Na história de Cidade de Vidro, temos uma trama que envolve o protagonista Daniel Quinn com delírios quixotescos, o próprio escritor Paul Auster (!) e digressões sobre personalidade e metalinguagem nas produções intelectuais.
E em 1994, Karasik e Mazzucchelli fizeram uma graphic novel do primeiro livro da obra, publicado pela Avon Books.
A história de Quinn, um autor de romances de mistérios, no meio de uma narrativa de detetive particular pós-existencialista, ganhou muito com a arte de David Mazzucchelli.
Na trama, em uma noite qualquer, uma voz desconhecida no telefone implora pela ajuda de Quinn, atraindo-o para um mundo e um mistério muito mais estranhos do que qualquer coisa que ele já tenha escrito.
Ele se vê no encalço de um pai recém-saído da cadeia que parece ameaçar a vida de seu próprio filho, e a história desvia por caminhos inusitados e tocantes conforme discute questões como a linguagem e a própria natureza humana.
A obra foca também na discussão de nomes, pseudônimos e identidade. E tudo isso vem numa abordagem nada tradicional, num mix de texto e arte que explora as reflexões que esses assuntos trazem.
David Mazzucchelli deixa de lado sua arte realista para criar uma metamorfose gráfica, mais estilizada e sofisticada, uma interpretação genial de desenho.
Cidade de Vidro
Publicada no Brasil em 1998 pela editora Via Lettera e desde então fora de catálogo, Cidade de Vidro era um dos buracos mais significativos da biblioteca de HQs, que agora é sanado pela editora Mino, que acaba de publicar uma nova edição da obra.
Com prefácio de Art Spiegelman, o celebrado autor de Maus (1980-1991) — e que já tinha feito o design original da HQ em seu lançamento americano — temos aqui uma joia da Nona Arte.
Se valendo de um imenso arsenal narrativo, David Mazzucchelli e Paul Karasik passeiam pelas inúmeras possibilidades dos quadrinhos com naturalidade e criam um livro imortal, que o tempo tratou de consagrar em clássico.
Cidade de Vidro pela editora Mino chega com design original inédito, lombada redonda, fitilho marca-páginas e miolo em papel alta alvura 150 gramas.
São 144 páginas preto e branco com tradução de Thiago Lins. Quem comprar na loja da editora, recebe também um brinde exclusivo.
Sobre a editora Mino
A editora Mino surgiu no espaço editorial brasileiro em 2014, com a proposta de publicar quadrinhos autorais e de personalidades marcantes.
E ela fincou sua bandeira no território do quadrinho nacional: já são mais de 80 livros editados e agrupados num catálogo que reúne a nata do quadrinho nacional e internacional em edições bem caprichadas, conduzidas pelo excelente trabalho de curadoria e edição de Janaína Luna.
Você pode conhecer todo o catálogo da editora aqui.
Em sua apresentação no site oficial, ela informa que “(…) Casa do antigo e do novo, do consagrado e do inovador, a editora Mino segue insatisfeita, quebrando barreiras e buscando novos horizontes para o quadrinho brasileiro.”
Os Garotos do Reservatório, uma HQ-thriller dos anos 90, escrita por Celio Cecare e desenhada por Fábio Cobiaco, já foi resenhado aqui. E também traz uma entrevista exclusiva com o Celio.
O Demolidor de David Mazzucchelli
David John Mazzuchelli nasceu nos Estados Unidos e iniciou a sua carreira nos anos 1980 no mercado de quadrinhos de super-heróis, onde trabalhou para as duas maiores editoras do mercado, a Marvel Comics e DC Comics.
Seu traço realista quando necessário, cinematográfico quando exigido, e expressionista quando se pede, conquistou público e crítica logo de cara.
Seu primeiro trabalho foi em uma história de Shang-Chi, Master of Kung Fu #121 (1983).
Mazzucchelli desenhou o Demolidor da Marvel e o Batman da DC em duas outras obras-primas: Queda de Murdock e Batman – Ano Um, respectivamente.
Curiosamente, as duas sagas foram publicadas nos títulos regulares dos personagens, apenas para depois serem lançadas em formato graphic novel.
Queda de Murdock (no original, Born Again, “renascido”) saiu em Daredevil #227–231, em 1986. Foi criada pelo escritor e desenhista Frank Miller e representa sua despedida do Demolidor, título o qual escreveu e desenhou na melhor de todas as fases do personagem, entre 1979 e 1983.
Seu Demolidor teve a ausência dos vilões carnavalescos típicos dos super-heróis. Em vez disso, Miller mirou um olhar crítico e profundo em cima de gângsters e criminosos violentos nas ruas sujas e imundas de NY, mais especificamente na Cozinha do Inferno, o bairro onde vive o advogado cego Matt Murdock, a identidade secreta do herói.
Ele deixou mais realístico o herói, abordou aspectos da vida pessoal de Matt em oposto à sua identidade secreta, e lapidou como ninguém o único poder do personagem, com soluções gráficas bem criativas para seus sentidos ampliados.
O mood oriental que Miller estava próximo e gostando na época, como o mangá Lobo Solitário, exemplifica a qualidade da arte e narrativa cinematográfica encontrada nas páginas, que encontram seu ápice na luta do herói contra a organização de ninja assassinos Tentáculo (no original The Hand, “A Mão”) e a a criação da eterna namorada-rival-inimiga Elektra, uma das personagens femininas mais poderosas das HQs.
Toda essa excelência se manteve na saga da Queda de Murdock. Miller destrói cada pedacinho da vida de Murdock quando sua ex-namorada, Karen Page, antes a secretária de seu escritório de advocacia, agora uma viciada em drogas na indústria do sexo, vende sua identidade secreta para bandidos em troca de drogas.
Em um plano incrível de Wilson Fisk, o Rei do Crime, o vilão tenta aniquilar seu adversário de todas as formas possíveis.
O Demolidor passará por um verdadeiro apocalipse psicológico, moral e físico.
E a redenção é tão impactante quanto.
Ainda hoje é a maior história do Homem sem Medo já escrita.
Em 1986, Frank Miller estava no auge de sua capacidade artística — ele fez essa saga ao mesmo tempo que Batman – O Cavaleiro das Trevas, obra seminal da indústria, na DC Comics.
Temos aqui com Miller e Mazzuchelli não apenas uma das melhores histórias do Demolidor, mas do gênero de super-heróis.
Há espaço para bons questionamentos envolvendo o patriotismo do Capitão América e os dilemas morais e éticos do repórter Ben Urich, que quer contar a história de Matt Murdock e o Demolidor.
David já estava no título desde Daredevil #206, numa história criada por Dennis O’Neil. Ele também trabalhou com outros roteiristas no Demolidor, como Harlan Ellison e Jim Shooter. David fez 24 edições do herói, entre capas e artes internas.
A passagem de David Mazzucchelli em A Queda de Murdock resultou na criação de dois personagens icônicos na mitologia do Demolidor: o supersoldado cyborg Bazuca (Frank Simpson, o “Capitão América” dos anos 1980) e a Irmã (freira) Maggie (Margaret Grace Murdock), a até então desconhecida e sumida mãe de Matt.
O Batman de David Mazzuchelli
Senhoras e Senhores… Vocês comeram bem. Comeram a riqueza de Gotham… Comeram seu espírito! O Banquete acabou! De hoje em diante…
Nenhum de vocês estará a salvo!
– Batman
Na DC Comics, que em 1986 estava reiniciando comercialmente e editorialmente a editora com a megassaga Crise nas Infinitas Terras, a maioria dos heróis teria sua história recontada do zero.
E para o Batman, Frank Miller foi o escolhido. Ele já tinha cravado para sempre seu nome na história das HQs com o Demolidor, mas quando fez Batman – O Cavaleiro das Trevas (1986), minissérie em 4 edições que escreveu e desenhou, ele criou a base do novo mood da indústria de quadrinhos de super-heróis: mais sombrio, violento, visceral, “realista”.
Para essa nova história do Batman pós-Crise, Miller apenas escreveu, e trouxe David Mazzucchelli para desenhar. Juntos, criaram Batman – Ano Um.
Na revista principal do personagem — Batman #404-407 — Miller e Mazzucchelli contaram o começo da trajetória de Bruce Wayne em se tornar um vigilante, proposta diametralmente oposta a qual Miller tinha feito antes em Cavaleiro das Trevas.
Como o próprio título da minissérie diz, este é o primeiro ano de ações do Batman. E e se tornou tão icônica que é referenciada até hoje. Foi aqui eu soubemos como um jovem morto por dentro e sedento de vingança renasceu como o mais sombrio dos super-heróis.
O começo é conduzido por duas narrações: a do próprio Bruce Wayne e do então tenente James Gordon, o futuro e famoso comissário bigodudo de Gotham City.
Gordon vem transferido de Chicago, é um policial honesto, qualidade rara na imundície em que vai chafurdar. Já Bruce Wayne retorna ao lar após anos de estudos e treinamentos mundo afora, ainda sem ideia de como combater o crime.
Frank Miller e David Mazzucchelli mostram novamente que são uma verdadeira dupla dinâmica, e a excelência de qualidade de roteiro e arte se repete aqui.
Frank também usou essa história para contar a origem da Mulher-Gato (depois mudada outras vezes) e retratar a relação entre Batman e o promotor Harvey Dent, que seria transformado no vilão Duas-Caras.
Miller e Mazzucchelli criaram Carmine Falcone, o “Poderoso Chefão” de Gotahm City antes da ascensão dos supervilões na cidade, e Sarah Essen Gordon, a futura mulher de Gordon, aqui um adúltero da esposa grávida — e mesmo assim, funciona.
David Mazzucchelli Indie
Depois de Batman – Ano Um, David Mazzucchelli saiu do mercado mainstream e mergulhou em projetos pessoais e independentes.
Publicou três números da sua revista Rubber Blanket.
Quem o ajudou na edição foi sua esposa, a pintora Richmond Lewis (que já tinha colorido Batman – Ano Um). Ter esse controle narrativo permitiu para David crescer em seu storytelling.
Ele colaborou em diversas antologias e revistas como Drawn & Quaterly, Snake Eyes, Zero Zero e Little Lit, até ter contato com o escritor Paul Karasik.
E juntos, os dois transformariam a Cidade de Vidro de Paul Auster numa das melhores novelas gráficas das HQs.
O uso de duas cores de Mazzucchelli influenciou uma grande quantidade de artistas independentes nos anos 1990 e 2000, como Darwyn Cooke, Frank Santoro e Dash Shaw.
No livro de Auster chamado As Loucuras de Brooklyn (2006), que tem como pano de fundo as polêmicas eleições norte-americanas de 2000, há uma personagem chamada Nancy Mazzucchelli, em homenagem ao desenhista.
Em 2009, David publicou Asterios Polyp, pela Pantheon Books. Com ela, venceu o Los Angeles Times Book Prize de 2010 por melhor graphic novel. O livro conta a história do professor que dá nome à obra, que tem sua casa destruída por um incêndio e reconstrói sua vida e sua forma de ver o mundo.
Mazzucchelli fez várias ilustrações para revistas americanas, como capas e artes internas da The New Yorker.
Em 2011, ele participou da produção da animação de Batman – Ano Um, lançada pela Warner Home Video.
Falando em vídeo, David Mazzucchelli discorreu em 2012 sobre os aspectos da narrativa dos quadrinhos em uma palestra sensacional na Fashion Institute Technology, por conta de um evento do Departments of Fine Arts and History of Art (Departamento de Belas Artes e História da Arte do instituto em questão).
A arte de Mazzucchelli
Alguns dos trabalhos menores de David Mazzucchelli na Marvel valem o destaque aqui.
A primeira página desenhada, em Master of Kung Fu #121 (1983).
Ele escreveu e desenhou uma aventura do Indiana Jones em The Further Adventures of Indiana Jones #14 (1984), época em que a Marvel tinha a licença da franquia para produzir quadrinhos.
Sua arte em Demolidor ilustrou as bios do herói e do Rei do Crime em The Official Handbook of the Marvel Universe #3 e 7 (1985).
Ele fez a capa alternativa e a arte interna de X-Factor #16 (1986), com uma história muito bonita e íntima de Skids e Rusty, dois jovens mutantes que sempre receberam menos destaque na mitologia X.
Mazzucchelli também fez a capa de Spider-Man #287 (1987), e a capa e desenhos de uma história do Anjo, escrita por Ann Nocenti, publicada em Marvel Fanfare #40 (1988). Essa história foi feita depois de Batman – Ano Um.
Na DC, além das edições de Batman, David Mazzuchelli apareceu com sua arte em dois números da enciclopédia Who’s Who: The Definitive Directory of the DC Universe.
Na primeira série, no número #19 (1986), com a bio do Batman, e em Who’s Who: The Definitive Directory of the DC Universe Update ’87 #2 (1987), com a bio do tenente/comissário James Gordon e o vilão Charada.
/ JORGE FORNES. Se David Mazzucchelli não desenha mais super-heróis e você gosta da arte dele, pode procurar os trabalhos do artista Jorge Fornes, que tem um estilo muito parecido. Inclusive com artes para o Demolidor, Batman e outros personagens urbanos que que estão no mood artístico dos dois.
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