Ghost in The Shell, a adaptação do mangá em desenho animado de 1995, é o nascimento de uma das maiores obras do cyberpunk, junto com o nascer da major cyborg Motoko Kusanagi.
Os fascinantes aparatos tecnológicos que montam as estruturas e engrenagens para que a ciborgue ganhe vida é um dos grandes momentos do cinema animado.
Entre números verdes que surgem na tela em fundos vazios negros, pastas leitosas de carne artificial para músculos, seios e face, a cabeça mecânica em formato de flor se fecha perto do fim. Motoko Kusanagi nasce.
Ela está pronta fisicamente, mas jamais terá plena consciência quando se pergunta: “eu tenho uma alma?”
Na etapa de produção da animação, um tufão alagou cidades do litoral japonês, e o estúdio responsável pela obra foi afetado.
É por isso que vemos Motoko e seus companheiros correrem pela cidade sem nome e diversos pontos dela estarem alagados. A vida real reflete em obras culturais.
O Covid-19 é um ponto de inflexão na história da humanidade, e certamente impactará as obras culturais daqui para frente.
De que modo?
Assim como em Ghost in The Shell, com questões.
É com essa pergunta que acompanhamos as aventuras da agente secreta e major Motoko Kusanagi, em suas missões pela Seção 9, uma divisão político-militar que o Japão tem no futuro de 2029 para tratar de ameaças ao país.
Como diz a abertura do mangá, “(…) um futuro informatizado, mas não tanto a ponto de eliminar conceitos de nação e grupos étnicos.“
Ghost in The Shell,
mangá & anime
Para condensar em 82 minutos de filme animado a história do mangá — que tem 12 capítulos, em 348 páginas, desenhadas e escritas pelo autor Masamune Shirow — o diretor de cinema Mamoru Oshii optou em focar exclusivamente a trama do Mestre das Marionetes no longa.
No mangá e no anime, ele desempenha a mesma função: trata-se de um espião digital hacker que ganhou vida no mar de informações em que foi incluído.
Conforme persegue esse criminoso, Kusanagi começa a questionar sobre sua própria existência e memórias.
Será ela apenas um produto, um corpo robótico qualquer de fábrica?
Desde o primeiro capítulo do mangá — e do anime — já é possível estabelecer traços dos rastros do Mestre das Marionetes, até o fatídico final, onde ele se depara, confronta, conversa, “transa” e “morre” com a major Motoko Kusanagi, em um desfecho aberto/fechado e inesperado para qualquer um.
Particularmente, uma cena chave do clímax, com aparições oníricas de um anjo, pela visão de Motoko, no mangá e anime, ganha ainda mais significado na animação, pois é nela que, com a câmera em destaque, vemos uma “Árvore da Vida” (figura mitológica encontrada na bíblia, culturas nórdicas, a cabala (a parte mística do judaísmo) — a despeito dela ser referência direta a um anime anterior feito por Oshii, Angel’s Egg.
Mesmo tratando de pesados assuntos de geopolítica, o mangá e anime cedem ao peso da questão da alma. Essa questão é o motor central do filme animado (e bem menos no mangá, o material original).
O fantasma oculto no invólucro de alta tecnologia de um ciborgue pode abrigar uma alma, o verdadeiro eu de alguém?
É uma pergunta que fascina autores de ficção científica há muito tempo. O Monstro de Frankenstein, nas palavras de sua mãe, Mary Shelley, sua majestade que criou o gênero, que o diga.
Motoko, nas mãos de seu pai Masamune, é alegre, sacal e bonachona, mas durona, esperta e pragmática.
Sua primeira frase, em sua primeira aparição, é “Já ouvi, não precisa encher o saco.” É com esse espírito que ela encara inclusive o final da história. A Motoko de Masamune é sensual, gostosa, leve e assassina.
Motoko, nas mãos de pai adotivo Oshii, é o retrato da incerteza e melancolia, e ela é aparentemente distante.
E é assim que ele conduz a narrativa filosófica, que não se preocupa em ser ágil, nem em explicar demais o que acontece na tela.
A Motoko de Oshii (character design de Hiroyuki Okiura) é uma boneca realista, com curvas condizentes com a figura feminina, olhos expressivos que nunca piscam, e a frieza necessária para cumprir missões, mas não tanto a ponto de matar suas emoções e questionamentos.
A riqueza da combinação entre metafísica e máquinas ajudou a fazer do filme animado Ghost in The Shell (lançado aqui no Brasil como “O Fantasma do Futuro“) um dos mais populares e aclamados longa-metragens de anime vindos do Japão — fazendo frente com Akira, outro monumento da animação e do cyberpunk.
Dirigido por Mamoru Oshii, o filme animado de Ghost in The Shell foi um sucesso em vários cinemas do mundo, lançado simultaneamente em cinemas do Japão, Estados Unidos e Reino Unido, em 18 de novembro de 1995.
Vendeu muito no circuito de locadoras, o que pagou com folga seu orçamento caríssimo de U$ 10 milhões, um valor alto para uma animação japonesa. Foi o primeiro anime a ser #1 na Billboard.
É uma obra complexa e densa, com digressões sobre a segurança geopolítica, computação, bio robótica, camuflagem termo-óptica e termos científicos tão cabeçudos que o mangá tem notas de rodapé para explicá-los na trama.
Shirow prima pela versatilidade do traço e do roteiro.
Com o sucesso cada vez mais crescente, o estúdio Production I.G, um dos mais virtuosos do Japão, especializado em produções mais sofisticadas, decidiu fazer uma animação em longa-metragem em 1995, sob a supervisão de Oshii, diretor veterano de animes.
Oshii abandonou o clima leve do mangá, mais despretensioso, bem humorado e com uma sensualidade explícita, em favor de um esoterismo técnico, questionamento filosófico e cenas de ação realistas para um filme lírico e poderoso.
O longa-metragem animado de Ghost in The Shell usa 48 frames por segundo, tem cenários detalhados em uma cidade não-identificada na Ásia lotada de gente, robôs, híbridos desses dois, perigos, prédios, veículos, cores, imunda, socialmente desigual, cinza e azul, e completamente instigante e viva.
Ghost in the Shell é Blade Runner contado do ponto de vista dos replicantes, que aqui, mais do que vida prolongada, querem saber se de fato estão com vida, em vida, e que tipo de vida.
Apesar dos ciborgues de Shirow serem indestrutíveis, a fraqueza de não saber se tem um “fantasma” na máquina oca de suas cabeças é mortal, e ganha força apenas no fim do mangá.
Mas todos esses elementos se juntam para que Mamoru Oshii, em sua animação, crie uma representação sinistra de uma sociedade derrapando na última saída da superestrada digital.
O Fantasma na Máquina
O mangá foi escrito e desenhado por Masamune Shirow em 1989, e serializado na revista Young Magazine, da editora Kodansha, no Japão.
Ela foi publicada de modo trimestral, com 40 páginas em média.
A trama se passa em 2029, antecipando na visão do autor 40 anos de avanços tecnológicos.
A conectividade e a existência humana atingem o ápice de sua união em Ghost in The Shell. Nesse futuro, muitas pessoas possuem acesso à uma vasta rede de informações por meio de de corpos cibernéticos conectados em suas consciências biológicas.
Daí vem o nome da obra: Ghost in the Shell, ou fantasma na casca. É realmente de se admirar que Masamune Shirow tenha idealizado uma rede de informações rica como essa — como nossa internet — em 1989, ano de publicação do mangá.
Dono de um traço sensual e com um olhar apurado para cenas de ação, Shirow não deixa por menos com informações, e nos entrega em peso de baleia toneladas dela a cada página do mangá, descrevendo tecnologias e fenômenos científicos.
Oshii não deixa por menos, e em sua animação, ainda que em 1995, já antevê graficamente modos e acessos que apenas hoje em dia são comuns em linguagens de comunicação e computação, de maneiras robustas e concretas.
Mamoru não nos deixa piscar com cenas de ação bem coreografadas, e nem Motoko — literalmente, já que ela não pisca exatamente para se parecer com uma boneca.
É assim que ficamos vendo o filme, hipnotizados e sem piscar.
Essa discussão de avanço tecnológico é o que permite as questões filosóficas de Motoko no longa — eu tenho “fantasma na máquina?“, “eu tenho uma alma?”.
A pergunta é uma referência e homenagem ao psicólogo e filósofo Arthur Koestler, autor de “The Ghost in the Machine“, que em tradução livre significa fantasma na máquina.
A progressão geométrica exponencial é o que dita como os computadores e a inteligência artificial se comportam em termos de velocidade de evolução.
O futurólogo Raymond Kurzweil acredita que entre os anos de 2037 e 2045 já teremos 1000 vezes mais processamento de dados em computadores do que temos hoje.
Para deixar as coisas em termos simples, o avanço das técnicas de produção de números de transistores, placas de circuitos integrados e placas gráficas é muito rápido.
Se computadores e carros seguissem a mesma lógica de velocidade de evolução, hoje em dia teríamos carros viajando quase na velocidade da luz a apenas R$ 0,01.
Na cena do anime em que o Dr. Willis digita em um console e teclado, a linguagem de programação vista é o atual código C — não é C de Covid-19, que a partir de 2020, deve ser considerado em toda e qualquer equação, em qualquer cadeia criativa de obras culturais futuras.
Há precedentes até mesmo no filme animado: a cidade onde se passa a ação está alagada em muitas partes, e isso se deve exatamente a um alagamento que ocorreu na cidade onde o estúdio de animação estava baseado.
Um tufão nas proximidades do litoral japonês provocou diversos alagamentos em 1994 no país.
No mangá, estamos claramente no Japão.
No anime, Oshii optou por deixar ambíguo em qual nação asiática que se passa a trama, apesar dele ter usado claramente Hong Kong como modelo de sua cidade, e muitos personagens bebem San Miguel, uma cerveja filipina que é a mais vendida da província.
Pode ser uma provocação do diretor, já que local mais quente para conflitos políticos e étnicos que Hong Kong, é difícil. Tá aí 2019 e 2020 que não deixam mentir.
A música em Ghost in The Shell
A trilha sonora é um espetáculo a parte em Ghost in The Shell, a animação.
A música do nascimento de Kusanagi toca na abertura, e no meio do longa, em uma série de tomadas corajosas com apenas o ambiente e cenários sendo mostrados na tela, para criar o clima introspectivo no qual a major Motoko Kusanagi está imersa.
Uma decisão corajosa e onírica de Oshii.
As letras da música Reincanation, também chamada de Making of a Cyborg, foram escritas em japonês antigo.
A autoria é do músico Kawai Kenji, compositor de música japonesa, filmes de anime, jogos eletrônicos e programas de televisão.
Segue a versão traduzida para o inglês.
A ga maeba, kuwashime yoinikeri
(Because I had danced, the beautiful lady was enchanted)
A ga maeba, terutsuki toyomunari
(Because I had danced, the shining moon echoed)
Yobai ni, kami amakudarite
(Proposing marriage, the god shall descend)
Yo wa ake, nuedori naku
(The night clears away and the chimera bird will sing)
A ga maeba, kuwashime yoinikeri
(Because I had danced, the beautiful lady was enchanted)
A ga maeba, terutsuki toyomunari
(Because I had danced, the shining moon echoed)
Yobai ni, kami amakudarite
(Proposing marriage, the god shall descend)
Yo wa ake, nuedori naku
(The night clears away and the chimera bird will sing)
Toh kami, emi tame
(The distant god may give us the precious blessing!)
Toh kami, emi tame
(The distant god may give us the precious blessing!)
Toh kami, emi tame
(The distant god may give us the precious blessing!)
Shakespeare sobreviveu a muitos surtos. Grande parte de seu trabalho foi composto, se não em confinamento, à sombra de uma doença altamente infecciosa sem cura conhecida.
Ninguém nas peças de Shakespeare morre de peste.
Romeu e Julieta, que morrem porque a carta do frade é retida por medidas de quarentena no norte da Itália, são os personagens que têm maior proximidade com a praga.
Há exceções da regra. Mas a exceção não pode ser considerada quando vem do maior escritor da história.
Em Ghost in The Shell é simplesmente obrigatório ver os créditos, pois é nela que toca a canção One Minute Warning, do músico e produtor Brian Eno e os irlandeses do U2. A música vem de um projeto chamado Original Soundtracks 1 (também conhecido como Original Soundtracks), um álbum de 1995 gravado por eles sob o pseudônimo de Passengers. É um conjunto de canções escritas em sua grande parte para filmes imaginários — menos, óbvio, para Ghost in the Shell, e mais dois filmes: Miss Sarajevo e Beyond the Clouds.
/// MAMORU OSHII. É a partir de 1980, quando mudou-se para o Studio Pierrot, que o diretor Mamoru Oshii se torna uma referência, com as realizações de Dallos, Tenshi no Tamago, Twilight Q, e os longa-metragens da série Patlabor. Todos são permeados por tramas e enredo um pouco mais adulto, cheio de esquemas políticos.
Depois que fez Ghost in The Shell, a obra “se multiplicou”. Há derivadas em outros filmes animados e séries de TV. Até mesmo Shirow chegou até mesmo a criar uma continuação para sua obra, chamada ManMachine Interface.
A maioria deles existem em universo e linha do tempo diferentes do que Oshii e Shirow fizeram.
/// MATRIX. Não é a toa que os irmãos (hoje irmãs) Wachowski copiaram muito da obra para construírem sua Matrix. Das telas pretas com caracteres e números verdes, do cenário cinza, personagens usando preto e óculos escuros, das cenas de ação (olá, melancia, eu te vejo), aos cabos de conexão na nuca, a obra de Shirow / Oshiii é o verdadeiro pai da Matrix (a mãe pode ser o longa-metragem Cidade das Sombras, de 1998, dirigido por Alex Proyas, com Jennifer Connelly).
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/// NA VIDA REAL. Scarlet Johansson fez a personagem principal em Ghost in the Shell – Vigilante do Amanhã (2017). No filme, ela não é chamada de Motoko Kusanagi, apenas de Major. O longa adapta parte da trama da animação de Oshii, mas com modificações.
/// NA FOLHA. Aqui, uma matéria da Folha de S. Paulo na época do lançamento do longa-metragem estrelado por Scarllet Johansson, com entrevistas de Mamoru Oshii e Masamune Shirow.
/// CORÍNTIOS. Segue a emblemática declaração do Mestre das Marionetes em determinada cena do longa: “Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança. Hoje vemos como por um espelho confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido.” – 1 Cor 13: 11-12
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