GRITOS DO SILÊNCIO | Política e jornalismo como cinema-arte de Roland Joffé

O cineasta Roland Joffé fez dois dos mais impressionantes filmes dos anos 1980: Os Gritos do Silêncio (1984) e A Missão (de 1986).

Os dois longas trabalham um tema pesado de política, época e costumes em suas narrativas, e que mesmo imperfeitas, são louvores a arte de fazer cinema.

Os elementos de filmagens, cenários e locações perigosas e impossíveis, mas críveis e épicas, são um grande exercício de criatividade técnica da sétima arte. São dois filmes que carregam seus defeitos, mas com qualidades tão gigantes que mostram a inacreditável riqueza que é fazer filmes com F maiúsculo.

Em Os Gritos do Silêncio, vemos a história de dois jornalistas — um americano e um cambojano, o último feito prisioneiro do Khmer Vermelho no Camboja comunista, sob o comando de um dos ditadores mais sanguinários de todos os tempos, Pol Pot

Os Gritos do Silêncio

Os Gritos do Silêncio é filme de estreia da carreira de Roland Joffé.

Quando foi lançado nos cinemas, se tornou um sucesso de público e crítica. Foi nomeado a 7 prêmios no Oscar, incluindo o de Melhor Filme. Venceu 3, o mais notável para Haing S. Ngor, que não tinha experiência ainda em atuação — ele era um médico obstetra e ginecológico, com ascendência cambojana-americana.

Mesmo assim, na pele do jornalista Dith Pran, ele conseguiu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. É ele quem acompanha o repórter americano interpretado pelo ator Sam Waterston.

O repórter Sydney Schanberg trabalhou durante muitos anos para o New York Times, jornal impresso de grande prestígio nos Estados Unidos.

Ele fazia reportagens na Indochina e testemunhou a tomada do poder por Pol Pot no Camboja, uma situação que se provou em pouco tempo trágica, pois virou seu governo se tornou um dos mais cruéis regimes ditatoriais do mundo, conhecido internacionalmente como Khmer Vermelho (Khmer Rouge).

Tomando o poder no Camboja no auge do impacto global do marxismo-leninismo, Pol Pot mostrou-se divisivo entre o movimento comunista internacional. 

Enquanto diplomatas, estrangeiros e jornalistas fugiam do desmoronamento do país, Schanberg e seu assistente Dith Pran permaneceram na capital cambojana, para informar sobre como que as tropas lideradas por Pol Pot conduziram os rumos do Camboja em 1975.

Schanberg foi um dos poucos jornalistas americanos a permanecer na capital Phnom Penh depois que o Khmer Vermelho assumiu o controle.

Nos anos seguintes, quase 2 milhões de pessoas foram executadas ou morreram por causa da tortura, enfermidade e fome durante o reinado de terror do Khmer Vermelho. Isso incluiu toda a sorte de profissionais liberais do país, como a classe artística.

Quando Roland Joffé decidiu filmar a história de Sydney, simplesmente não havia mais atores cambojanos para interpretar os outros papéis necessários.

Schanberg conseguiu escapar para Nova York e, lá, escreveu relatos sobre o horror vivenciado no Camboja.

As reportagens deram a ele em 1976 o Prêmio Pulitzer de Reportagem Internacional. o mais cobiçado prêmio da área do jornalismo. Também ganhou duas vezes, em 1971 e 1974, pela excelência em seu ofício de jornalismo, o Prêmio George Polk.

Em 1980, ele publicou uma série de reportagens na qual descreveu a luta pela sobrevivência de seu assistente e tradutor Dith Pran sob o regime do Khmer Vermelho, já que ele não conseguiu sair com Sydney do Camboja.

Partes dessa história foram contadas em uma revista especial do New York Times Magazine, chamada “The Death and Life of Dith Pran: A Story of Cambodia“.

O roteiro de Os Gritos de Silêncio usa bastante dos fatos descritos nessa revista, e com efeito, Pran é a a estrela do filme, com toda a sua trajetória terrível de sobrevivência para conseguir fugir do Camboja.

Os Gritos do Silêncio
Sydney Schanberg foi o autor de reportagens sobre a ditadura comunista do Khmer Vermelho no Camboja, matérias que ganharam um prêmio Pulitzer, o Oscar do jornalismo. Na foto, uma cena do filme, com Sydney sendo interpretado por Sam Waterston

Os Gritos do Silêncio
(The Killing Fields, 1984,
de Roland Joffé)

Após a chegada de Pol Pot ao poder no Camboja, e a implantação de uma ditadura, temos a oportunidade de acompanhar a rotina dos terríveis campos de concentração, e parte do suplício de Pran é passado nesses campos, um aspecto que é focado no título original do filme: The Killing Fields, “os campos da matança”, em uma tradução aproximada.

Os Gritos do Silêncio foi muito bem montado (ganhou o Oscar de Melhor Edição) logo em seus minutos iniciais, com inacreditáveis cenas de ação e conflito tão próximos e verdadeiros que às vezes é difícil pensar que estamos vendo uma ficção.

Não tem nada de escandaloso ou meticuloso, é apenas uma cadência de atos tão reais quanto possíveis. Só a evacuação de Phnom Penh envolveu 3.000 extras.

Haing S. Ngor, que interpretou Pran, é ele mesmo um sobrevivente do regime do Khmer e dos campos de concentração.

Ele foi apenas mais um, de mais de dois milhões de pessoas, retiradas à força da capital cambojana para trabalhar nos campos, onde passou quatro anos até conseguir fugir para a Tailândia.

Originalmente, Ngor não queria qualquer envolvimento com o filme, mas Roland não tinha nem mesmo opções — uma das políticas do Khmer Vermelho era matar todos os atores do país.

Não restava ninguém mais para interpretar. Pol Pot e seu Khmer Vermelho ainda estavam em atividade quando Joffé e sua equipe foram filmar o longa, em locações e cenários na fronteira da Tailândia. O que também trouxe atenção internacional para a questão do país.

Stanley Kubrick foi considerado para ser o diretor, devido a particularidade do roteiro e trechos da revista de Sydney serem descritos como “não filmável”. É assim que ele descreveu o projeto aliás, em cartas endereçadas para a produção.

O roteiro do filme foi um calhamaço de 300 páginas, feito pelo ator Bruce Robinson. Ele mostrou para o produtor David Puttnam, que começou a considerar quem poderia filmar Os Gritos do Silêncio.

Quando Roland Joffé disse que o que tinha lido não era uma história de guerra, e sim uma história de amor e amizade entre Dith Pran e Sidney Schanberg, isso bastou para que Puttnam fechasse com o diretor.

Roy Scheider, Alan Arkin e Dustin Hoffman expressaram desejos de filmarem Os Gritos do Silêncio. Também era  vontade do estúdio fazer isso, mas o produtor David Puttnam e o diretor Roland Joffé decidiram por Sam Waterston.

O estúdio não ficou contente com uma cara desconhecida estrelando o longa, mas a questão da periculosidade das filmagens, os cenários ermos e locações afastadas, pavimentaram um caminho difícil e tortuoso para qualquer ator com estrela decidir participar.

Haing S. Ngor se tornou o primeiro ator do sul da Ásia, e o primeiro budista, a ganhar o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante em 1985.

Ele era médico antes, e junto com Harold Russell, que interpretou William Wyler em Os Melhores Anos de Nossa Vida (1946), são os únicos atores não-profissionais a ganhar o prêmio.

Os Gritos do Silêncio tem roteiro escrito por Bruce Robinson, a produção é de David Puttnam, a trilha sonora de Mike Oldfield e a fotografia de Chris Menges, que ganhou o Oscar de Melhor Fotografia.

O longa faz parte de um círculo de filmes notáveis dos anos 1980, com jornalistas na linha de frente e atuação. Salvador: O Martírio de um Povo (1986), Sob Fogo Cerrado (1983), O Ocaso de um Povo (1981), Deadline (1987), Um Grito de Liberdade (1987), Os Gritos do Silêncio (1984) e O Ano que Vivemos em Perigo (1982).

Produtos mais recentes oferecem uma qualidade menor, como Diamante de Sangue, de Edward Zwick, de 2007.

Política no cinema

O Camboja, junto com o Laos, nos anos 60 e 70, estão no contexto geopolítico da Guerra do Vietnã, a disputa que Estados Unidos e União Soviética promoveram no Sudeste Asiático por quase 20 anos — de 1959 a 1975.

O Vietnã do Norte, apoiado pela URSS, e o Vietnã do Sul, com os americanos, eram parte de um tabuleiro político, com o campo de guerra como laboratório de medição de forças capitalistas e comunistas e sua Guerra Fria.

A origem da Guerra do Vietnã é complexa. Ela sucedeu a Guerra da Indochina, contra o domínio colonial francês na região, que aconteceu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial.

O Camboja foi um dos países envolvidos. Deter o governo comunista do Vietnã do Norte em seu avanço no Vietnã do Sul, na visão americana, seria impedir um efeito dominó em países vizinhos adotarem o regime, o que fortaleceria a URSS.

A América tinha que deter o avanço comunista para não dar mais poder ao seu adversário soviético, e seu envolvimento na política dos países se dá exatamente sob essa ótica.

A guerra é a política por outros meios“, já dizia o general Carl von Clausewitz, teórico de guerra do século XIX, da antiga Prússia, e um dos grandes estrategistas militares da história.

Para que Pol Pot e o Khmer ascendessem, certas condições ocorreram. A Guerra Civil Cambojana foi um conflito que envolveu as forças do Partido Comunista do Kampuchea (conhecido também como Khmer Vermelho), liderado por Pol Pot, os seus aliados na República Democrática do Vietnã (Vietnã do Norte) e a Frente Nacional para a Libertação do Vietname (NLF ou , pejorativamente, Viet Cong) contra as forças governamentais cambojanas do autoproclamado Presidente da República Marechal Lon Nol, que eram apoiadas pelos Estados Unidos e pela República do Vietnã (Vietnã do Sul).

Esse conflito de forças durou até 1975, quando os acontecimentos do filme se dão.

Cineasta franco-britânico de origem judaica, Joffé estudou teatro e inglês na Universidade de Manchester.

Foi mais jovem diretor a trabalhar no National Theatre de Londres, quando Laurence Olivier era o diretor artístico. Joffé fez carreira na televisão no início dos anos 1970, dirigindo episódios da longa novela britânica Coronation Street (ITV).

Joffé trabalhou muito próximo do produtor David Puttnam em Os Gritos do Silêncio e A Missão.

Infelizmente, depois de se envolver com a péssima adaptação de um dos videogames mais famosos do mundo para as telonas, Super Mario Bros, da softhouse Nintendo, a carreira de Joffé perdeu muito de seu prestígio.

David Puttnam asked to see me, which in those days was a bit like being invited out to Hollywood. He gave me Bruce Robinson’s script, which was enormous, but it was so full of passion and energy I couldn’t put it down. I’d heard about Cambodia and the Khmer Rouge, but didn’t know much until I read it. I wrote to David saying that whoever made the film would have to be careful because it wasn’t just a war story: it was about human connection, how friendships are born and what they do to us. I didn’t hear from him for six months, then we bumped into one another and he said he’d interviewed most of the directors in the world – including some very big names who would make the studios happy – but no one had really understood it. “You’re the only man who has.”

Entrevista de Roland Joffé para o jornal The Guardian, novembro de 2014

Os Gritos do Silêncio
Roland Joffé

/ KHMER VERMELHO. Essa era a denominação dos seguidores do Partido Comunista de Kampuchea, que governou o Camboja de 1975 a 1979, liderado por Pol Pot, Nuon Chea, Ieng Sary, Son Sen e Khieu Samphan.

Suas políticas de engenharia social, que resultaram em um genocídio, são analisadas por historiadores até hoje.

A queda do Khmer aconteceu como resultado de uma invasão por parte da República Socialista do Vietnã (o Vietnã unificado, depois que a porção norte comunista derrotou o sul capitalista) e substituído por comunistas moderados.

O movimento do Khmer sobreviveu até os anos de 1990 como resistência operando na região oeste do Camboja, a partir de bases na Tailândia. Em 1996, após um acordo de paz, Pol Pot dissolveu formalmente a organização.

O homem morreu no dia 15 de abril de 1998, sem nunca ter sido levado a juízo. Pol Pot, quando assumiu, transformou o Camboja em um estado de partido único chamado Kampuchea Democrático. Queria criar uma sociedade socialista agrária que ele acreditava que evoluiria para uma sociedade comunista, mas o que se viu foi um regime ditatorial que matou milhões de pessoas.

Cerca de 1/4 do Camboja morreu pelas suas mãos. Pol Pot foi denunciado internacionalmente por seu papel no genocídio cambojano, considerado um ditador totalitário culpado de crimes contra a humanidade tanto quanto Adolf Hitler.

/ VIDA REAL. Dith Pran Reak se tornou um celebrado fotógrafo no jornal New York Times, depois que foi para os EUA junto com Sydney. Morreu em 2008, de câncer no pâncreas. Em 1996, o ator Ngor foi assassinado na sua garagem em Los Angeles, em circunstâncias misteriosas, que levou a polícia até a considerar que ele foi morto a mando de remanescentes do Khmer Vermelho

Ele fez mais alguns filmes depois de Os Gritos de Silêncio, mas sem grande expressão artística.

Obrigado por ler até aqui!

O Destrutor é uma publicação online jornalística independente focada na análise do consumo dos produtos e tecnologia da cultura pop: música, cinema, quadrinhos, entretenimento digital (streaming, videogame), mídia e muito mais. Produzir matérias de fôlego e pesquisa como essa, mostrando todas essas informações, dá um trabalhão danado. A ajuda de quem tem interesse é essencial.

Apoie meu trabalho

  • Qualquer valor via PIX, a chave é destrutor1981@gmail.com
  • Compartilhe essa matéria com seus amigos e nas suas redes sociais se você gostou.
  • O Destrutor está disponível para criar um #publi genuíno. Me mande um e-mail!

O Destrutor nas redes: Instagram do Destrutor (siga lá!)

Todas as imagens dessa matéria têm seus direitos reservados
aos seus respectivos proprietários, e são
reproduzidas aqui a título de ilustração.

LEIA TAMBÉM:

DIAMANTE DE SANGUE | Jennifer Connelly e o cinema de jornalismo