Henry Alfred Kissinger (1923 – 2023) está morto. Muitos lamentam a morte de um dos maiores diplomatas que os Estados Unidos da América já teve, um judeu alemão de nascimento. Mas muitos também comemoram sua morte. Político e estrategista brilhante, Kissinger é talvez a personalidade mais influente na política externa americana desde o final dos anos 1960, serviu como secretário de Estado de dois presidentes republicanos, Richard Nixon e Gerald Ford, entre 1973 e 1977, e não é exagero dizer que nosso mundo foi construído segundo o que ele entendia de geopolítica e realpolitik.
Ele serviu como conselheiro de política externa de Nelson Rockefeller, então candidato às primárias do Partido Republicano, mas em 1969, após a vitória eleitoral de Nixon, Kissinger foi para o outro lado e assumiu o cargo de Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA. Ele ajudou a arrefecer em algum nível a Guerra Fria, ao criar uma política de distensão com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, com a assinatura de acordos de limitação de armas nucleares (SALT), e dar abertura nas relações com a República Popular da China — isso ajudou a impulsionar a economia chinesa, que passou a ter uma média de crescimento do PIB de 9% ao ano.
De 1973 a 1976 foi Secretário de Estado, e nesses anos supervisionou todas as operações encobertas efetuadas pelos diversos organismos do governo, a começar pela CIA (agência de espionagem dos EUA). Isso incluiu o assassinato de milhares de civis durante a Guerra do Vietnã, outros milhares de mortos com as 540 toneladas de bombas jogadas no Camboja (até hoje o país mais bombardeado do mundo, com 150 mil civis assassinados, segundo as estimativas mais conservadoras); o suporte e as armas oferecidas em 1971 ao golpe militar conduzido em Bangladesh pelo general Yahja Khan; o envolvimento direto dos EUA no assassinato de René Schneider, comandante das forças armadas chilenas, em 1971, e a consequente ascensão dirigida do General Augusto Pinochet ao poder e a consequente morte do então presidente eleito Salvador Allende; o apoio dado ao então ditador Suharto quando o exército da Indonésia invadiu o Timor Leste, matando outros milhares de civis; o apoio ao apartheid na África do Sul, enviando armas para o país para intervenção em Angola, onde o socialismo poderia ganhar o poder, além de outros eventos.
Henry Kissinger recriou a política internacional em benefício do império americano, seja como diplomata brilhante ou criminoso de guerra. Para ele, latinos, africanos, árabes, asiáticos e > insira qualquer não-americano aqui < não valiam o esforço de um pragmatismo de exceção.
Aqui no meu blog Destrutor desenvolvo várias ideias e conceitos sobre a aplicação de figuras e templates políticos do mundo real para os quadrinhos de super-heróis, em especial na editora DC Comics. Apesar de seu universo ser estabelecido em cima de arquétipos de deuses e semideuses — alguns literalmente, como a Mulher-Maravilha e o Capitão Marvel/Shazam –, a narrativa de histórias mais pé sujo no chão de escritórios burocráticos escusos e vielas de cidades do Terceiro Mundo (América Latina) e o não-Ocidente (Oriente Médio, China e União Soviética/Rússia) se mostra surpreendentemente rica e bem elaborada nas HQs da editora.
Há toda uma série de títulos dos anos 1980 da DC Comics que dialogam diretamente com essa temática política, com o presidente Ronald Reagan por vezes no central disso. Ele foi o 40º Presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1989 em 2 mandados, e a década no país acabou por ter o nome “Era Reagan” tamanha sua influência, dirigida principalmente pela proeminência de políticos da direita conservadora americana, incluindo ele mesmo.
Personagens centrais da temática de espionagem no Universo DC pós-Crise nas Infinitas Terras (1986) — um evento reboot de mais de 50 anos de cronologia de milhares de histórias da editora para recontar tudo como “novo”, com intenção de despertar novos interesses comerciais e editorial — como o Sargento Steel (vindo da editora Charlton Comics, comprada pela DC anos atrás) e Amanda Waller (uma poderosa e perigosa burocrata negra criada pelos artistas John Ostrander e John Byrne) — ambos estreando na minissérie Lendas (1986-1987) e com papéis de liderança implacável em diversas agências secretas, como Força Tarefa X, Esquadrão Suicida, Xeque-mate e Departamento de Assuntos Metahumanos; Valentina Vostok, uma militar russa e super-heroína a contragosto, e depois comandante da Agência, órgão americano para lidar com seres superpoderosos; o Diretor Bones, antigo vilão e agora líder do Departamento de Operações Extranormais (DOE), o “Arquivo X” da DC Comics, foram mostrados frequentemente lidando com figuras reais da política, como Reagan.
Os quadrinhos dos anos 1970 eram predominantemente influenciados por eventos sociais, culturais e políticos. A década foi marcada por mudanças na indústria de quadrinhos, com temas mais realistas e socialmente relevantes sendo incorporados nas histórias. Questões como a Guerra do Vietnã, movimentos pelos direitos civis e a Guerra Fria frequentemente apareceram nas narrativas dos quadrinhos. Muito disso permaneceu nos títulos dos anos 1980.
É importante notar que as influências nos quadrinhos vêm de uma variedade de fontes, e os roteiristas e artistas muitas vezes se inspiram em eventos globais, culturais e políticos para criar histórias que reflitam o zeitgeist da época. Só que ninguém foi mais importante nos bastidores da política que Henry Kissinger, que moldou — para bem e para mal — a política mundial da segunda metade do século 20.
Kissinger, que é bom lembrar, nunca teve cargo eletivo, mas mais que qualquer outro político, fez da geopolítica e a realpolitik um norte para posicionar os interesses dos Estados Unidos acima de tudo e todos.
O primeiro termo, geopolítica, se refere à fusão de estratégias adotadas pelo Estado para administrar seu território em termos geográficos e históricos. É um campo de conhecimento multidisciplinar com bases fixas de Teoria Política, Geografia e Ciências Sociais aplicadas. A marca do pensamento geopolítico de Kissinger é um projeto estrutural. Para ele, tudo estava sempre conectado ao todo. A ideia básica é que a nível global, as questões de dignidade humana é só um apêndice, algo menor no jogo do poder.
O termo realpolitik vem do alemão, que significa “política realística”. É a política ou diplomacia baseada em considerações práticas, em detrimento de noções ideológicas, identificada frequentemente como coercitiva, imoral ou mesmo maquiavélica. Kissinger o identificava como um animal diferente: ele seria usado por pensadores de política externa liberais e realistas para rotular, criticar e facilitar a escolha de lados. Kissinger dizia que o papel do estadista é “a capacidade de reconhecer a real relação de forças e fazer com que esse conhecimento sirva a seus fins“.
As políticas pragmáticas e flexíveis mudam de acordo com as necessidades da situação. Esse tipo de formulação de políticas explica a visão do mundo de Kissinger. As ações diplomáticas de Nixon com a China, mesmo apesar de a doutrina americana ser contrária ao comunismo, mesmo apesar da política de contenção do expansionismo soviético, foram a mais pura forma de realpolitik.
Pensadores como Maquiavel e Nietzsche defendiam a realpolitik como um tipo de realismo político segundo o qual as relações de poder tendem a solapar todas as pretensões de fundamentação moral. O termo foi cunhado por Ludwig August von Rochau, escritor e político alemão do século XIX, em um livro de 1853.
O estudo das forças que moldam, mantêm e alteram o Estado é a base de toda visão política e leva à compreensão de que a lei do poder governa o mundo dos estados, assim como a lei da gravidade governa o mundo físico. A ciência política mais antiga estava plenamente ciente dessa verdade, mas chegou a uma conclusão errada e prejudicial — o direito dos mais poderosos. A era moderna corrigiu essa falácia antiética, mas ao romper com o suposto direito do mais poderoso, a era moderna estava muito inclinada a ignorar o poder real do mais poderoso e a inevitabilidade de sua influência política.
Vários elementos anteriores fazem essa composição, formuladas por figuras como Sun Tzu (estrategista militar chinês que escreveu A Arte da Guerra), Tucídides (historiador grego que escreveu a História da Guerra do Peloponeso), Ibn Khaldun (historiógrafo árabe), Han Fei (estudioso chinês que teorizou o legalismo), Thomas Hobbes (filósofo inglês que escreveu Leviatã), Carl von Clausewitz (general prussiano, autor de frases como “A guerra é a continuação da política por outros meios” e “Para alcançar a vitória devemos concentrar nossa força no centro de poder e movimento do inimigo. Seu centro de gravidade.”), além de muitos outros.
Otto von Bismarck, o primeiro chanceler de Guilherme I do Reino da Prússia no Século XVIII, também era defensor da realpolitik, e não sem razão um dos políticos preferidos de Kissinger. Outros proponentes do realismo político do século XX, além de Kissinger, são Hans Morgenthau (cientista político alemão), Charles de Gaulle (político mais influente da história da França moderna), Lee Kuan Yew (político de Singapura) e George F. Kennan (diplomata americano, com escritos que inspiraram a Doutrina Truman e a política externa dos EUA de “conter” a União Soviética, com papel importante no desenvolvimento de programas e instituições definitivos da Guerra Fria, especialmente o Plano Marshall).
Harry Kissinger e DC Comics
Na única aparição de Kissinger nos quadrinhos da DC Comics, ocorrida em Super-Team Family #8 (1977), escrita por Steve Steakes e desenhos de Jim Sherman, Henry Kissinger fez exatamente o que se esperaria dele. Na trama, que se passa no final de 1976, Kissinger é capturado e levado para uma misteriosa ilha do Triângulo das Bermudas. O Presidente Gerard Ford em pessoa pede a ajuda de uma equipe de aventureiros para resgatá-lo: os Desafiadores do Desconhecido.
A equipe é uma criação de Jack Kirby, um dos maiores artistas dos quadrinhos de super-heróis, criador de centenas de personagens e pai (junto de Stan Lee) do Universo Marvel, a eterna concorrente da DC. O artista Dave Wood também recebe crédito pela criação, de acordo com alguns especialistas em HQs.
Os Desafiadores do Desconhecido tiveram sua primeira aparição em Showcase #6 (1957), e eles são o Professor Walter Mark “Prof” Haley (também mestre em mergulho), o piloto militar Kyle “Ace” Morgan, o especialista em tecnologia Matthew “Red” Ryan e o ex-campeão olímpico de luta-livre Leslie “Rocky” Davis. Depois de um acidente de avião em que todos estavam (a caminho de receber um prêmio em reconhecimento de suas habilidades), os 4 conseguem sobreviver. E decidem usar o fato como ignição para realizarem novas aventuras (onde provavelmente seriam mortos). Quadrinhos dos anos 1950 que fala. Também teríamos depois June Robbins, uma especialista em computadores.
Esse quarteto fantástico explora ocorrências tanto de ciência paranormal quanto sobrenaturais, além de encarar diversas ameaças extravagantes, como cientistas loucos, dinossauros e monstros do espaço
Na trama de Super-Team Family #8 (que era um título relacionado ao Superman e que mostrava aventuras de vários personagens), Henry Kissinger é mostrado dentro de um avião, preocupado com um confronto entre os EUA e a URSS. Ele está aparentemente em missão de liderar as negociações de paz, mas seu avião sofre uma forte turbulência no Triângulo das Bermudas e desaparece. Dada a região do local, situada no Oceano Atlântico entre as ilhas Bermudas, Porto Rico, Fort Lauderdale (Flórida) e Bahamas, célebre por supostamente ter desaparecimentos inexplicáveis de barcos, navios e aviões, é seguro apostar que velho Kissinger está em apuros.
E a história segue esse mood quando encontram o diplomata preso em outra dimensão, mais precisamente em uma ilha povoada por guerreiros montados em estranhas feras com vários chifres (!). As vibrações dos chifres dessas feras deixam as pessoas inconscientes, e os Desafiadores não são imunes. Quando os heróis acordam, eles se encontram em uma cela de prisão com Kissinger, que explica que esse mesmo campo vibratório mantém a ilha invisível (!!). Este campo também faz com que os nativos sejam imortais (!!!), habitantes esses originalmente vindos de muitas épocas históricas diferentes (!?). Claramente temos aqui uma história em quadrinhos setentista baseada no material original dos Desafiadores dos anos 1950.
Por sorte, os Desafiadores têm alguns dispositivos eletrônicos escondidos nos saltos das botas e escapam. “Ace” Morgan pilota um jato pelo campo vibratório, e todos retornam para a Flórida. Kissinger diz aos Desafiadores que o mundo deveria aprender uma lição com os diversos guerreiros que se uniram na ilha misteriosa: “Se ao menos o nosso mundo pudesse unir-se contra um inimigo comum – e fazer com que esse inimigo fosse a própria guerra!“. Essa foi a primeira história da equipe depois de diversas republicações desde a edição Challengers of the Unknown #75 (1970).
Henry Kissinger e Watchmen
Henry Kissinger aparece também em duas edições de Watchmen, uma maxi série em 12 edições que é a obra seminal de quadrinhos americanos de super-heróis, com frequência na lista de Top 1 das HQs. Ao lidar diretamente com o tabuleiro político da Guerra Fria entre Estados Unidos e a União Soviética, Watchmen dialoga diretamente com os temas que fizeram a carreira de Henry Kissinger.
A história é uma espiral gravitacional de uma trama de assassinatos, conspiração, geopolítica e fim do mundo, em uma premissa que serviu de molde criativo para toda a indústria de quadrinhos de supers: como seria o mundo real se existissem de fato os chamados super-heróis? As digressões em cima disso feitas pelo escritor da obra, Alan Moore, e os desenhos de Dave Gibbons, se encarregam de criar a maior obra-prima do gênero.
Na trama, eleito presidente dos Estados Unidos em 1968, Richard Nixon pediu ao Doutor Manhattan — o único superser do planeta, a despeito da presença de outros super-heróis, todos combatentes do crime sem poderes — que interviesse no Vietnã, o que garantiu a vitória dos EUA na guerra.
Com o sucesso da Guerra do Vietnã, Nixon conseguiu váiras vitórias, como a revogação da 22ª Emenda — o que permitiu que ele concorresse por pelo menos quatro mandatos consecutivos; realizasse os assassinatos dos repórteres do Washington Post Bob Woodward e Carl Bernstein, mortos provavelmente pelo Comediante, antigo super-herói e depois operativo de missões secretas do governo americano, o que impediu a revelação do Escândalo Watergate; e a intervenção bem sucedida do Comediante na crise iraniana de reféns de 1979. Isso fez com que Nixon fosse reeleito repetidamente. A emenda em questão fez com que Gerald Ford, Jimmy Carter e Ronald Reagan nunca se tornassem presidente dos Estados Unidos no universo Watchmen, sendo que o ator Robert Redford foi o concorrente derrotado de Nixon no lugar de Reagan nesse contexto, em uma rima da profissão dos dois (ambos atores).
A aparição de Henry Kissinger se dá em Watchmen #3, quando o Doutor Manhattan partiu para Marte. Nixon discute em uma sala de guerra com Kissinger, G. Gordon Liddy e generais do exército sobre que reação tomar em relação a União Soviética por conta da invasão russa do Afeganistão.
Liddy era George Gordon Battle Liddy, advogado, agente do FBI (!), apresentador de talk show (!!) e ator (!!!), condenado no Caso Watergate como chefe operacional da unidade White House Plumbers durante o governo Nixon. Liddy foi condenado por conspiração, roubo e grampeamento telefônico ilegal por seu papel no escândalo.
O título dessa edição de Watchmen, “The Judge of All the Earth“, vem do Gênesis, o primeiro livro da Bíblia. Capítulo 18, versículo 25: “Não agirá com justiça o Juiz de toda a terra?” (“Shall not the Judge of all the earth do right?“). A clássica frase “Quem Vigia os Vigilantes?” (“Who Watches the Watchmen?“) aparece em um grafite num muro em um beco onde Dan e Laurie caminham.
Também há uma citação cifrada para dois políticos na edição. Uma frase modificada da original “In your hearts, you know it’s right” (“Em seus corações, você sabe que isso está certo“) é vista em um exemplar do jornal de direita New Frontiersman. Ela foi slogan do político conservador Barry Goldwater, candidato a presidência dos EUA em 1964. O slogan depois foi modificado por apoiadores de Lyndon B. Johnson para “In Your Heart You Know He Might.”
Barry Morris Goldwater foi um general da Força Aérea e senador de 1953-1965 e 1969-1987. Foi ele quem aconselhou Nixon a renunciar depois do Escândalo Watergate vir à tona. Em 1986, ele supervisionou a aprovação da Lei Goldwater-Nichols, que fortaleceu a autoridade civil no Departamento de Defesa dos EUA. Curiosamente, perto do final de sua carreira, as opiniões de Goldwater sobre questões sociais e culturais tornaram-se cada vez mais liberais.
O título da edição #10, vom mais uma aparição de Henry Kissinger, “Two Riders Were Approaching“, é referência a All Along the Watchtower, canção de Bob Dylan presente no disco John Wesley Harding (1967). “Lá fora, ao longe, um gato selvagem rosnou, dois cavaleiros se aproximavam, o vento começou a uivar” (“Outside in the distance a wild cat did growl, two riders were approaching, the wind began to howl“) é a citação final da revista, em referência direta aos momentos que antecedem o clímax de Watchmen.
Destaque para a capa, indicando os níveis de DEFCON que os EUA possuem. O termo faz alusão à condição de prontidão de defesa (DEFCON), um estado de alerta do país americano quando ameaçado por alguma potência estrangeira. O A1 e o A2 representam os aviões presidenciais Air Force 1 e Air Force 2, designados respectivamente para o Presidente Nixon e o Vice-Presidente Ford. Na edição, o DEFCON 2 foi alcançado. Nixon está de posse dos controles das ogivas nucleares e em um complexo da Força Aérea, junto com Henry Kissinger e G. Gordon Liddy, considera suas opções diante de uma iminente guerra nuclear com os soviéticos.
No clímax da obra, em 2 de novembro de 1985, a cidade de Nova York foi devastada por um monstro gigante parecido com uma lula. Por causa do ataque, que aparenta ser de origem alienígena, Nixon cancela o DEFCON 2, e ele e Mikhail Gorbachev, líder da URSS e Secretário Geral do Partido Comunista, concordam em cessar todas as hostilidades e apelar à cooperação entre os Blocos Ocidental e Oriental para enfrentar a ameaça alienígena — na verdade uma bandeira falsa fabricada por Adrian Veidt, outro super-herói, que queria salvar a Terra de um armagedon nuclear, um homem bastante sábio e de mentalidade pragmática para conseguir alcançar seus objetivos, não importando os custos, nem mesmo se ele mesmo fosse o super-vilão. Nisso, muito parecido com Kissinger. Essa foi a última aparição de Harry Kissinger em um quadrinho da DC Comics. Fora da continuidade regular, é bom relembrar.
Henry Alfred Kissinger
Heinz Alfred Kissinger nasceu na Alemanha em 1923 em uma família de judeus ortodoxos que conseguiu fugir dos nazistas para os EUA em 1938. Ele tinha apenas 15 anos. Ao se tornar maior de idade e ganhar a cidadania americana, serviu na inteligência do exército na Segunda Guerra Mundial. No pós-guerra foi aluno e depois professor da Universidade de Harvard. Seu doutorado foi sobre o Congresso de Viena, o tratado que recriou politicamente o mundo depois das Guerras Napoleônicas em 1815.
Em sua ascensão ao poder, o agora Henry Kissinger se tornou assessor para assuntos internacionais de Nixon, e jogou o secretário de Estado oficial, William Rogers, para o canto, até que finalmente o substituiu em setembro de 1973. Esse ano é marcante pela polêmica de quando recebeu o prêmio Nobel da Paz em 1973 — semanas depois do Golpe no Chile –, o qual foi indicado em conjunto com o dirigente comunista vietnamita Le Duc Tho, com quem travou as negociações de cessar-fogo durante os Acordos de Paz de Paris. Que na verdade não cessaria por mais 2 anos: a guerra continuou sem os americanos, e o Vietnã se tornou todo comunista dois anos depois. Le Duc Tho rejeitou o prêmio. Kissinger aceitou, mas não foi recebê-lo. E tentou devolvê-lo depois.
“Todas as pessoas que morreram no Vietnam entre o outono de 1968 e a queda de Saigon – e todas as que morreram no Laos e no Camboja, onde Nixon e Kissinger expandiram secretamente a guerra poucos meses após tomarem posse, bem como todas as que morreram na sequência, tal como o genocídio cambojano, a sua desestabilização foi desencadeada – morreram por causa de Henry Kissinger”, diz um trecho de uma matéria da Rolling Stone sobre a morte de Kissinger.
Não há texto melhor sobre a morte de Henry Kissinger do que essa publicada pela Rolling Stone. Escrita por Spencer Ackerman, premiado jornalista com passagens por Wired, Daily Beast, Guardian e mais, o cara disseca o cadáver sem piedade. No Chile, Kissinger ajudou a construir um modelo para o mundo em que vivemos atualmente. “As câmaras de tortura de Pinochet foram a maternidade do neoliberalismo, um bebê parido por Kissinger, sangrento e gritando“, diz um trecho sobre o golpe no Chile, também em 1973.
“Não vejo por que ficar parado vendo um país se tornar comunista devido à irresponsabilidade de seu povo”, disse Kissinger na ocasião. O que resume o envolvimento dos EUA no Golpe de Estado no Chile (que também deu sinal verde para a Junta Militar Argentina em sua Guerra Suja). “Henry via Allende como uma ameaça muito mais séria do que Castro”, disse um funcionário de Kissinger a Seymour Hersh, autor do livro The Price of Power (1984), sobre a vida do diplomata.
Além das interferências no Chile e Argentina, Kissinger legitimou o regime brasileiro, ao reconhecer a importância estratégica do Brasil para os EUA no hemisfério ocidental. Talvez tenha sido sua criação uma famosa frase de Nixon: “Para onde o Brasil se inclinar, toda a América Latina se inclinará“, ao saudar o então presidente Garrastazu Médici, em Washington, em 1972.
Quem conhece a história de Zuzu Angel, uma mineira conhecida nacional e internacionalmente não apenas por seu trabalho inovador como estilista de moda, mas também como pela sua atuação constante em busca de respostas a respeito do desaparecimento de seu filho, Stuart Angel, que tinha cidadania americana também, sabe bem as ramificações políticas do diplomata no Brasil.
O rapaz de 25 anos foi morto por torturadores da ditadura brasileira em 1971 e a mãe não parou de procurar saber onde ele foi enterrado, até ela mesma falecer, em um acidente de carro dos mais suspeitos, em 1976, pouco depois de entregar um dossiê sobre o caso em mãos para o próprio Henry Kissinger, quando ele visitava o país. Temos até filme a respeito.
Kissinger, ainda em 1973, aplicou uma “diplomacia de transporte” no Oriente Médio após a Guerra do Yom Kippur, a guerra árabe-israelense, quando persuadiu Israel a se retirar parcialmente do Sinai (domínios do Egito) em deferência às políticas criadas pela crise do petróleo (Arábia Saudita fechou as torneiras de combustível no mundo neste ano, criando uma crise mundial).
No ano seguinte, Henry Kissinger foi um dos poucos auxiliares de Nixon a sobreviver ao escândalo de Watergate e à renúncia do presidente e continuou no cargo no interregno de Gerald Ford, que assumiu em 1974. Mas com a derrota de Ford nas eleições de 1976, deixou o governo.
Isso não impediu que Kissinger se tornasse uma voz perene na política externa dos EUA. Ele formou a Kissinger Associates, uma firma de consultaria diplomática a geopolítica, e escreveu pelo menos uma dúzia de livros sobre história diplomática e relações internacionais. Um deles é um clássico obrigatório: Diplomacy (1994), que descreve como a arte da diplomacia nasceu no mundo em que vivemos, e por que a política externa dos Estados Unidos sempre foi diferente da política de outras nações. O livro situa-se entre a prática do serviço diplomático e as teorias acadêmicas sobre o tema, e é fundamental para todos os interessados na compreensão das forças que movimentam o mundo hoje e como essas forças impactarão o futuro das nações.
Como contraponto, há o documentário O Julgamento de Kissinger (2001). Christopher Hitchens (1949 — 2011), jornalista, escritor e crítico literário, considerado um dos mais influentes da história, com mais de 30 livros sobre cultura, política e literatura, e talvez o ateu mais militante que já existiu, monta uma verdadeira peça de acusação contra Kissinger, extremamente bem documentada. Sua tese central é a de que, pelas leis internacionais, Kissinger deveria ser julgado e condenado por todos os crimes perpetrados nos anos passados na Casa Branca, como acabamos de ver. O documentário é baseado em um livro de sua autoria, de mesmo nome, lançado em 2002.
O autor defende que Kissinger deveria ter o mesmo tratamento dado ao ex-presidente iugoslavo Slobodan Milosevic pela Corte Internacional de Haia, acusado pelas potências ocidentais de crimes de guerra contra a humanidade. Kissinger nunca respondeu às acusações, contando com a cumplicidade do poder político e econômico norte-americano. Já em Paris, um juiz chegou a investigar o desaparecimento de 5 franceses após o golpe no Chile e magistrados argentinos tentaram interrogá-lo sobre assassinatos durante a ditadura.
A Suprema Corte do Chile também aprovou a convocação de Kissinger para depor sobre a morte do jornalista americano Charles Horman, em 1973. Esse assassinato em especial causou grande comoção na América na época, e mais ainda com o lançamento do filme Desaparecido (1982), de Costa-Gravas, mesmo quase uma década depois. O longa é baseado no livro The Execution of Charles Horman: An American Sacrifice (1978), de Thomas Hauser.
Horman era um jovem escritor e jornalista que vivia com a esposa Beth em Santiago durante o governo da Unidade Popular. Ele trabalhava traduzindo artigos e matérias dos jornais The New York Times e The Washington Post para uma publicação considerada subversiva, e acabou nas garras da ditadura chilena, junto com seus colegas de redação.
Charles não retornou mais para casa depois que foi capturado. Ed, seu pai, desloca-se para o Chile e, junto com Beth, retoma os passos do filho antes de desaparecer. E juntos descobrem a sombria cortina que esconde os crimes dos governos americano e chileno, que nada fazem para revelar a terrível verdade, descoberta a muito custo pelo pai: Charles foi assassinado no Estádio Nacional e enterrado numa parede, uma maneira comum da repressão chilena esconder os corpos dos torturados. Revoltado, Ed tenta processar Henry Kissinger, o então Secretário de Estado.
É válido também assistir outro documentário, HyperNormalization (2016), do cineasta Adam Curtis. Nele vemos argumentos bastante convincentes que desde a década de 1970, os governos, o mercado financeiro e os tecnocratas desistiram do complexo “mundo real” em prol de um “mundo falso”, mais simples, comandado pelas corporações e controlado pelos políticos. Kissinger é um dos personagens centrais dessa narrativa e fonte de muitas informações que vimos aqui. Entre os personagens centrais, além de Kissinger, temos o então Presidente da Síria Hafez al-Assad (1930 — 2000) e o Presidente do Líbano Muammar al-Gaddafi (1942 — 2011), além de diversas outras figuras políticas.
Partindo de Nova York, a maior metrópole do planeta, e Damasco, capital da Síria, vemos uma cadeia de eventos que mostram a lenta e corrosiva criação da pós-verdade, palavra do ano de 2016 pela Oxford English Dictionary, mesmo ano de lançamento do documentário e da eleição de Donald Trump. Isso marcou a derrota do jornalismo. Pois sua principal tarefa é apurar a verdade e expor mentiras. O mundo criado em parte por Kissinger tornou isso irrelevante.
Era o mesmo ano que a tração das redes sociais estavam tão poderosas que atropelaram qualquer outra plataforma de comunicação, o último refúgio de liberais. Para protestar contra a eleição de Donald Trump, expuseram suas opiniões em seus perfis, o que só ajudou a alimentar o algoritmo de captura de big data, mesmo que o tiroteio chegasse apenas a compatriotas que compartilhavam da mesma opinião.
Em benefício das grandes corporações, a raiva clicável e curtida se tornou a gasolina do motor da internet, hoje uma pantomina gigante que permite que Trump seja reeleito. O equivalente argentino Javier Milei já conseguiu se tornar o novo avatar. “Ler um livro complexo com atenção e interagir com ele de forma crítica tornou-se um ato tão contracultural quanto memorizar um poema épico na era anterior da impressão”, dizia Kissinger. Ele temia a internet, e na sua visão ela causa um efeito corrosivo sobre o intelecto popular, o que entregaria uma modernidade sustentada por homens menos eficientes me vez de líderes capazes. As falas e pensamento são referências ao livro Liderança: Seis Estudos em Estratégia Mundial, no qual traçou o perfil dos líderes pós-Segunda Guerra Mundial, que ele chama de visionários. Ele o publicou ano passado, quando tinha 99 anos de idade.
Ao comentar sobre a invasão da Rússia à Ucrânia ao The Wall Street Journal, também ano passado, afirmou que foi um erro o Ocidente apresentar à Ucrânia a possibilidade de aderir à Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, uma junta militar ocidental criada para se contrapor ao avanço soviético na Guerra Fria, nunca desmantelada, mesmo com o fim da Guerra Fria). Em sua visão, isso era uma provocação ao presidente russo Vladimir Putin. “Estamos à beira de uma guerra com a Rússia e a China em questões que criamos parcialmente, sem qualquer noção de como isto vai acabar ou aonde deverá levar.”
Seu ato diplomático mais recente ocorreu neste ano mesmo, em julho, quando realizou uma visita surpresa a Pequim para se encontrar com o presidente chinês, Xi Jinping.
E o que os atuais líderes mundiais disseram a seu respeito?
Jinping considerou que Kissinger “atribuiu grande importância às relações sino-americanas e acreditava que essas relações eram cruciais para a paz e prosperidade da China, dos Estados Unidos e do mundo“.
Já Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel, com quem Kissinger teve um encontro setembro de 2023 (antes dos ataques do Hamas no fatídico 7 de outubro), disse que “(sua morte) marca o fim de uma era em que o seu formidável intelecto e a sua capacidade diplomática moldaram não só o curso da política externa norte-americana, mas também tiveram um impacto profundo na cena global“.
“O nome de Henry Kissinger está indissociavelmente ligado à política externa pragmática da América, que desempenhou um papel fundamental na neutralização das tensões internacionais da altura e na obtenção de acordos soviético-americanos cruciais que contribuíram para reforçar a segurança global“, disse o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em um comunicado de condolências à esposa do ex-secretário de Henry (!).
“O seu século de ideias e diplomacia [referência aos 100 anos de idade do diplomata teve uma influência duradoura no seu tempo e no nosso mundo. A França endereça as suas condolências ao povo norte-americano“, disse Emmanuel Macron, Presidente da França.
“Henry Kissinger moldou a política externa norte-americana como poucos. O seu compromisso com a amizade transatlântica entre os EUA e a Alemanha foi significativo, e ele sempre permaneceu próximo da sua pátria alemã. O mundo perdeu um grande diplomata“, disse Olaf Scholz, da Alemanha.
“Morreu um homem cujo brilhantismo histórico nunca conseguiu esconder a sua profunda miséria moral“, é um trecho de uma fala de Juan Gabriel Valdés, ex-ministro das Relações Exteriores do Chile, que Gabriel Boric, presidente chileno, republicou em suas redes sociais.
O Nexo Jornal e o Xadrez Verbal, fonte de muitas informações dessa matéria, produziram um grande material sobre a vida e morte do diplomata, e são obrigatórios para quem quer entender mais sobre quem foi Henry Kissinger.
O historiador Greg Grandin, da Universidade de Yale, estima que entre os anos de 1969 e 1976, morreram entre 3 a 4 milhões de pessoas em decorrência das políticas de Kissinger, fazendo dele uma das personalidades mais violentas da história do século XX.
Henry Kissinger morreu no dia 29 de novembro de 2023, aos 100 anos de idade, contrariando uma velha máxima: aqui se faz, aqui se paga.
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