Conspiração Tequila (1988) é um filme que surge do pântano febril da paranoia de narcotráfico latino da mente hollywoodiana oitentista, um conto desavergonhado e assumido de preconceitos, imerso no estilo neonoir, onde o brilho e a decadência de Los Angeles são tão intoxicantes quanto a própria bebida que dá nome ao filme.
É uma obra que ressoa com a paranoia e a violência da Era Reagan, uma época em que os Estados Unidos parecia estar à beira do derretimento induzido pelo tráfico de drogas. Mas como todo thriller americano, é bom e divertido em muitas medidas, o que não é surpresa nenhuma, já que Robert Towne escreveu e dirigiu Conspiração Tequila — ele é simplesmente o autor do roteiro de Chinatwon (1974), um dos melhores filmes policiais noir do cinema.
Contudo, sua conspiração de crimes e tequila esbarra na tríade de atores protagonistas, que estão lutando todo o tempo para criar química: Mel Gibson (bandido), Kurt Russel (policial) e Michelle Pfeiffer (mocinha).
Pfeiffer também opera no papel de femme fatale nesta conspiração de tequila, drogas e romance, e traz uma nuance necessária ao caos. Sua personagem é presa em uma teia de clichês e fantasias masculinas, sendo o epicentro emocional, a musa inatingível, o fio frágil que liga os dois protagonistas.
O longa-metragem é a quinta obra nos cinemas do ator Raul Julia no ano de 1988, em mais um capítulo da Maratona Cinematográfica Raul Julia no blog Destrutor. E qual o papel de Raul, um ator porto-riquenho em Conspiração Tequila? Uma tequila para quem adivinhar.
Amigos de infância, Mac McKussic (Gibson) e Nick Frescia (Russell), agora adultos, estão em lado opostos da lei. Enquanto Mac é um traficante com uma pretensa e impossível aposentadoria de seu ofício, Nick é um determinado tenente da divisão da narcóticos da polícia de Los Angeles.
Os dois acabam envolvidos com a mesma mulher, Jo Ann Vallenari (Pfeiffer), dona de um restaurante muito chique da cidade, e tem o nome de Tequila Rising (nome original do filme).
Essa amizade azeda quando o misterioso traficante mexicano Carlos está para chegar em LA. Ele é um velho parceiro de Mac, que agora só quer distância dos crimes — ou assim quer fazer parecer, já que agora só quer Jo Ann. Nick, recém-promovido ao cargo de chefe, também a quer. E quer prender Carlos. Com ajuda de Mac.
O eixo narrativo de Conspiração Tequila vai tratar desses 4 personagens em tela, pendendo mais para Mac e Jo Ann, que levam o filme consigo. Raul está dúbio, pois “divide” seu papel com outro personagem na trama, o qual vamos omitir aqui na resenha.
Conspiração Tequila
(Tequila Rising, 1988, de Robert Town)
A estética neonoir dos anos 1980 é um animal diferente de seus antecessores dos anos 1940 e 1950 — do qual Chinatown bebeu diretamente. Em Conspiração Tequila, a fotografia superexposta de Los Angeles é uma personagem por si só. A cidade é um inferno de neon e sombras, onde as luzes brilhantes se misturam com os cantos escuros dos becos infestados de crime.
É uma visão caleidoscópica que captura a dualidade da cidade dos anjos: um lugar onde sonhos são fabricados e destruídos na mesma batida de coração. Ainda asssim, fica longe de superar Viver e Morrer em Los Angeles (1985), de William Friedkin, que faz isso muito melhor (aliás, é um dos melhores filmes policiais do cinema).
Nick Frescia e Mac McKussi carregam muitas visões machistas, marca emblemática da masculinidade inflamada dos anos 80. Os diálogos são carregados de cinismo e sarcasmo, em uma dança verbal que tentar ecoar os clássicos do noir, mas com um toque de excesso de testosterona que só poderia ter nascido nos 80, o que joga parte do apelo de Conspiração Tequila para baixo.
Jo Ann Vallenari parece ser de fácil trato, mas mostra exatamente do que é feita quando entende que pode estar sendo joguete nas mãos dos dois homens com quem está se envolvendo. Mac é melhor em mostrar certo desinteresse, enquanto Nick tem sede demais, o que pode explicar as escolhas que a dona do restaurante fará, amorosa e moralmente.
A inserção do México como vetor do narcotráfico que assola os EUA é uma manobra desonesta, e sempre uma tentativa desesperada de Hollywood de eximir a América de suas próprias falhas governamentais e de políticas burras de guerra às drogas — conflito esse que eles estão perdendo há mais de 40 anos. Frequentemente a máquina cultural americana pinta o México com um pincel grosso e estereotipado, um país de vilões caricatos e traficantes impiedosos, enquanto os verdadeiros culpados – a demanda insaciável por drogas nos EUA e a corrupção interna – são relegados a meras notas de rodapé.
Conspiração Tequila também joga com as ansiedades da época, refletindo o medo do outro, do desconhecido. O México é o espelho escuro onde a América projeta seus próprios demônios, um país transformado em um vilão conveniente para mascarar as falhas internas. É uma crítica mordaz e, ao mesmo tempo, um exemplo da miopia cultural que permeava (permeia) Hollywood.
Raul Julia interpreta de modo aristocrático o Comandante Xavier Escalante, policial mexicano de alta patente, trazido pelo rival de Nick para ajudar na captura do traficante Carlos.
E quando Carlos finalmente aparece, por mais que o ator que o interprete tente fazer algo mais com o material que recebeu, tudo parece encapsulado em uma pequena porção de diálogos circulares e clichês que acabam por nos fazer adivinhar o desfecho.
No jogo do narcotráfico, não há vencedores, apenas sobreviventes temporários. Conspiração Tequila é uma obra que ressoa com a intensidade de um mergulho profundo nas águas turvas de uma década marcada por excessos e desilusões.
A Guerra às Drogas, maldita cruzada iniciada pelo governo dos Estados Unidos, começou em 1981 com um fervor moralista e uma determinação cega que só poderiam ser produzidas no caldeirão paranoico da política americana. Ronald Reagan, com seu sorriso de cowboy e uma convicção puritana, declarou guerra aos narcóticos com a mesma intensidade que usaria contra o comunismo.
Era uma guerra nascida do pânico e da ignorância, uma tentativa desesperada de controlar uma crise que muitos argumentam ter sido exacerbada pelas próprias políticas governamentais.
Reagan e seus asseclas estavam determinados a limpar as ruas de drogas e viciados, utilizando uma mistura tóxica de políticas de encarceramento em massa e campanhas de propaganda. “Just Say No”, a infame campanha liderada por Nancy Reagan, foi lançada em 1982, bombardeando as massas com mensagens simplistas que ignoravam completamente as complexidades do vício e da dependência. A legislação, como a Lei Antidrogas de 1986, trouxe sentenças mínimas obrigatórias que lotaram as prisões com pequenos infratores, transformando o sistema penal americano em um monstro inchado e faminto.
Mas, como sempre, a realidade se mostrou teimosa. O consumo de drogas não diminuiu, pelo contrário, aumentou. As ruas de Nova York, Los Angeles e Miami continuaram a transbordar com cocaína e heroína, e os usuários se multiplicavam como coelhos sob o olhar vigilante de um governo impotente. As políticas agressivas apenas empurraram a indústria das drogas para as sombras, onde floresceu longe das vistas da lei.
Enquanto isso, do outro lado da fronteira, os cartéis mexicanos esfregavam as mãos de contentamento. Os esforços de Reagan apenas abriram novos mercados para os barões da droga como nunca antes visto. Com a demanda americana insaciável, os cartéis se tornaram mais ricos e poderosos, criando verdadeiros impérios do narcotráfico que controlavam vastas regiões do México com punhos de ferro e sangue. A violência escalou a níveis grotescos, com execuções, sequestros e corrupção desenfreada tornando-se a norma.
Os anos entre 1981 e 1990 foram uma era dourada para os traficantes. A cocaína colombiana fluía através do México e entrava nos Estados Unidos como uma correnteza implacável. E por cada traficante preso, dez mais surgiam em seu lugar, prontos para aproveitar a vasta fortuna disponível. A guerra contra as drogas não apenas falhou em seu objetivo declarado, mas também fortaleceu o inimigo, transformando criminosos em magnatas e espalhando o terror em ambos os lados da fronteira.
Enquanto as prisões americanas enchiam-se até o limite, a sociedade começava a ver os efeitos colaterais da guerra. Famílias destruídas, comunidades devastadas e uma geração de jovens, principalmente de minorias, aprisionados em um ciclo vicioso de pobreza e encarceramento. O sonho americano tornava-se um pesadelo para muitos, um reflexo perverso de uma nação em guerra contra si mesma.
E em meio a esse caos, a corrupção proliferava. Políticos e policiais, tentados pela riqueza inimaginável dos cartéis, sucumbiam às tentações do dinheiro fácil. O sistema de justiça americano mostrava suas rachaduras, revelando um submundo onde a lei era tão fluida quanto a cocaína que inundava as ruas.
Uma tequila com Robert Town sem conspiração
Robert Towne não conseguiu o que desejava com Conspiração Tequila. Mesmo com um trio de grandes atores, no auge/começo de suas respectivas carreiras, numa trama com premissa interessante, e ainda, num cenário de uma Los Angeles excepcionalmente bem fotografada (indicada ao Oscar, mas que perdeu para Mississípi em Chamas), o longa simplesmente não pegou.
O autor e produtor Robert Towne (morreu com 89 anos em julho de 2024) nasceu em Los Angeles, Califórnia, EUA. É de sua autoria roteiros de filmes como Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas (1967), Chinatown (1974) — que ganhou o Oscar de Melhor Roteiro, vencendo A Conversação, de Francis Ford Copolla; Missão: Impossível (1996) e A Última Missão (1973) — também concorreu ao Oscar, mas perdeu para O Exorcista; além de muitos outros, como Onde os Homens São Homens (1971); O Céu Pode Esperar (1978) — não-creditado; As Parceiras (1982) — ele dirigiu; Morrer Mil Vezes (1986); A Marca do Passado (1987); Busca Frenética (1988); Dias de Trovão (1990); A Chave do Enigma (1990); Segredos do Coração (1994); Prova de Fogo (1998) — ele dirigiu; Missão: Impossível 2 (2000); e Pergunte ao Pó (2006) — também dirigiu. Ele ainda escreveu episódios de séries de TV como Quinta Dimensão, O Agente da UNCLE e outros.
Ele ainda foi indicado a mais 2 Oscar: por Shampoo (1975), mas Um Dia de Cão ganhou, e Greystoke – A Lenda de Tarzan, O Rei da Selva (1984), com Amadeus levando o prêmio (Os Gritos do Silêncio concorreu também).
Esse último foi um caso curioso. Towne ficou insatisfeito com a produção e decidiu usar o psudônimo P. H. Vazak. Assim, ele foi o primeiro autor a ser indicado ao Oscar com um pseudônimo. Além de tudo isso, ele ajudava a aprimorar roteiros. Foi ele, por exemplo, quem escreveu a cena do jardim entre Marlon Brando e Al Pacino para O Poderoso Chefão (1972).
Towne criou 3 filmes sobre o detetive Jake Gittes, cada um lidando com a corrupção governamental em áreas diferentes dos serviços públicos da cidade de Los Angeles. O primeiro, Chinatown, tratava do roubo de água das áreas vizinhas. O segundo, A Chave do Enigma, tratava da indústria do petróleo.
O terceiro, Cloverleaf, seria sobre o desmantelamento do transporte público em favor das rodovias, e que não foi produzido. Mas o mesmo enredo se tornou a base para Uma Cilada para Roger Rabbit (1988), sendo que o nome Cloverleaf aparece como o nome de uma holding (e assim como nos dois filmes anteriores, Cilada também começa com um caso de adultério).
O ator Mel Gibson vinha do enorme sucesso de Máquina Mortífera (1987), que se tornou uma franquia de cop movie mais divertidas do cinema nos anos 80 e 90, sendo que o segundo já saiu logo após Conspiração Tequila, em 1989.
Gibson estreou na indústria de cinema com Mad Max (1979), filme independente australiano do estreante médico/cineasta George Miller, um pesadelo distópico de violência nas estradas que fez um enorme sucesso. A obra entrou no radar do Hollywood e Miller teve o dobro de grana para fazer Mad Max 2 (1981), que sedimentou por definitivo o mood pós-apocalíptico na cultura pop e a estrela de Gibson como astro do cinema. Tanto que em Mad Max 3 – Além da Cúpula do Trovão (1985) seu cachê já valia várias vezes os orçamentos dos dois primeiros Mad Max.
Já Kurt Russel tinha estrelado o divertidíssimo Um Salto para a Felicidade (1987) um ano antes de Conspiração Tequila, uma comédia impagável com Goldie Hawn (sua esposa até hoje). Antes ele tinha estrelado Os Aventureiros do Bairro Proibido (1986), de John Carpenter, longa de ação e aventura, um dos melhores do cineasta, que há tempos trabalhava com o ator.
Russel estrelou O Enigma de Outro Mundo (1982), filme de horror de Carpenter que o blog Destrutor considera o maior filme do cinema. Um ano antes ele fez Fuga de Nova York, sci-fi apocalíptico que também é de Carpenter. Depois de Conspiração Tequila, Kurt seguiu com Tango e Cash – Os Vingadores (1989), ao lado de Sylvester Stallone, já na onda de Máquina Mortífera de cop movie.
Até ganhar o papel de protagonista do musical Grease 2 (1982), Michelle Pfeiffer trabalhou em produções pequenas, em seriados de TV e alguns filmes. Sua grande chance foi em Scarface (1983), de Brian De Palma, no qual contracena com Al Pacino.
Ela fez a comédia dramática As Bruxas de Eastwick (1987) e filmou ao mesmo tempo que Conspiração Tequila o sexy Ligações Perigosas (1988), filmaço de drama romântico que teve várias indicações ao Oscar, incluindo o de Melhor Atriz Coadjuvante para Michelle (ela perdeu para Geena Davis em O Turista Acidental). Mas Pfeiffer explodiria de popularidade mesmo ao interpretar a Mulher-Gato em Batman – O Retorno (1992), de Tim Burton.
Raul Julia
(1940-1994)
Os outros filmes de Raul Julia lançados em 1988 foram a cinebiografia Onassis: The Richest Man in the World (e esse com um breve comentário a respeito de outro filme, Trading Hearts), o drama O Penitente e a comédia dramática Luar Sobre Parador.
Raul Julia tinha 54 anos quando morreu no North Shore University Hospital, em consequência de um derrame cerebral que sofreu dia 16 de outubro de 1994. Julia era filho de um comerciante porto-riquenho, e chegou a Nova York em 1964. Começou a ser conhecido no final dos anos 1960 por sua participação no Festival Shakespeare novaiorquino, onde ele afiaria seu talento como ator.
Nos anos 1970, teve 12 trabalhos entre TV e filmes. Nos anos 1980, esse número aumentou para 23. O ator morreu em 1994, aos 54 anos, mas fez alguns de seus filmes mais conhecidos foram lançados nessa década. Continue acompanhando o Destrutor para saber mais sobre todos eles.
De acordo com o Internet Movie Database de Raul Julia, o ator começou no audiovisual em um episódio de TV da série dramática Love of Life (1951-1980). Em 1968 fez uma participação na série policial N.Y.P.D. (1967-1699), e enfim estreou no cinema com o filme policial Stiletto (1969), em uma participação não-creditada.
Abaixo, um vídeo produzido pelo American Masters, que destaca profissionais da arte e cultura nos Estados Unidos. E a rendição deles para o talento de Raul Julia. Ele era casado com Merel Julia, e tinha dois filhos, de 7 e 11 anos, quando faleceu em 1994. Raul tinha criado uma instituição, junto com sua mulher, chamada The Hunger Project, destinada a lutar contra a fome no mundo.
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