JORNALISMO | O elo do futuro dos dados

O ano de 2019 teve lucros na área da mídia de notícias para certos empreendimentos ainda de pé, com dados financeiros do jornalismo ganhando mais musculatura em sua incansável luta pela sobrevivência.

Empresas de mídia como Vox, Business Insider, Axios e Politico tiveram lucro ano passado, e outras, como Buzzfeed, Vice e The Athletic, enxergam sinal verde em 2020 no semáforo de saúde financeira.

O Athletic captou mais US$ 50 milhões nos últimos dias, e agora vale US$ 500 milhões, com expectativa de chegar a 1 milhão de assinantes em breve. É uma boa notícia depois de surras e massacres homéricos — BuzzFeed demitiu 15% da sua força de trabalho no mundo todo em 2019, por exemplo.

Mas embora contudo entretanto todavia…há contratempos do tamanho de meteoro de extinção.

O livro A World Without Work: Technology, Automation, and How We Should Respond (Um Mundo Sem Trabalho: Tecnologia, Automação e Como Devemos Responder, em tradução livre), do economista Daniel Susskind, argumenta que as máquinas vão, sim, ficar inteligentes o suficiente para substituir os humanos em praticamente todos os empregos.

É uma preocupação também do dono de uma das maiores empresas do mundo — o CEO do Google, Sundar Pinchai, afirmou o seguinte em entrevista no Fórum Econômico Mundial, em Davos: “Inteligência artificial é uma das muitas coisas profundas com as quais estamos trabalhando na humanidade. É algo ainda mais profundo do que fogo ou eletricidade”, de acordo com o B9.

Como que essa Skynet tratará a questão sob a ótica de mídia noticiosa? Já tem alguns anos que bots podem produzir notas rápidas de informações densas, mas ainda assim, carece de acompanhamento humano.

Os dados no jornalismo devem ser trabalhados de maneira empírica e muitas vezes empática. Máquinas conseguem exercer essa complexidade de trabalho?

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Deckard retrô: quase ninguém mais lê — ainda mais jornais

Onde o Jornalismo encontrará o Exterminador do Futuro de Dados?

Essa análise, assim como esse fluxo de grana, passou por 2019, mas encontrou outro filme de ficção científica: Blade Runner.

Blade Runner, filmado por Ridley Scott em 1982, baseado no livro do meu autor favorito, Philip K. Dick, de 1968.

Não temos carros voadores, mas temos uma maquininha que nos fornece as emoções (oi, Whatsapp). Não temos replicantes, mas temos replicadores de notícias falsas. O filme conversa diretamente com isso.

Pessoas falsas que precisam ser descobertas por testes, pois enganam qualquer incauto. Apesar de terem vida curta, querem prolongá-la. Duram exatamente 4 anos.

Scott e Dick não conseguiram sacar que o jornalismo ia ter vida curta também. Essa costura é um dos poucos furos previstos, e acho que ninguém iria chegar nessa conclusão mesmo.

Quem diria que informação correta e apurada um dia seria uma commoditie cerebral opcional? A imagem de Deckard lendo um jornal impresso já entrega tudo. Vivemos péssimos momentos na área.

Outra circulação de dados para outro jornalismo

É uma época em que os produtores de conteúdo-youtubers-instagramers-influencers são extremamente procurados como forma de divulgação de grandes empresas, e o que se torna um problema quando muitos os utilizam para adquirirem informações para construir opiniões.

Joga nessa panela aí o que consumir de música, filmes, literatura, posição política e o escambau de todo o resto do cotidiano.

Jornalistas perderam espaço para quem tem canal no Youtube, mas as pessoas ainda usam esses youtubers-instagramers-influencers como jornalistas, esperando análises e pensamentos críticos das obras apresentadas.

Jornalismo acaba sendo um produto apenas para jornalistas, num canibalismo consentido, uma espécie de conformismo de morte em vida.

Demorou, mas o novo jornalismo-conteúdo próprio virou aquele círculo publicitário de coxas creme que só conversam entre si, mandando aquele brainstorm maneiro para agradar os stakeholders da vez junto com o job do cliente do dia.

É o que sobrou e não ficou um cadáver bonito

Redações pulverizadas, precarização nas relações trabalhistas, um terremoto criativo e monetário que aniquila veículos e pessoas que trabalham no rolê. Quem diz quem sabe o que vai ficar de pé e quem sobrevivera é mentiroso.

A internet como forma de comunicação e democratização de informação falhou. Em tudo.

As pessoas estão mais burras, e não mais inteligentes. Elas não querem saber o que se deve, querem afirmações de suas convicções. Martin Hilbert, Umberto Eco, todos tinham razão. Ser gerador de conteúdo não é garantia de nada.

E muita gente não liga a mínima para a veracidade do que veicula. Quer lacrar, bombar, virar meme, angariar muitos seguidores e interações para ganhar dinheiro com eles. Se nossos pais diziam que ver TV emburrece, vemos na live de YouTube aberrações que superam.

Cada vez mais, as pessoas gostam de se informar por redes sociais, aceitam recomendações feitas por algoritmos, consomem o que é popular e têm preguiça de buscar coisas novas e diferentes.

Nunca tivemos tantas opções, tanta arte e informação a apenas um clique de distância, mas por outro lado, nunca fomos tão preguiçosos e complacentes.

A migração do papel para o online fez com que os sites migrassem mais para o marketing digital — técnicas de ranqueamento em plataformas de pesquisa.

Essa forma de trabalhar o texto não necessariamente atende as formas de comunicação que preza o jornalismo, mas é a realidade que se apresenta.

O marketing dos dados

Uma empresa de mídia cuja existência depende de pessoas não qualificadas se submete aos seus caprichos.

Não dá pra competir por clique, não dá pra vencer um site ruim com SEO qualificado e clickbait fazendo mais dinheiro com google ads do que empresas que pagam jornalistas para investigar e produzir conteúdo de qualidade.

Um jornalismo que é feito pra ser viral, pra ser curtido e escolhido por um algoritmo, não é jornalismo. É marketing.

Com a irrigação de produção de conteúdo na mão de todos e todas, imbecis ou não, notícias falsas se tornaram o que chamam hoje de fake news. É o que acontece quando a pluralidade de algo tão sensível quanto noticiar acontece.

O jornalismo de internet – e a extrapolação do público em ser receptor e produtor, rompendo a barreira unilateral da mídia até então – muitas vezes é preguiçoso demais.
E empobrecido por discussões que não levam a nada.

O que é o que não é jornalismo

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Paulo Francis foi um dos melhores jornalistas do Brasil

A maioria das pessoas não gosta de jornalistas. Não deve ser surpresa que jornalistas não gostam da maioria das pessoas. É difícil imaginar outra profissão em que seja tão fácil desenvolver um profundo desdém pelo gênero humano. Aquilo em que as pessoas acreditam, e que jornalistas sabem ser papo furado, liquida rapidamente com ilusões que o jovem recém-saído de uma universidade (hoje em dia) possa ter sobre sabedoria popular. Um exemplo é a agonia de Tancredo: não conheço um jornalista que não soubesse que depois da terceira operação haveria “baixa de cortina” para o presidente. E o troço foi se arrastando 39 dias com a maior solenidade pública na imprensa. Em particular, piadas depredatórias eram feitas pelos profissionais. Não foi – ou será – publicado.”

Paulo Francis, 8 de maio de 1986
do livro: Paulo Francis – A Segunda Profissão Mais Antiga do Mundo

Copiar o que a assessoria de imprensa mandou não é jornalismo.
Ecoar o consenso que compensa não é jornalismo.
Se esconder no que pega bem não é jornalismo.
Copy-paste não é jornalismo.
Hoje se omite a voz e visão sobre alguma assunto que foge do ponto de vista do outro. Não há estética de confronto em matérias e artigos de cultura, esporte e política. Aqueles que não se alinham às verdades absolutas e que costumam ser os mais ponderados são, invariavelmente, atacados por ambos os grupos ou ignorados.

Não costuma ter confirmação de fontes, apenas reproduz releases ou matérias gringas, não tenta ir além do óbvio. Se resume a opiniões que valem muito mais que fatos.

Grandes portais caminham nessa estrada, assim como produtores de opinião, que são aqueles que mais devem ter zelo com o que falam, para não incorrerem em erros.
O jornalismo é como arquitetura. Um prédio show de bola a cada 10 quarteirões de merda.

O tal jornalismo isento 100% não existe. Não. Existe. Nunca. Existiu.

Existem dados bons de um bom jornalismo

Bom jornalismo respalda as informações que veicula com fontes especializadas, pesquisas, livros, compromisso com o leitor.

Usa dados namorando com um jornalismo treinado em faro apurado, ouvido atento, curiosidade, jogo de cintura e sorte. Exige ao menos três pontas de uma operação: produzir a mídia em si; suplementar suas informações com fartas opções variáveis — hoje no mundo digital; e eventos que gerem movimento e interesse.

Ler exige ser ativo — você tem que ter concentração, focar e separar um tempo pra arrancar dele o que precisa. Sem ler não se obtém informação, dados, conhecimento. Sem ler não existe o jornalismo.

No final do anos 20, decidido a tornar-se escritor, o jovem Eric Arthur Blair resolveu viver uma experiência pioneira e radical – submeter-se à pobreza extrema – e depois narrá-la. Em 1928, instalou-se em Paris com algumas economias e começou a dar aulas de inglês – mas em pouco tempo perdeu os alunos e foi roubado.

Sem dinheiro, passou fome, penhorou as próprias roupas, trabalhou em restaurantes sórdidos e por fim partiu para a Inglaterra.

Enquanto esperava por um emprego incerto, radicalizou ainda mais sua experiência convivendo intensamente com os mendigos de Londres, perambulando de albergue em albergue, atrás de dormida, comida e tabaco.

É essa vivência miserável que Blair relata com humor e indignação, distanciamento e participação. Recusado por várias editoras inglesas, o livro só foi publicado em 1933, trazendo, pela primeira vez, o pseudônimo que consagraria um dos maiores escritores do século XX: George Orwell.

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“Jornalismo é publicar tudo aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade.” – George Orwell

Capitalismo impede de focar nos projetos que alimentariam o capitalismo

O jornalismo nasceu com Guttemberg no contexto da Revolução Industrial, e com isso o capitalismo ganha a sua musculatura duradoura também.

O capitalismo em 40 anos colonizou praticamente todas as pautas da contracultura dos anos 60/70: os viados e trans das letras do Lou Reed agora discutem maquiagem na GNT, o feminismo do SCUM manifesto é quase um senso comum de meninas abaixo de 25 anos, as pautas raciais dos Panteras Negras estão edulcoradas ao nível seriado engraçadão da Globo e até mesmo a liberdade sexual dos hippies se normalizou com a prática do cuckolding/swing pelos casais classe média coxa.

Palavras são o que temos de mais real, pois sua circulação autoriza ações, violências, afetos e túmulos.

São desesperadores tempos esses nos quais jornalismo é tratado como crime, e crime como utilidade pública. Aí você percebe que até o próprio capitalismo é contra o capitalismo. Mesmo que tudo na vida seja tudo comercial.

Tudo capitalismo. Tudo pra ganhar dinheiro. O que a gente pode fazer é tentar deixar as pessoas felizes enquanto tenta – e enquanto elas também tentam – ganhar dinheiro.

O Rolling Stones estreia seu primeiro show no Marquee Club em 1962. Esta é a imagem de um jornal impresso divulgando o show.

Há movimentos no sentido de manter o jornalismo de alguma maneira. E todos eles tem lastros em grandes corporações. Como as que dominaram o futuro de 2019 de Blade Runner.
Marc Benioff, da Salesforce, comprando a Time.

Jeff Bezos, da Amazon, comprando o Washington Post.

New York Times, com um modelo de assinaturas, conseguiu mais de 260 mil assinantes nos três últimos meses de 2018, e mira 10 milhões em 2025; Jota, portal jurídico do Brasil, que conseguiu um aporte de R$ 6,8 milhões no início de 2019.

Nexo e o Meio: o primeiro recebeu uma doação de US$ 920 mil a Luminate, organização filantrópica fundada por Pierre Omidyar, fundador do Ebay e do Paypal, e também funciona no modelo de assinaturas.

O Canal Meio já conta com uma base de mais de 80 mil usuários na sua versão freemium, também funcionando no modelo recorrente com benefícios extras para os assinantes.

Existem outras maneiras de trabalhar a questão, como diferenciar o método e processos estabelecidos.

A indústria fonográfica oferece alguns exemplos, como a Sony Music Brasil e suas formas de trabalhar músicas, como indicado nesta matéria do blog, com dados do SIM – Semana Internacional de Música 2019.

Ademais, o jornalismo brasileiro teve a grande chance de provar que estava vivo e achar as moças que aparecem no vídeo de suruba do Dória. Um notório capitalista e atual prefeito de uma das maiores metrópoles do mundo, São Paulo.

Uma cidade que tranquilamente é digna de ser cyberpunk como a Los Angeles de 2019 de Blade Runner.

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“A mercadoria mais valiosa que eu conheço é a informação” – Gordon Gekko (Wall Street, de 1987, e Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme, de 2010). Gordon entendia o poder dos dados sobre todos os mercados que existem — incluindo o jornalismo

Quatro quintos do povo americano sobrevivem em conforto consumista. As diferenças de classe, apesar de brutais, permitem, mesmo no primeiro degrau da escada, um nível de vida tolerável. Não se quer bagunçar o coreto. Revolução é ânsia de quem não pode, de quem não tem condições de fazê-la, ou de repartir o bolo. Por que escrever sobre essas coisas? Foi-se o tempo em que eu achava útil o jornalismo, em que pensava que a imprensa esclarece. Hoje, me é possível argumentar que o máximo de liberdade de imprensa resulta num máximo de confusão, porque o público é panglossiano e, em face do chamado ‘mercado de livre ideias’ caótico, prefere mesmo enxergar só até a ponta do próprio nariz.”

Paulo Francis escreveu isso em 27 de novembro de 1975.

Prestes a fazer 45 anos, é mais atual do que nunca.

/// O BLOG. Destrutor é sobre música, sobre cinema, sobre quadrinhos, sobre livros, sobre entretenimento digital. É nunca é demais dizer que tudo está conectado. Isso incluí os dados que comento em todas as matérias do blog, e o modo de jornalismo com que tento costurar assuntos. Com a palavra, alguém bem mais qualificado do que eu para melhor explica:

Vejo conexões entre todas as formas vitais de arte popular. Está tudo no mix. Criar barreiras entre, digamos, quadrinhos e música – ignorar o ruído que vem de qualquer parte do sistema – é contraproducente e simplesmente estúpido. A maioria dos artistas e escritores que eu conheço ouvem música e se inspiram na música enquanto trabalham; a maioria dos músicos que eu conheço leem quadrinhos e são fascinados com as imagens. Há um diálogo intenso conectando todos os cantos da cultura e da mídia, e para ouvi-lo tudo que você precisa fazer é parar de ouvir seletivamente.” – Lou Stathis

/// MAIS SIGNIFICADOS. Jornalismo de dados tem outra conotação atualmente, muito mais rica do que eu me propus a comentar aqui. Ele é uma modalidade de produção digital de notícias que utiliza grandes bases de dados para mostrar ao leitor informações de maneira mais volumosa em questões de números, abrangência, muitas vezes usando recursos gráficos e interativos para tornar mais agradável a experiência de visualização do usuário. Neste link você pode saber mais a respeito.

/// HISTÓRIA EM QQUADRINHOS. Blade Runner é uma história em quadrinhos. Se o próprio Ridley Scott diz isso, quem somos nós pra discutir? A foto abaixo é de um jornal. De papel. Uma entrevista de 17 de dezembro de 2014, por conta do iminente lançamento de Blade Runner 2049. O jornal é a Folha de S Paulo.

jornal Folha de S Paulo
O jornalismo de dados direto da fonte: crédito da foto é de Tom Rocha, o autor desta matéria
O jornal que Deckard lê em Blade Runner

tomrocha
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