Os videogames e os animes — desenhos animados japoneses — estabeleceram uma relação simbiótica que apresenta um apelo único para os fãs da cultura pop, e Ghost in The Shell, um mangá (quadrinhos japoneses) publicado originalmente entre 1989 e 1991, escrito e desenhado pelo artista Masamune Shirow, teve uma adaptação em longa-metragem de anime lançado em 1995 (que se tornou um produto igualmente poderoso), mas foi com uma abertura em anime de um game de 1997 que vimos o verdadeiro potencial cyberpunk da HQ de Masamune, uma das obras mais impactantes da ficção científica.
Se em 1995 o renomado diretor japonês Mamoru Oshii levou para as telas de cinema o universo de Ghost in The Shell em uma trama introspectiva e psicológica, que vai fundo nos anseios e pirações da major Motoko Kusanagi, uma cyborg militar com problemas existencialistas, e uma sociedade informatizada e perigosamente perto da inteligência artificial (debate hoje que está só começando), o game transporta o design e assinatura visual com muito mais arrojo e performance técnica com tudo aquilo que Masamune imprimiu em sua HQ.
Uma das primeiras observações a serem feitas é o cuidado com que o visual dos personagens e ambientes foram tratados nas sequências em anime desse game. O jogo captura a estética distópica e futurista, recriando muito bem os cenários da obra original.
Os detalhes impressionantes e a riqueza de texturas apresentadas — primeira experiência do estúdio de animação I.G. Productions com cenários 2D e 3D — proporcionam uma imersão que muitas vezes se assemelha às ilustrações do mangá. As sequências de ação do game de Ghost in The Shell são fluidas e empolgantes e refletem a intensidade das cenas de ação presentes no mangá.
Nesse contexto, esse jogo, lançado exclusivamente para o PlayStation, o console de 32-bits de estreia na Sony no mundo dos videogames, surge como uma oportunidade para os fãs mergulharem diretamente no mundo do mangá de Shirow, sob um prisma colorido neon-noir.
Os desenvolvedores do game recriaram o mood visual dos quadrinhos em elementos gráficos de polígonos hi-tech, macios e lisos, com um 3D em real-time que funciona bem para um game noventista.
A atenção aos detalhes é evidente, especialmente nas cenas de combate e nas interações entre os personagens. E a movimentação e os gestos dos personagens no jogo transmitem um realismo que se alinha com a visão original de Shirow, além de manter um character design bem parecido ao mangá.
Três livros foram lançados baseados nesse game. Ghost in the Shell Official Art Book, com toda a produção artística de ilustrações, character design e artes conceituais de cenários, além de comentários, e dois guidebooks, Ghost in the Shell: Basic File e Ghost in the Shell: Master File.
Também foi lançado um vídeo em 1998, com bastidores da produção do game, chamado Making of Game Ghost in the Shell All of Digital Animation, com entrevistas dos desenvolvedores e outros. Claro, em VHS, o formato vigente da mídia na época. Também foi lançado um LaserDisc no mesmo ano, mas esse com entrevistas no lado A e as animações do game no lado B.
A animação de abertura, bem como as intros ao longo da narrativa, têm direção de Hiroyuki Kitakubo, diretor de animes como Robot Carnival (1987), uma antologia de animes com vários diretores consagrados, usando o tema de robôs; Blood – The Last Vampire (2000), uma das mais impressionantes interpretações do mito do vampiro nos animes; JoJo’s Bizarre Adventure (2012-2013), baseado no mangá de mesmo nome, uma aventura cheia de ação e porrada criada pelo artista Hirohiko Araki. Ele também foi o responsável pelo roteiro e storyboard do anime.
A direção de animação de Toshihiro Kawamoto (Cowboy Bebop, de 1998, e Wolf´s Rain, de 2003). O estúdio responsável foi a I.G. Productions, produtora de vários sucessos da animação japonesa, como Patlabor (1988-1993), Shingeki no Kyojin (2013 ~), mais conhecido como Ataque dos Titãs no ocidente, além do próprio filme de Ghost in The Shell.
São 10 minutos de animação que emulam com perfeição o traço de Masamune Shirow (apesar do character designer ser Yoshiaki Toratani). Os artistas que trabalharam nos desenhos foram Toshiyuki Inoue, Mitsuo Iso, Yoh Yoshinari, Ko Yoshinari, Koichi Arai, Hisashi Ezura, Yasushi Muraki e Toshihiro Kawamoto.
Mas é preciso se atentar a algo importante: todas as sequências dependem da habilidade do jogador no game. Por exemplo, 17 delas são liberadas de acordo com a pontuação no modo de treino.
Entre as técnicas de animação envolvidas, que mesclou as combinações tradicionais de arte 2D em acetato com cenários renderizados por computador em 3D, temos as mais modernas colorizações digitais na época, graças ao recém-nascido Photoshop. Tudo isso permitiu uma nova escalada de qualidade na mídia em sim, com o estúdio aplicando as técnicas em obras de futuro com grande sucesso. A história do jogo em si foi de autoria do próprio Shirow.
No universo de Ghost in the Shell, a discussão sobre fidelidade à obra original é crucial, pois o mangá de Shirow é considerado um marco da ficção científica cyberpunk pelos seus detalhes a respeito de discussão de tecnologia de corpo e mente e filosofia existencialista de modo integrados. Esses detalhes complexos de uma sociedade altamente tecnológica (e tecnocrata) e explorações filosóficas foram intensos no filme de Oshii.
Ele opta por uma abordagem mais parada e menos focada na ação direta, ainda que tenha cenas de ação memoráveis (copiadas até hoje).
Embora seja amplamente elogiado por sua atmosfera única e pelas questões filosóficas que levanta, a animação de Oshii não possui a mesma riqueza visual e o cuidado nos detalhes encontrados no jogo. O estilo mais minimalista do filme, embora tenha sua própria beleza e propósito, pode ser considerado uma divergência estilística do mangá original.
O blog fez uma matéria sobre o mangá e o filme animado na época da pandemia de Covid-19, traçando paralelos com a própria produção do longa.
O game de Ghost in The Shell foi um lançamento exclusivo para o PS1, e nunca mais foi relançado. Ele foi desenvolvido pela ExactProduction I.G, Inc. (uma subsidiária da própria I.G. Productions) e publicado pela própria Sony Computer Entertainment Inc. no Japão e Europa, sendo que o lançamento americano foi pela THQ Inc.
Animes e videogames
Em 1997, videogames e animes eram meios de entretenimento muito populares e eles se complementavam de várias maneiras (na verdade até hoje). Os animes possuem uma estética visual distinta e narrativa envolvente puxa uma base de fãs dedicada.
Os videogames por sua vez oferecem uma experiência interativa e imersiva que permite aos jogadores se envolverem diretamente com as histórias e os personagens. Essa relação simbiótica foi impulsionada pela convergência de interesses nos produtos da indústria da cultura pop japonesa de modo premente: mangá > anime > game. Não necessariamente nessa ordem.
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Os fãs de animes viam nos videogames uma oportunidade de interagir com seus personagens favoritos e vivenciar suas histórias de uma forma nova e emocionante. E os videogames traziam à vida os animes de uma maneira que ia além da simples observação passiva, permitindo que os fãs se tornassem parte ativa das narrativas.
Isso era reforçado pela disseminação de franquias de sucesso. Muitos animes e seus respectivos jogos se tornaram parte integrante da cultura popular, gerando uma demanda constante por novos produtos relacionados. Isso criou um ciclo de influência mútua, onde os animes impulsionavam a popularidade dos videogames e vice-versa.
Outros trabalhos de Hiroyuki Kitakubo no mundo dos videogames incluem o roteiro de Battle Tryst (1998), jogo de luta da Konami para arcades, e o storyboard do game Drakengard (2003), um RPG para PlayStation 2. Já o artista Yoshiaki Toratani também foi o responsável do character design dos jogos Jumping Flash! (1995-1998), um dos games de ação ponta de lança do PS1 na época de seu lançamento, além de ter feito o design de Covert Ops: Nuclear Dawn (2000), jogo de tiro em terceira pessoa no PlayStation, e ser o artista senior de Red Ninja: End of Honor (2005), jogo de ação com ninjas para o PlayStation 2.
Masamune Shirow esteve envolvido em todos os projetos de Ghost in The Shell, contribuindo de diversas maneiras. Antes do filme de Oshii em 1995, ele trabalhou nas artes dos games Toshi Tensou Keikaku: Eternal City (1991), um game de ação para o TurboGrafx-16, Lords of Thunder (1993), game de tiro horizontal para o TurboGrafx CD, e o Project: Horned Owl (1995), outro jogo de tiro para o PlayStation, onde inclusive criou os personagens e os designs mecânicos. Ele também fez ilustrações para o game de RPG Fire Emblem: Shadow Dragon (2008), do Nintendo DS.
O game de Ghost in The Shell
O jogo em si de Ghost in The Shell é um shooter tank-based, onde controlamos os Fuchikomas, os tanques-robôs-aranhas com IA presentes no mangá (e ausentes na obra de Oshii). Ele oferece uma variedade de missões e objetivos, o que contribui para a diversificação da experiência, que vai desde resgatar reféns até eliminar alvos específicos. Cada missão apresenta desafios únicos, mantendo os jogadores engajados.
Em termos de jogabilidade, o game de Ghost in the Shell pode ser comparado a outros jogos de ação e tiro em terceira pessoa da época, e os cenários detalhados e a riqueza visual ajudam a transportar os jogadores para o mundo futurista e distópico da obra original.
Ghost in the Shell apresenta um sistema de combate com armas e habilidades especiais à disposição dos jogadores, e essas habilidades especiais, como o uso de camuflagem óptica (famosa no mangá e no filme) e a capacidade de hackear sistemas, adicionam uma camada estratégica ao game, permitindo diferentes abordagens para enfrentar os desafios. O training mode tem 6 estágios com os elementos básicos do game, sendo que 5 deles são para ajuste de jogabilidade e familiaridade dos controles, com o 6º estágio reservado para um confronto com um Fuchikoma.
A história — tal qual mangá e anime — foca em uma equipe de policiais da Seção 9, um departamento secreto do governo para a segurança federal, e liderada em campo pela Major Motoko Kusanagi. Também estão presentes o Chefe Aramaki e os oficiais Batou, Togusa, Ishikawa e Saito. O jogador é um novo membro dessa seção (chamado informalmente de “Rookie“, novato em inglês), e que deve combater terroristas e ameaças cibernéticas com a ajuda de um Fuchikoma.
Parte da trama envolve terroristas de um grupo chamado Human Liberation Front (“Frente de Libertação Humana”) destruindo o prédio da Megatech Body, Inc., que desenvolvem corpos de cyborgs. Ishikawa consegue determinar a localização dos criminosos, e Kusanagi e Togusa despacham uma equipe de policiais e Fuchikomas para detê-los.
São 12 missões no controle da máquina, em uma visão que pode ser alternada entre primeira e terceira pessoa (e ela se auto-ajusta em determinadas situações), com opções de ataque como trios de metralhadora, mísseis teleguiados e granadas. O Fuchikoma avança em oito direções nesse mundo 3D, além de pular, escalar, grudar em paredes e realizar travessias com o uso de cordas.
Os inimigos vão de robôs humanoides, ciborgues a veículos militares como helicópteros. As fases incluem armazéns, complexos industriais, esgoto, arranha-céus da cidade e bases inimigas, e ação ocorre em meio a perseguições, buscas por bombas, ataques, esconde-esconde com camuflagens termo-óticas e outras coisas legais de se fazer.
Mas infelizmente as qualidades de Ghost in The Shell param aí, e os defeitos do jogo em si se tornam muito mais evidentes, com aspectos que feriram de morte a principal intenção de um game: ser divertido de jogar. Os cenários se apresentam em monótonas “caixas” e ambientes fechados, e envolvem a destruição de alvos específicos, e algumas das fases tem tempo limite para que a missão seja completada.
Alguns jogadores podem considerar que os controles e a movimentação do personagem são um pouco rígidos e pouco responsivos em comparação com os padrões atuais. Isso pode resultar em uma curva de aprendizado mais íngreme e em momentos de frustração durante o jogo.
Como é comum para jogos dessa época, os gráficos do Ghost in the Shell podem parecer datados em comparação com os padrões visuais atuais, e mesmo em 1997 ele não apresentava criatividade em seus polígonos e renderização de cenários. Embora a fidelidade visual ao mangá seja admirável, os gráficos não fazem justiça.
Outros gamers podem achar que a inteligência artificial dos inimigos é previsível e limitada, reduzindo o desafio e a variedade de estratégias necessárias para superá-los. É importante considerar que essas vantagens e desvantagens devem ser avaliadas no contexto da época em que o jogo foi lançado.
Embora o Ghost in the Shell possa não atender aos padrões modernos de jogabilidade, é valorizado por sua fidelidade ao mangá e por proporcionar uma experiência imersiva aos fãs da obra original.
A trilha sonora do game de Ghost in The Shell foi chamada de Ghost in the Shell: Megatech Body (retirada diretamente de um local da série). O álbum foi produzido por Takkyu Ishino e tem muitas faixas techno do compositor Mijk van Dijk, além dos artistas Westbam e Brother from Another Planet.
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