SNATCHER | O Blade Runner da Konami para caçar Exterminadores

Qualquer um que bote os olhos no jogo de videogame Snatcher, da Konami, sente de imediato as incríveis e notáveis semelhanças do adventure game com dois filmes clássicos da ficção científica: Blade Runner e Exterminador do Futuro.

Os dois longa-metragens são grandes obras do cyberpunk na arquitetura da cultura pop do entretenimento do século XX, e o idealizador do game Snatcher, Hideo Kojima, bebeu diretamente delas para produzir o jogo em 1988.

Era uma época em que a tecnologia ainda fascinava, e engatinhava para se tornar um futuro que, pelo menos até hoje, ainda não se realizou — seja em aspectos positivos, ou alarmantes, como o game sugere.

Snatcher Konami
A capa do jogo Snatcher, da Konami, para PC-Engine, uma das melhores versões do game

Em Snatcher, controlamos o detetive Gillian Seed — que aparentemente furtou o guarda-roupa de Deckard de Blade Runner — e devemos descobrir e derrotar uma conspiração que envolve: uma doença pior que a Aids, protetor solar, a Rússia, um cover do Sting fugido diretamente de Duna (outro colosso da literatura sci-fi em que Snatcher se baseia), pessoas disfarçadas de robôs que parecem o Exterminador do Futuro, ruas sujas e imundas de criminosos e marginais, e toda sorte e azar de inimigos e enigmas.

Todos esses elementos são traduzidos em uma novela visual feita de sprites (figuras desenhadas por pixel), que conta uma história interessante que reflete diretamente os anos 1980, e o que se pensava do futuro sujo que nos esperava.

É um verdadeiro clássico cult dos videogames.

Snatcher é da softhouse Konami, dona de monumentos da indústria de videogames, como Castlevania, Metal Gear e Silent Hill.

Snatcher Konami
Um dos cenários de Snatcher

O conceito de cyberpunk é fascinante por si só.

Sua principal característica é o uso pesado e baixo de tecnologia, tudo ao mesmo tempo, em um mundo dominado por privilégios, em que a maioria das pessoas não consegue aproveitar.

 

Existem avanços tecnológicos que mudam a ordem social que vivemos, mas que ajudam apenas a elite. O hi-tech marginal feat. corporações malignas pega pela nossa mão para nos levar ao mundo de Snatcher.

O jogo é de 1988, ainda existia Guerra Fria, com a União Soviética ainda em pé. Então, lógico, o jogo é sobre a desconfiança das pessoas.

O game é como se o filme Blade Runner fosse jogável, um longa-metragem de 1982, dirigido por Ridley Scott. Por sua vez, ele é que a adaptação de um livro de 1968, intitulado Do Androids Dream of Electric Sheep?, do escritor americano Philip K. Dick, considerado por especialistas e entusiastas o pai do cyberpunk.

Deckard (Harrison Ford)
Priss (Daryk Hannah)

As obras têm 20 anos de espaço criativo entre elas, e mesmo assim, o impacto que Dick provocou foi forte o suficiente para que uma produtora japonesa de games o referencie até o último parafuso de robô em Snatcher.

Gillian ou Deckard?
Snatcher Konami
Referências de referências em Snatcher: o nome da banda Joy Division também é uma referência, Você sabe qual é?

Um futuro sombrio da Konami em Snatcher

O enredo que se desenrola é instigante. Tudo começa em 6 de junho de 1991. Uma explosão no Centro de Pesquisas de Chernoton, próximo a Moscou, liberou no ar uma arma biológica de nome Lucifer-Alpha, que estava sendo desenvolvida secretamente no local.

Ela se espalhou rapidamente pela Eurásia, matando 80% de sua população. O mundo sofre com essa peste.

E, 50 anos depois, os padrões convencionais da sociedade são minimamente restauradas, já que a catástrofe causou mutações nas pessoas, surgimento de doenças e novas ameaças de países e corporações, que se formaram depois dos eventos.

Snatcher Konami
A Konami se esmerou em detalhes para tornar Snatcher o mais crível possível

Uma misteriosa forma de vida artificial, que é chamada de bio-roids, é descoberta após ser encontrada entre as vítimas de um acidente aéreo.

Parte orgânico, parte máquina, eles podem suar e até sangrar (exatamente como os Exterminadores do Futuro, dos filmes de James Cameron).

São esses seres que são os snatchers, que dá título ao game. A trama se passa em um futuro distante, em 2047, na cosmopolita cidade japonesa Neo Kobe, que, como toda boa metrópole, sofre com superpopulação, altos índices de criminalidade e corrupção.

O protagonista Gillian nos é apresentado sem memórias de sua vida. Foi achado em uma capsula criogênica na Sibéria, junto de sua ex-esposa Jamie Seed, que também não se lembra de nada.

Sem nada que os conectem, vivem separados. Por conta de Gillian não lembrar de nada sobre seu passado, o jogador fica no mesmo nível de conhecimento que o próprio personagem.

Assim, preferindo ficar casado com o mistério, Gillian se torna uma espécie de policial, e trabalha para a organização J.U.N.K.E.R. (Judgement Uninfected Naked Kind & Execute Ranger, na versão japonesa, ou Japanese Undercover Neuro Kinetic Elimination Ranger, na versão em inglês do jogo).

A maior parte do plot se dá quando Seed se vê as voltas em uma trama que envolvem os snatchers. Os robôs matam suas vitimas e tomam seu lugar na sociedade.

Não se sabe para que fazem isso. É tarefa sua descobrir, em um game que podemos clicar, conversar, investigar, brigar, atirar, tudo em uma perspectiva em primeira pessoa.

Mais detalhes de todo esse mundo pode ser acessado nos arquivos do computador JORDAN que Seed carrega.

E o equipamento de comunicação é um robozinho chamado Metal Gear.

Como Hideo Kojima construiu Snatcher com referências

O game em si é um adventure, com a tela mostrando o cenário, e com janelas de opções de ação. Apesar disso, tem um tom cinematográfico, algo que acompanha o estilo de Kojima até hoje.

Parte do apelo visual de Snatcher vem de sua herança óbvia japonesa de se parecer com um anime (desenho animado japonês), ainda que meio parado.

 

Os sprites funcionam mesmo assim, e a experiência de se andar por Neo Kobe e explorar seus cantos de neon, becos sujos de bandidos hi-tech e centros comerciais lotados, funciona a contento.

Falas adultas, diálogos picantes e bate-papo inteligente em buscas de pistas para sabem quem é humano e quem é snatcher são parte essencial do game.

Blade Runner x Snatcher

Uma artwork competente e uma não-linearidade de eventos a seguir tornam o jogo incrivelmente atuais — ainda que ele pareça tanto um produto de seu tempo que chega a doer — fora que se pretende mais maduro que o restante dos jogos da época.

Por isso, caso trombe ele por aí, espere violência um pouco mais desmedida que o convencional, nudes, e umas cenas picantes soft por vir.

O jeitão de adventure point and click estava em alta, muito popularizado no fim dos anos 80 e começo dos 90 pelos jogos da Lucasarts, e Kojima segue essa linha.

O fato dos snatchers roubarem a identidade dos seres humanos é reflexo direto de outra grande influência do game: o filme Vampiros de Almas, longa-metragem americano de horror e ficção científica, dirigido por Don Siegel, em 1956.

O título original é Invasion of The Body Snatchers. Trata-se de uma novela de Jack Finney, publicado na revista de contos pulp Colliers Magazine, em 1954. O longa teve um remake famoso nos anos 1970, dessa vez se chamando Invasores de Corpos, o que torna o nome do game Snatcher auto-explicativo.

Kojima, nesse contexto, ainda encaixou o conceito do Exterminador do Futuro, já que seus snatchers também tem um endosqueleto metálico, como os T-800, no longa de James Cameron.

Os snatchers, ao contrário dos replicantes de Blade Runner, se parecem com os T-800 de Exterminador do Futuro

Siegel é um dos grandes diretores de cinema dos anos 70 nos EUA. O cineasta dirigiu filmes como O Inferno É Para os Heróis, Os Assassinos, Meu Nome É Coogan, Perseguidor Implacável, Os Abutres Têm Fome, Alcatraz – Fuga Impossível.

Siegel dirigiu também o último filme de John Wayne, o western clássico O Último Pistoleiro. Kojima é um grande fã do diretor.

Snatcher Konami

Snatcher Konami
Material promocional da Konami para Snatcher

Hideo Kojima é a figura do mundo dos games que sempre esteve ligado a série Metal Gear, sucesso de vendas e criticas em todo o mundo, enquanto ainda era funcionário da Konami.

Metal Gear é sua grande obra seminal, e provavelmente a melhor coisa que a indústria de videogames têm para mostrar para querer ascender a arte nobre.

Escrito e dirigido por Kojima, que sempre foi um grande geek e cinéfilo, se você prestar atenção direito em Snatcher, encontrará referências e acenos a Akira, mangá e longa-metragem animado de Katsuhiro Otomo, Alien, também do Ridley Scott, e ao próprio Metal Gear, entre vários outras obras de sci-fi.

Kojima pediu especificamente que o character designer Tomiharu Kinoshita desenhasse os personagens no estilo de Katsuhiro Otomo, de Akira.

 

A produção então seguiu como se estivessem fazendo um anime ou filme, mas não estavam mirando de propósito em uma atmosfera madura, a direção final se deu de maneira natural.

A produção durou 1 ano e meio, e teve que ser encerrada a contragosto de Kojima. Ele tinha planejado seis capítulos para contar a história de Snatcher, mas acabou que saiu apenas dois. O terceiro saiu apenas na versão de PC Engine e seguintes.

Hideo Kojima nas artes promocionais do game

Snatcher foi originalmente lançado em 1988 exclusivamente no Japão, somente para os computadores NEC PC-8801 e MSX2.

Anos depois, com o sucesso crescente, foi relançado em diversas plataformas, como PC-Engine, em 1992 (com trilha sonora remasterizada, a adição de dublagem e o ato final da história, que estava ausente na versão anterior por limitações técnicas); e versões cortadas e refeitas para Playstation e Sega Saturn, em 1996. Todas saíram apenas no Japão.

Há somente uma versão americana, a do Sega CD, publicado em 1994, e geralmente a mais conhecida. Por ser uma obra voltada a um público mais adulto, o conteúdo original de Snatcher sofreu diversas modificações entre essas várias versões, com cortes e acréscimos.

A abertura do Snatcher do Sega CD, única versão oficial em inglês do game

Snatcher possui uma narrativa à frente do seu tempo, que seria novamente apresentada em outro jogo com a mesma pegada, Policenauts.

A tecnologia crescente, tal qual como esses jogos futuristas, permitiram uma revolução no mundo dos games, que desembocaria em Metal Gear Solid.

O nome responsável pelos três? Sempre ele.

Hideo Kojima.

 

O game Snatcher tem uma versão em RPG, e se chama SD Snatcher. O jogo foi lançado para MSX2 em 1990, e o envolvimento de Kojima foi só no roteiro, em conjunto com Yoshihiro Ota.

Ele apresenta a mesma trama do Snatcher original, com a adição do ato 3, que foi cortado do jogo em 1988 por falta de tempo e verba.

No entanto, esse ato 3 difere um pouco da versão de PC-Engine. O SD do título vem de Super Deformado, o estilo cartoon do desenho japonês de mangá.

O material mais recente relacionado a Snatcher no mundo dos videogames tem 10 anos.

Se trata de Sdatcher, uma rádio novela que narra as aventuras de Jean-Jack Gibson, outro cara da J.U.N.K.E.R. Pois é.

Foi transmitida pelo podcast Hideradio, e tem nomes na produção como Shuyo Murata, roteirista de Zone of the Enders e co-roteirista de Metal Gear Solid 4; Goichi Suda, ou Suda51, nome mais conhecido do produtor dos games No More Heroes, Killer 7, Lolipop Chainsaw e Fatal Frame IV; e Akira Yamaoka como compositor da trilha sonora, um dos grandes profissionais de trilhas do mercado, e que inclusive trabalhou na versão de 1994 de Snatcher.

Em 2014, o estúdio indie CollectorVision Games anunciou que estava fazendo uma versão para o Sega Dreamcast, mas desde então não se teve mais notícias a respeito disso.

A Konami produziu um spin-off de Snatcher, e o formato não poderia ser mais bizarro

Konami, Kojima e Metal Gear

A softhouse Konami criou alguns dos maiores colossos do mundo dos games.

Na série Metal Gear temos um jogo de ação tática de espionagem, onde controlamos um soldado fortemente armado que deve ser o mais silencioso e mortal possível, em uma enxurrada de games em que tema de identidade — por meio de ciência, controle psicológico, política e memória-afetiva — e o mundo bélico nadam e se afogam juntas.

Todos os jogos da série são sensacionais — aqueles que levam a assinatura do produtor e diretor Hideo Kojima.

O jogo anterior a Snatcher de Kojima foi exatamente o primeiro Metal Gear.

Lançado em 1987, foi um sucesso de crítica, não sendo um estouro mundial apenas pelo fato dos computadores MSX não ter obtido espaço comercial suficiente na América, que era dominado pelo NES da Nintendo, o popular Nintendinho (Nintendo Entertainment System – NES).

Era o começo de uma maiores franquias do videogame. O soldado Solid Snake é mandado para a fortaleza de Outer Heaven para deter um tanque nuclear que anda sobre duas patas. Seu nome? Metal Gear. O jogo inaugurou o gênero stealth.

Sem surpresa nenhuma, o jogo foi convertido tempos depois para o Nintendinho, com vários cortes e sem a participação de Kojima. Fez tanto sucesso que gerou uma continuação tosca, sem envolvimento criativo nenhum de Kojima, chamada de Snake´s Revenge.

E o jogo seguinte de Hideo Kojima, foi nada mais, nada menos, que Metal Gear 2: Solid Snake, somente para os computadores MSX no Japão, em 1990.

Ajudou a sedimentar os fundamentos da mecânica de stealth, e amadureceu os temas e histórias de diversos personagens.

Sem esse jogo, não existiria Metal Gear Solid, a grandiosa sequencia que foi publicada oito anos depois. Uma versão americana só saiu em 2006, como bônus de Metal Gear Solid 3: Subsistance, que também tinha o Metal Gear 1.

 

/// JUNKER. Snatcher seria Junker (lixeiro). Mas o nome, em japonês, era similar demais com o jogo de dominó japonês chamado mahjong. Outro nome poderia ser New Order (Nova Ordem), mas era parecido demais com o nome de um inimigo em Metal Gear.

/// 1988. No ano de lançamento de Snatcher, a Konami, produtora do jogo, também lançava diversos outros clássicos dos games, como Contra, Super Contra, Gradius, Castlevania II: Simon’s Quest. Entre os games do ano seguinte, 1989, um título consagrado: o primeiro das Tartaturgas Ninja, o Teenage Mutant Ninja Turtles.

/// REFERÊNCIAS. Snatcher recebeu muitas referências na franquia Metal Gear. Em Metal Gear 2, durante a batalha com Big Boss, se você ligar para Kasler, ele irá contar um rumor que envolve o Projeto Snatcher: o cadáver de Big Boss nos destroços de Outer Heaven e Madnar teria sido recuperado, e reconstruído como um ciborgue.

Já em Metal Gear Solid 4, Old Snake usa um sobretudo marrom igual ao de Gillian Seed em determinada passagem do game. Dá até pra encontrar músicas do game para o seu iPod na hora.

O jogo ainda apresenta o Metal Gear Mk.II, criado pelo Otacon. Em Metal Gear Solid V: Ground Zeroes, o Raiden ciborgue que veio do futuro tem como missão matar os snatchers que estão disfarçados como soldados na base cubana, no DLC chamado Jamais Vu.

Snatcher, de Hideo Kojima, merece estar na mira de qualquer entusiasta de videogames

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