CAÇADO | O Rambo de William Friedkin

Caçado (The Hunted), filme de 2003 de William Friedkin, o diretor de cinema responsável por clássicos como O Exorcista, Operação França e O Comboio do Medo (melhor filme dele), é apenas outro dos grandes exemplares da sétima arte produzida pelo cineasta.

O longa-metragem tem a melhor cena de luta com facas da história — você vai querer fazer uma depois de assistir, certeza.

Caçado
(The Hunted, 2003, de William Friedkin)

Caçado William Friedkin
Tommy Lee Jones e Benicio del Toro no ápice de uma luta em Caçado, um longa-metragem muito subestimado do currículo de William Friedkin

Um diretor consegue fazer um filme apenas porque um engravatado de estúdio ou um produtor independente decide que pode ser lucrativo. É praticamente impossível escolher um projeto sem estar de olho no mercado. Ingmar Bergman, Fellini, Godard e Akira Kurosawa tinham de vender ingressos, e então quando seus filmes pararam de render nas bilheterias, eles não puderam mais continuar.”

Trecho do livro The Friedkin Connection: A Memoir, a autobiografia do diretor.

Caçado William Friedkin
O diretor de Caçado, William Friedkin, ganhador do Oscar em 1972, por Operação França, em uma mostra de cinema francês em 2018

O template óbvio do filme é uma mistura de O Fugitivo, thriller competente e memorável dirigido por Andrew Davis em 1993 (em que Tommy Lee Jones também faz um papel parecido de agente da lei) com Rambo – Programado Para Matar (First Blood), o clássico de Sylvester Stallone.

Dá até pra imaginar que veríamos um estudo psicológico de personagem principal em Caçado, o soldado super preparado Aaron, mas Friedkin não perde tempo e já vai para o que lhe interessa, deixando pouco espaço de aprofundamento para isso.

O exercício de cinema de William Friedkin

William Friedkin elabora a narrativa de Caçado em cima de uma premissa simples: um homem caçando o outro. Ao ler um artigo sobre a incrível habilidade de um homem rastreador em matas, o diretor pensou no filme, e assim fez.

A trama é um exercício sem gordura sobre esse jogo de gato e rato, livre de qualquer enrosco. Lutas com peso, com braços e pernas se retesando de esforço, e caindo de cansaço ao final de um embate. Não é por acaso que suor e sangue são usados a favor da luta.

Caçado William Friedkin
Benicio del Toro é Aaron, soldado americano psicopata que precisa ser parado a qualquer custo quando perde os freios

O cenário é um dos personagens principais do filme. As florestas são verdejantes, úmidas, cheias de musgo e árvores, madeira em abundância, natureza em seu primor.

As cidades são cinzas e nubladas, chuvosas e geométricas, com construções agressivas e abandonadas. Tudo amparado por uma fotografia que dá qualidade desde um lobo andando na neve a uma barragem de tijolo e aço detonada pelo tempo.

Caçado William Friedkin
Tommy Lee Jones faz Bonham, o antigo treinador de Aaron, figura involuntária paterna, na clássica representação americana de mentoria violenta e sábia ao mesmo tempo — nem mesmo um diretor como Friedkin conseguiria fugir de representações dessa natureza

Matar ou morrer

Benicio del Toro interpreta Aaron Hallam em Caçado, um ex-agente secreto americano pirado que sai matando geral, após um surto que teve em uma missão secreta na Guerra da Bósnia, que William Friedkin também escolhe mostrar.

Seja com faca ou com armas de fogo, ele entra em qualquer lugar sem ninguém ver, mata sem deixar pistas, e desaparece. Tommy Lee Jones faz Bonham, um antigo profissional contratado pelo exército e atualmente aposentado.

Ele treinou del Toro e centenas de outros, e cai sob sua cabeça o fardo de impedir a matança que Aaron promove das Florestas do Oregon até a cidade grande.

É um vigoroso jogo de caça e presa entre dois homens preparados para matar, com vários cadáveres ficando pelo caminho. Aaron não tem piedade de ninguém que fica em seu caminho. Bonham não tem piedade de Aaron, e não dá bola para a figura paterna que o agente perturbado criou em sua mente, e que projeta nele.

O velho é treinado nas artes da guerra, sabe como matar com eficiência e rapidez, e ensinou tudo para a nata dos melhores soldados que o governo se encarregou de tornar assassinos em missões secretas black ops.

O canhão descontrolado não é sua culpa, ele apenas criou. Ou é assim que ele pensa. Bonham treina seus homens para buscar, rastrear, caça e matar.

Eles fazem suas próprias armas, seja com rochas e pedras, ou preparando facas com qualquer metal que tenha em volta. A vida de instrutor militar o levou a pesar suas ações e agora vive na tranqüilidade do Alaska.

Talhado meticulosamente para fazer o que deve ser feito, nem mesmo a polícia federal interna americana, o FBI, pode com Aaron, um matador com carta branca para alterar o destino até de outros países

A piração de Aaron mancha a brancura da neve onde está isolado, física e mentalmente. O filme mostra essas nuances a todo momento, e oferece boas reflexões a respeito.

Há uma clareza minimalista, em mostrar o rastreamento em busca do assassino, um passo a passo de como se fazer uma faca, em focar nas partes atingidas na luta. Assim como há clareza em mostrar o semblante atormentado de Aaron.

Sayoc kali, Conan e rock nas filmagens

Na parte de ação, todas os combates em Caçado usou como base uma arte marcial filipina chamada sayoc kali, uma espécie de variação da esgrima.

Se trata de uma luta corpo a corpo que preza a proximidade corporal, com o auxílio de facas. Rafael Kayanan, um mestre especializado nesta arte, foi trazido para as filmagens e ensinar algumas das técnicas para del Toro.

Rafael também é um artista de quadrinhos, e ilustrou uma série famosa do Conan para a Marvel Comics, chamada Conan, O Aventureiro, onde emulava a arte de Barry Windsor-Smith em começo de carreira.

A atuação de del Toro ganha contornos mais dramáticos do que sua mãe cinematográfica de origem, o clássico Rambo – Programado Para Matar, cujo título é invenção brasileira — o nome original do longa é First Blood, algo como “primeiro sangue”. Programado para matar cabe muito mais ao filme de William Friedkin

Aaron Hallam é um “super-soldado” das Forças Especiais do exército americano, treinado por Bonham. Seu nome de origem bíblica não é coincidência. Sacrificado em vida e em morte, sua neurose é irreversível, e quem tem que matá-lo não é outro senão seu “pai”.

Como modo de antagonizar ainda mais, seu nome no filme é Bonham, igual ao baterista antigo do Led Zeppelin, John Bonham.

É o rock do diabo contra ele mesmo. Outros nomes de personagens secundários de Caçado, nas mãos de William Friedkin, também ganham nomes e alusões a isso: Kravitz (Lenny Kravitz), Van Zandt (Steven Van Zandt), Zander (Robin Zander, do Cheap Trick), Powell (Cozy Powell) and Richards (Keith Richards, guitarrista do Rolling Stones).

William Friedkin, o diretor maldito

William Friedkin é um dos grandes nomes da Nova Hollywood, uma geração de cineastas que mudaria a indústria do cinema nos anos 70.

Ele logo mostrou a que veio com seu Operação França, ganhador de vários prêmios do Oscar, dividindo as estatuetas com o não menos monumental O Poderoso Chefão.

Friedkin era um sujeito espontâneo e de pavio curto. Torturava seus atores para extrair deles suas melhores performances.

Começou de baixo, como mensageiro na WGN de Chicago. Filho de um marinheiro mercante, William, aos 22 anos, já tinha dirigido seu primeiro programa de TV, um dos último episódios de Alfred Hitchcock Apresenta. Estreou no cinema com um filme com Cher e Sonny.

Seu Operação França, de 1971, lhe deu o Oscar de Melhor Diretor, e arrematou outros quatro — Melhor Filme, Melhor Ator para Gene Hackman, Melhor Roteiro e Melhor Montagem. O combo é raro na indústria do cinema, e lhe deu outro combo  desejado por qualquer um: fama, riqueza e status.

Em 1973, seu O Exorcista não lhe deu o reconhecimento do talento como melhor diretor, mas ganhou outros das 10 indicações — levou os Oscars de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Som.

Ficaram faltando o de melhor filme, melhor diretor, melhor atriz (Ellen Burstyn), melhor ator coadjuvante (Jason Miller), melhor atriz coadjuvante (Linda Blair), melhor edição, melhor fotografia e melhor direção de arte.

O Exorcista perdeu para Um Golpe de Mestre, filme americano de assalto com comédia, dirigido por George Roy Hill, que também levou a estatueta de melhor diretor.

Legado cinematográfico colossal

Profissional marginal talentoso, azarado e detalhista na poderosa máquina de Hollywood, Friedkin tem em seu melhor filme, Sorcerer, filmado em 1977, a síntese de seu trabalho: foi extremamente duro, perigoso, desgastante de filmar, um fracasso de público e crítica na hora, jogando pelo ralo todo seu prestígio adquirido por O Exorcista.

Mesmo assim, é o filme preferido de William Friedkin. No Brasil, ele foi batizado de O Comboio do Medo. Curioso pensar que Francis Ford Copolla, que fez O Poderoso Chefão, também fez Apocalypse Now, um filme igualmente difícil e problemático, mas que se saiu melhor nesse truco da vida.

Há ecos desses espelhos em Caçado, já que nos primeiros minutos do longa, vemos Aaron em cenários com uma fotografia muito similar a do personagem de Martin Sheen em Apocalipse Now.

Ecos do apocalipse profissional de Friedkin

O cineasta abriu espaço para que outros profissionais fossem livres, intensos e violentos, o que ditou a Nova Hollywood dos anos 1970.

Em meio a outros filmes menores, como O Comboio do Medo e Um Golpe Muito Louco, ele filmou em 1980 o longa-metragem Parceiros da Noite, novamente chutando canelas ao mostrar o universo gay com serial killers e um Al Pacino no meio.

Viver e Morrer em Los Angeles, Possuídos e Jade são outros que merecem uma olhada.

Por falar em Oscar, isso é uma coisa de que o filme Caçado de William Friedkin está cheio. O diretor oscarizado dirigiu uma dupla principal de atores que também possuem o prêmio na estante de suas casas.

Tommy Lee Jones Tommy ganhou a estatueta de Melhor Ator Coadjuvante pela sua atuação em O Fugitivo (1993), e concorreu com JFK: A Pergunta que Não Quer Calar (1991), No Vale das Sombras (2007) e Lincoln (2012). Benicio del Toro ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por Traffic (2000), e concorreu novamente por 21 Gramas (2003)

Um dos posteres de Caçado, em uma composição visual marcante, com destaque ao detalhe cortante de um dos coadjuvantes do longa de William Friedkin: a faca

William Friedkin
Caçado
The Hunted
EUA
2003

/// SORCERER. O Comboio do Medo é a refilmagem do clássico suspense Le Salaire de la Peur (1953), conhecido no Brasil como Salário do Medo. Foi dirigido por Henri-Georges Clouzot.

Ambos são baseados no romance Le Salaire de la Peur (1950), do autor francês Georges Arnaud. O recorte de entrevista abaixo com o Friedkin foi concedido ao site Cinephilia & Beyond alguns anos atrás, e reproduzo aqui:

Os personagens de Sorcerer (O Comboio do Medo, 1977) são forçados a trabalharem em equipe para se salvarem, mas sem confiar totalmente uns nos outros. Eles são jogados juntos em uma tremenda série de problemas e para sair são necessárias confiança, fé e colaboração. Você estava traçando um paralelo com o mundo atual? Especialmente nos últimos dois anos?

Sim, e é ainda mais relevante hoje. Mas no momento em que fiz o filme, em 1977, eu senti isso, dessa forma que você descreveu. Que o mundo tinha chegado a uma encruzilhada, onde as maiores potências explodiriam tudo se não conseguissem estar juntas. E eu achei que Sorcerer seria uma metáfora para essa idéia. Eu acho que é muito, muito mais perigoso hoje. Eu penso que o mundo está em um precipício atualmente. Eu não vejo nenhuma liderança forte para neutralizar o terrorismo que existe no mundo, assim como vários outros problemas. Eu acho que se o mundo não se unir, ele vai explodir. E isso tem afetado pessoas inocentes que se sentam em um café ao ar livre, que não se metem com política, sabe, não possuem nenhuma filosofia particular que seja perturbadora para alguém. Há apenas o mal no mundo, e é isso que Sorcerer mostra para O Exorcista. Existe uma força do mal no mundo que causa todos esses problemas. A vida é realmente um belo presente, mas as pessoas não a consideram como algo vulnerável e sim como algo que lhes foi dado. As maiores potências do mundo se mantêm ameaçando umas as outras, atacando umas as outras, e vai chegar a um ponto onde haverá armamento nuclear o bastante para destruir o mundo. Então sim, existe uma metáfora por trás de O Comboio do Medo.

/// 2003. Os filmes que passavam nos cinemas eram 007 – Um Novo Dia Para Morrer, Deus É Brasileiro, O Chamado, Gangues de Nova York, Adaptação, Prenda-me Se For Capaz, As Horas, Chicago, Demolidor – O Homem Sem Medo, 8 Mile – Rua das Ilusões, As Confissões de Schmidt, Durval Discos, A Casa dos 1000 Corpos, Carandiru, X-Men 2, Tiros em Columbine, Matrix Reloaded, +Velozes +Furiosos, Procurando Nemo, O Exterminador do Futuro 3 – A Rebelião das Máquinas, Lara Croft: Tomb Raider – A Origem da Vida, Extermínio, Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra, Donnie Darko, Uma Saída de Mestre, Era Uma Vez no México, Matrix Revolutions, Oldboy, Sobre Meninos e Lobos, Meninos Não Choram, Adeus, Lenin!, Entre o Céu e a Terra, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, entre outros.

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