Desde o nascimento da internet e popularização de tecnologias de vigilância e espionagem, a figura do hacker — especialista em invasão de computadores e dados pessoais — tomou um lugar no senso comum, e o novo século vê uma onda de protestos que exige o signo das máscaras. Esses dois assuntos estão mais interligados do que se imagina.
O imaginário popular pede que hackers se pareçam pessoas misteriosas, para manter o sigilo e oferecer uma aura perigosa.
Na verdade, muitos deles passam longe de ser um criminoso virtual. Qualquer pessoa que se dedique intensamente em alguma área específica da computação, e descobre utilidades além das previstas, e falhas nas construções das especificações originais, pode ser considerado um hacker.
Eventualmente, para hackers invasores, máscaras são necessárias. Uma muito usada, tornada famosa pelo grupo Anonymous, que pode pegar para si a fama de tornar a palavra hacker mais popular, e que faz invasões de sistemas alheios em contextos políticos importantes, é a máscara de Guy Fawkes.
Roma no trono da Inglaterra
No início do Século XVII, a Inglaterra passava por grandes tensões sociais, causadas por disputas de poder entre católicos e os protestantes.
Ela literalmente quase explodiu em 1605, quando Robert Catesby conspirou para assassinar o Rei James I e toda a Câmara dos Lordes, ao tentar explodir o Parlamento em 5 de Novembro.
O atentado ficou conhecido como a Conspiração da Pólvora, e foi evitado quando Guy Fawkes (o responsável por acender 36 barris de pólvora sob o parlamento) foi capturado.
O primeiro conspirador a ser preso se tornou um símbolo eterno de traição – o boneco a ser queimado, destruído, exatamente como nosso Judas.
O evento é um marco da história britânica — com efeito, o 5 de Novembro é um feriado não-oficial nacional por lá e até outros países que fizeram parte do Império Britânico, como Austrália, Nova Zelândia.
Até hoje, crianças inglesas aprendem uma macabra rima relacionada ao golpe de Fawkes:
Remember, remember the Fifth of November,
The Gunpowder Treason and Plot,
I know of no reason
Why the Gunpowder Treason
Should ever be forgot
(Em tradução livre: “Lembrem, lembrem, o 5 de novembro, / A Traição e Complô da Pólvora, / Não conheço nenhuma razão / Para que a Traição da Pólvora / Um dia seja esquecida.”)
“Lembrai, lembrai do 5 de novembro,
A conspiração da pólvora e o plano.
Eu não conheço nenhum motivo
Para que a conspiração da pólvora
Seja esquecida.”
Guy Fawkes tinha 16 anos quando decidiu trair seu país e matar seu rei protestante, que tratava puritanos e católicos como escória.
Ele tomou a atitude mais rebelde — se converteu ao catolicismo e se tornou soldado nessa guerra, lutou na Espanha e se especializou em explosivos, até encontrar seu fatídico destino 20 anos depois.
Foi trucidado a lá William Wallace em Coração Valente: enforcado, esfaqueado, mutilado, amputado, castrado.
Um governo que faz isso com seus inimigos merece ser explodido, e é por isso que para algumas pessoas, Guy Fawkes se tornou um símbolo de rebelião contra um estado opressor. Mais de 300 anos depois, anarquistas ingleses reabilitaram sua figura, nos nos 70 e 80.
A máscara na cultura pop
Nas ruas londrinas dos anos 70, era comum encontrar um pôster que dizia “Guy Fawkes – o último homem honesto a entrar no Parlamento”.
Nos anos 1980, o escritor de histórias em quadrinhos Alan Moore jogou luz sobre Guy Fawkes, ao criar V for Vendetta (V de Vingança, como é conhecido no Brasil), junto com o desenhista David Lloyd.
Os dois criaram uma narrativa distópica sob as sombras do regime de ultra-direita da primeira-ministra Margareth Thatcher.
Em um futuro sem esperanças como o de 1984, de George Orwell, um anarquista surge das sombras para derrubar o governo tirano.
Ele veste uma máscara com as feições estilizadas de Guy Fawkes, e começa a matar membros importantes desse governo fascista.
V de Vingança é uma das HQs mais importante de todos os tempos.
Lançada em 1988 pela editora de revistas em quadrinhos de super-heróis DC Comics, após a publicação dos primeiros episódios na revista em quadrinhos inglesa Warrior, entre 1982 e 1985, V de Vingança ataca o fascismo e questiona o anarquismo, e permite ao leitor discutir se os métodos violentos do protagonista V são válidos quando o alvo é o totalitarismo.
Muito apreciada por público e crítica, obviamente a obra se restringia a apreciação dos nichos de fãs de HQs.
Mas V de Vingança teve uma adaptação em filme, uma produção cinematográfica homônima de 2006, dirigida por Andy e Larry Wachowski (nenhum deles ainda tinha feito a transição). Ironicamente, eles descartaram criativamente o contexto político anarquista de V, tornando-o vazio de discurso e significado, óbvio, para caber dentro das dinâmicas comerciais que um império capitalista como Hollywood exige.
Alan Moore renega o filme, mas a cultura pop o abraçou, resultado direto da exposição na maior vitrine da indústria cultural: o cinema. E é por meio do cinema que máscaras se tornam populares em protestos.
A máscara na política
Um público mais amplo em contato com o filme de V de Vingança, inadvertidamente, assumiu um novo papel, ao se apropriar e gerar a venda de milhares de máscaras de Fawkes.
Em 2008, inspirados pela cena final do filme dos Watchowski, centenas de membros do grupo hacker Anonymous, se colocaram diante da Igreja da Cientologia em Londres usando máscaras de Fawkes para realizarem protestos.
Foi o catalizador para que cada vídeo do grupo de hackers e identidade visual fosse associada à mascara de V.
Em 2011, o movimento Occupy Wall Street fez seu manifesto contra a influência corporativa sobre a democracia e a falta de punição para os responsáveis pela crise econômica de 2008, em protestos em vários prédios de finanças, e havia manifestantes com máscaras de V.
Em 2013, aconteceram as famigeradas “Jornadas de Junho” no Brasil, com vários protestos em todas as capitais e principais cidades do país em pautas difusas e desconexas, antecipando a timeline do Facebook onde todos berram e ninguém ouve nada — um evento político tão grande que ainda está para ser analisado a priori pelos brasileiros.
Em 2014, aconteceram outras marchas políticas ao redor do globo, que se estenderam por locais como Alemanha, Austrália, China, Estados Unidos e Suécia. Sempre tinha mascarados no meio. E muitos manifestantes usavam máscaras de V/Guy Fawkes nos protestos.
O rosto de Che Guevara, famoso quando fotografado por Alberto Korda, foi substituído por Guy Fawkes como ícone revolucionário.
E a bem da verdade, a apropriação cultural dessa foto data de muito antes, com direito do guerrilheiro ter seu próprio videogame de tiro feito por uma empresa japonesa, onde pode-se matar com fogo marxista os soldados do ditador Fulgêncio Batista. Nada escapa da máquina cultural.
GUEVARA / GUERRILLA WAR | O game de Che e Fidel feito pela SNK
A máscara na ironia
Mas dito isso tudo, é preciso saborear com requinte esse delicioso prato de ironia. A máscara de V de Vingança é uma propriedade intelectual ligada à HQ, e sua dona é a DC Comics, a editora casa do Superman, Batman e milhares de outros super-heróis de cueca.
E a DC pertence ao conglomerado de mídia americano Warner Bros, que lucra até hoje com a venda da HQ. Alan Moore, genial criador de quadrinhos, é genioso e arredio.
A DC sempre o tratou mal e com trapaças nos negócios, e eles tem relações rompidas há muito. Quando o filme aconteceu, ele recusou que deixassem seu nome ser veiculado, e com efeito, recusou até sua parte em dinheiro em todo o processo.
Ele dá poucas entrevistas, mas quando diz alguma coisa, diz muito.
Na ocasião do Occupy Wall Street, de acordo com uma entrevista dada ao jornal inglês The Guardian, reproduzida aqui via Omelete, ele aponta o que pensa sobre o uso de máscaras.
Ela transforma os protestos em performances. A máscara é dramática; cria uma sensação de aventura. Manifestações, marchas, são coisas que podem ser bem cansativas, exaustivas. Desanimadoras, até. Precisam acontecer, mas isso não quer dizer que são divertidas – e deveriam ser. (…) [Com as máscaras,] parece que esse pessoal está se divertindo. E a mensagem que passam com isso é muito forte.”
“É meio vergonhoso para uma corporação tirar lucro de protestos anti-corporativos. Não é uma coisa à qual eles gostariam de ser associados. Mas eles não são do tipo que negam dinheiro – vai contra o instinto deles. Vejo mais graça do que aborrecimento nisso.”
A máscara no Brasil
Surpreendentemente, o site UOL conseguiu algumas palavras de Alan Moore por conta dos protestos de 2013 e o uso de máscara de V por manifestantes.
“Desejo o melhor para os protestos no Brasil. Acho que o que estão fazendo é maravilhoso e espero que isso progrida para uma vitória. Mas a HQ não é a forma que eu me conecto com esses protestos”, explicou ele à reporter Estefani Medeiros, na época.
Acho que não tenho muito a dizer a respeito [da máscara em relação ao protesto], porque eu sou apenas o criador da história ‘V for Vendetta’. E eu não tenho uma cópia de ‘V’ em casa, isso foi tirado de mim por grandes corporações. Não tenho nenhuma associação a esse trabalho há alguns anos e podem existir consequências em falar sobre ele”.
O ilustrador de V de Vingança, e criador visual da máscara, David Lloyd, esteve no Brasil em dezembro de 2019, para participar de um evento de tecnologia, e foi entrevistado pela repórter Carol Ito, para a Trip, e ele revelou mais detalhes sobre a máscara de V.
Alan escreveu o esboço com uma ideia muito simples: contar a história de um personagem que quer se vingar do governo e das pessoas que o colocaram em um campo de concentração. A gente não sabia muito bem como seria a aparência, quando tive a ideia louca de resgatar o Guy Fawkes, um personagem revolucionário da história que queria mudar o governo e a sociedade. Achamos que seria um boa ideia e passamos a discutir os capítulos. Gosto mais do início da série, quando tínhamos mais tempo para debater. Depois que vendemos para a DC Comics (em 1988, o que permitiu que a série fosse finalizada), tínhamos que fazer tudo muito rápido.”
A máscara na veia
Como idealizador conceitual de V de Vingança, a despeito da apropriação cultural nos protestos, é Alan Moore quem tem a última palavra sobre seus significados. Uma entrevista recente dele para a BBC, em janeiro de 2020, esclarece por completo.
“Estou cansado da indústria dos quadrinhos. Já tomaram muito do meu tempo. Repudiei 80% de meu trabalho nos quadrinhos, já que não me permitem ser seu dono. Alienaram-me completamente. Não guardo cópias em casa e não voltarei a ler essas obras”, esclarece o autor.
Anarquista, ocultista e melindrado com o mainstream, Alan Moore se reveste de uma aura que muitos podem considerar de arrogância, mas ele defende seus pontos de vista. Ele recusou dinheiro de cinema, que não é pouco, quando entendeu que as adaptações cinematográficas eram exploração em massa e não um passeio perigoso de barco pelos rios do risco e da complexidade.
Alan Moore já falava antes de “parques temáticos” bem antes de Martin Scorsese para se referir ao cinema de super-heróis.
Quer mais anarquismo em protestos com máscaras do que esse?
/ FOTO. A foto de capa da matéria é de Madeleine Hébert. 2011, Nova York, Estados Unidos. Para fazer essa matéria de máscaras e protestos, o site Flickr foi usado para a captura de imagens, com os devidos créditos dados.
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