O selo Vertigo da editora DC Comics foi fundado em 1993 e teve um papel significativo na indústria de quadrinhos americana, especialmente no gênero de HQs voltadas para adultos, uma proposta liderada com sucesso pela editora Karen Berger, uma das mais proeminentes profissionais do mercado, figura-chave para que a linguagem, formato e prestígio se consolidassem na área.
Vertigo era conhecido por publicar títulos que exploravam temas mais maduros e complexos, como discussões sociais, filosofia, política, sexualidade, religião e violência, e que muitas vezes desafiavam as convenções do gênero de super-heróis. O selo já existia de modo informal desde 1988.
O sucesso de Vertigo abriu caminho para uma nova geração de criadores de quadrinhos, que se sentiram mais livres para explorar temas e estilos que antes eram considerados tabus ou inadequados para os quadrinhos convencionais. Muitos dos títulos se tornaram bastante conhecidos e influentes, aclamados pela crítica e público, com Sandman o título de maior repercussão do selo, publicado entre 1989 e 1996 e até hoje um dos quadrinhos mais vendidos no mundo.
Vertigo também teve um impacto significativo na cultura pop, com várias revistas adaptadas para filmes e seriados. Além disso, muitos dos autores que trabalharam para o selo Vertigo se tornaram importantes nomes na indústria — especialmente os escritores — e suas contribuições influenciaram a forma como os quadrinhos são escritos, desenhados e consumidos.
A editora Karen Berger dirigiu a chamada invasão britânica nas HQs americanas depois do enorme sucesso que Alan Moore promoveu na revista do Monstro do Pântano. Ela trouxe nomes até então desconhecidos como Neil Gaiman, Grant Morrison, Jamie Delano e Peter Milligan para reformularem diversos personagens em títulos situados após a megassaga Crise nas Infinitas Terras, um reboot com fins comerciais e editoriais para arrumar a 50 anos de histórias da editora.
A intenção era promover uma renovação de vendas e interesse de público nas propriedades da DC, e muitos de seus personagens tiveram a cronologia zerada, incluindo os maiorais da casa, como Superman e Mulher-Maravilha, e outros do menor escalão, como foi o caso de Sandman.
O que Karen conseguiu com seus ingleses mudou a cara dos quadrinhos da América: temas adultos, criatividade de roteiros de nível literário e artes em experimentações gráficas entraram nessa pequena porção da DC, uma empresa mainstream que publicava histórias infanto-juvenis, e nada mais seria como antes.
Por 20 anos, Karen Berger e seus comandados criaram algumas das melhores HQs do mercado. A quantidade de indicações e prêmios dados para Karen e seus autores foram incontáveis — vários Eisner, o “Oscar” dos quadrinhos.
Além de criar um espaço para quadrinhos mais maduros e complexos, o trabalho de Berger no selo Vertigo também influenciou a forma como as HQs são publicadas e promovidas. Ela foi uma das primeiras a adotar técnicas de marketing mais sofisticadas de promover os títulos e a criar eventos especiais para isso, estratégias posteriormente adotadas por outras editoras.
Pagamentos antecipados, lucro de revistas vendidas, direitos dos personagens dos autores, histórias com começo, meio e fim (aspecto completamente ausente na indústria de quadrinhos mainstream), todos dispositivos criados por Karen.
Nesta matéria do blog Destrutor vamos abordar como Karen Berger começou o selo Vertigo. Um prenúncio da qualidade do material foi quando uma resenha favorável publicada no jornal Washington Examiner se referiu ao selo como “Vertigo is by far the HBO of the comic-book world“.
A frase foi extraída e posicionada em artes promocionais da DC Comics como carimbo de excelência, já que a HBO trabalha com a nata de produções sofisticadas de produções televisivas americanas.
A HBO é uma emissora de TV de propriedade da Warner Bros. (também dona da DC Comics) que conseguiu revolucionar a linguagem televisiva por meio de seriados disruptivos a partir de 1999, como o criminal prisional OZ, o primeiro com 1h de duração, com temas pesadissímos, nudez masculina, estupros e grande violência gráfica; o criminal psicológico Sopranos; o policial The Wire; o medieval, violento e sexy Game of Thrones; o sombrio True Detective e muitos outros. Mas faça-se notar: todos esses temas, a Vertigo já trazia 10 anos antes.
Karen Berger e DC Comics
Nascida em 1958 nos Estados Unidos, Karen Berger nunca foi uma grande fã de histórias em quadrinhos quando criança, mas em 1979, logo após conseguir seu diploma em Literatura Inglesa e História da Arte, ela soube de uma oportunidade de trabalho na DC Comics, graças ao seu amigo J.M. DeMatteis, na época escritor de vários títulos da DC (e da Marvel também).
Ela conseguiu uma vaga administrativa para trabalhar como assistente de Paul Levitz, que editava alguns títulos da casa na época, como Batman, House of Mystery e House of Secrets. Esses dois “Houses” eram os títulos de terror da DC, heranças diretas do que as editoras EC Comics e a Warren já estavam fazendo há tempos pelo enriquecimento de temas do mercado americano de quadrinhos (obviamente com as limitações que uma empresa mainstream impõe, além do peso do Comics Code Authority, o famigerado conjunto de regras de autocensura que as editoras de quadrinhos promoviam).
Assim, Berger começa oficialmente a editar na DC Comics em 1981, aos 21 anos de idade. Sua primeira revista foi House of Mystery #292 (o artista Romeo Tanghal a desenhou na história).
Era uma época em que não havia muitas mulheres trabalhando no meio dos quadrinhos. Profissionais como Jenette Kahn (em breve a toda poderosa Presidente da DC na época) e Louise Simonson (editora na Marvel Comics) já estavam na ativa, mas ainda era uma indústria dominada por homens.
O fato de não ser uma fã de quadrinhos foi fundamental para Karen conseguir o trabalho com Paul, que não queria um nerd por perto. Era uma época em que a DC Comics estava apostando em títulos que fugiam um pouco da temática do super herói, um movimento capitaneado por Khan.
Sendo assim, tudo contribuiu para que Karen se relacionasse com as temáticas fantásticas e de mistérios que passavam longe das hiper-masculinizadas aventuras dos super-cuecas.
Em 1982, a DC publicou a maxissérie em 12 edições chamada Camelot 3000 (1982—1985). Com algumas cenas de nudez (!) e até sexo (!!), ela apresentava uma trama do mito do Rei Arthur na Terra do ano de 3000, que enfrenta uma iminente invasão alienígena.
As 12 edições da obra tem roteiro de Mike Barr e arte do desenhista britânico Brian Bolland, publicada em formato diferenciado, com papel de maior qualidade. E foi editada por Len Wein. Trata-se do primeiro produto mais sofisticado e adulto da DC.
Era a prova que a magia da Vertigo já estava no ar. No mesmo ano, no último número de House of Mystery #321, tivemos uma quebra da quarta parede com ninguém menos que a própria Karen Berger.
Ela e o editor executivo Joe Orlando surgem no história para avisar Caim, “protagonista” do título, que ele era apenas um personagem de quadrinhos, e que sua revista seria cancelada (também em 1982, J.M. DeMatteis, que estava na Marvel escrevendo a revista do Capitão América, fez Karen aparecer em uma história, publicada em Captain America #267, na arte de Mike Zeck).
Karen Berger começou a editar também Amethyst, Princess of Gemworld (uma heroína estilo mágica menos da DC) e o próprio chefe, Paul Levitz, que escrevia a revista Legião dos Super-Heróis. Ela começou como editora em Legion of Super-Heroes #294 (1982), naquela que é a maior história dos personagens, a Saga das Trevas Eternas (ela ficou por 20 números, até a revista ser relançada com nova numeração no pós-Crise, com 63 edições, também escritas por Levitz).
No início de 1984, Len Wein trouxe um desconhecido roteirista inglês para assumir as rédeas criativas da revista do Monstro do Pântano, dando a ele ampla liberdade direcionar como bem entendesse os rumos do personagem. Criado por Wein e Bernie Wrightson em House of Secrets # 92 (1971), o Monstro do Pântano é Alec Holland, um cientista que tem seu corpo transformado após um acidente com produtos químicos.
Ou assim pensávamos, até esse escritor inglês, chamado Alan Moore, assumir o título, em Swamp Thing #20 (1984). Ao contrário de Camelot 3000, Monstro do Pântano em uma revista de banca e, portanto, mais sujeita a regulação do Comics Code Authority.
Algo que Moore irá torcer, esticar e contornar das mais variadas maneiras, revolucionando o título junto com os artistas como Steve Bissette, John Totleben, Rick Veitch e outros. O escritor abordou temas como terror, mistério, ecologia, magia negra, sexo, crime e discussões sociais complexas. Era a pré-Vertigo nascendo.
Era sofisticado, com temas sombrios e pesados como terror, sexo e violência, e discussões mais elaboradas de problemas sociais e ecologia. O público que esse tipo de quadrinho pegava era mais amplo, de leitores mais maduros e adultos consumindo as revistas.
Karen Berger substituiu Len Wein como editora na revista a partir de Swamp Thing #25. Em Swamp Thing #31 (1984) tivemos a história “The Brimstone Ballet“, escrita por Moore, desenhada por Rick Veitch e com arte-final de John Totleben (cores de Tatjana Wood). Na capa, por Bissete e Totleben, temos pela primeira vez um banner informativo: “Sophisticated Suspense” (“suspense sofisticado“). Desde então, a DC deixou de submeter a revista ao Comics Code. Mais um sinal da Vertigo se formando.
Moore cria John Constantine (um mago inglês, baseado no visual do cantor Sting) em Saga of the Swamp Thing #37 (1985), e ele seria outra das peças-chaves da criação da Vertigo.
Em 1986, a DC faria o seu reboot Crise nas Infinitas Terras. Paralelo a isso, a editora mudaria para sempre a indústria com duas obras seminais dos quadrinhos de super-heróis.
Batman – O Cavaleiro das Trevas, minissérie de 4 edições escrita e desenhada por Frank Miller, mostrou uma trama urbana sombria, violenta e revolucionária em uma Gotham City do futuro, com um Batman velho saindo da aposentadoria, e Watchmen, escrita por Alan Moore, com desenhos de Dave Gibbons, uma maxissérie de 12 edições, em uma trama geopolítica complexa de super-heróis em uma hiperestrutura narrativa impensável (nunca igualada).
Ambas foram lançadas em formato prestige (estilo comum para livrarias, e não banca de jornal), tiveram editores como Len Wein, Dick Giordano e Dennis O´Neil, mas saíram sob a tutela editorial de Karen Berger. Essa experimentação sofisticada de oferecer materiais mais adultos para o público consumidor de quadrinhos foi inovador e deu bases para que o viria depois na Vertigo.
Moore escreveu 46 edições do Monstro do Pântano (Swamp Thing #32-64, 1982-1987). E sua obra abriu as portas da percepção e possibilidades para o que os quadrinhos poderiam ser. Não que essa porta não estivesse já aberta.
Em 1982, a Marvel Comics, sob o comando do editor Archie Goodwin, criou o selo Epic Comics, que trazia trabalho autoral com diversos temas e propostas para dentro da casa do Homem-Aranha, X-Men e cia. Era a resposta da gigante Marvel para o mercado independente e underground, que estava captando toda uma geração de leitores mais velhos e ávidos pelo diferente.
Além de tudo, era a Marvel abrindo um pouco a carteira, com as obras sendo de direitos dos autores e não da editora propriamente dita. A ideia da Epic Comics veio da Epic Illustrated, revista da Marvel em formato magazine que teve 34 edições publicadas de 1980 a 1986.
Eram histórias sofisticadas com desenhos mais elaborados e tramas mais adultas, em uma proposta muito parecida com a Metal Hurlant, publicação europeia, a primeira do gênero no mercado de quadrinhos. A Marvel a lançou para pegar carona com a Heavy Metal, a versão americana da Hurlant, que já estava nas bancas.
Epic Illustrated tinha arte preto e branco, pintura e quadrinhos de artistas como Frank Frazetta, Richard Corben e Bernie Wrightson. Muito dela veio para a Epic Comics, que de certa maneira, foi uma pré-Vertigo.
Tanto que uma das inspirações de trabalhos para Moore foram 2 HQs do artista Rick Veitch publicadas lá. Uma foi a graphic novel Heartburst, um romance espacial, publicada em Marvel Graphic Novel #10 (1984), e The One (1985-1986), uma minissérie em 6 edições sobre uma aventura bizarra envolvendo super-heróis monstruosos, Guerra Fria e evolução espiritual (influência direta para Watchmen, segundo o próprio Moore), ambas pelo selo Epic Comics.
Mas a Vertigo chegaria a um nível de complexidade e prestígio que a Epic Comics jamais alcançou. E para isso, Karen Berger contou com mais autores ingleses.
Karen contou com as bênçãos da Presidente da DC Jenette Khan para ir para o Reino Unido para ver se havia mais autores como Alan Moore por lá. E havia. Principalmente por conta que um dos grandes diferenciais dos autores de quadrinhos da Europa eram que desenvolviam HQs sem a amarra castradora do Comics Code, inexistente por lá.
Por isso a produção rica e variada presente em revistas como Warrior, 2000 AD e histórias elaboradas com personagens como Juiz Dredd e Miracleman.
Berger estava acompanhada de Dick Giordano, outro gigante das HQs — desenhista, arte-finalista e agora editor na DC. E ambos encontraram (com algumas indicações de Moore) um jovem jornalista, Neil Gaiman, e um motorista de caminhão, Jaime Delano, na Inglaterra; um roqueiro travesti, Grant Morrison, vindo da Escócia; um fanático por guerras, Garth Ennis, da Irlanda do Norte; Peter Milligan e muitos outros.
E todos eles tinham algo que Karen Berger identificou como potenciais talentos para histórias com o diferencial que procurava. Karen queria fazer coisas diferentes nos quadrinhos e ajudar a mídia a crescer.
A Crise nas Infinitas Terras deu tábula rasa para os criadores na maioria dos personagens da DC. O artista John Byrne ia começar o Superman do zero, assim como a Mulher-Maravilha com o artista George Pérez (Karen foi a editora dos 62 números dessa nova Mulher-Maravilha), além de outros projetos similares, como o Batman Ano Zero, escrito por Frank Miller e desenhado por David Mazzucchelli, minissérie em 4 edições que recontou a origem do Homem-Morcego.
Karen ofereceu alguns personagens e escutou sugestões de seus recém-contratados sobre os personagens que queriam trabalhar. Por exemplo, Neil e Grant queriam o Vingador Fantasma, um misterioso ser místico que perambulava pelo Universo DC (criado por John Broome e Carmine Infantino em 1952 em um título próprio), mas ele já estava em um projeto com o editor e escritor Paul Kupperberg.
Na minissérie Phantom Stranger #1-4 (1987), desenhada pelos artistas Mike Mignola (no primeiro trabalho do artista para a DC) e P. Craig Russell, o Vingador Fantasma está em um trama macabra contra o vilão Eclipso que tenta destruir o mundo. A ex-heróina Valentina Vostok como coronel da Agência (órgão secreto do governo de supervisão dos meta-humanos) tenta ajudar o Vingador, que está sem poderes na história.
O Vingador Fantasma já era um peso-pesado do universo místico há muitos anos, e já tinha sido usado em histórias do Monstro do Pântano do Moore, e futuramente nas revistas do Senhor Destino, do J.M. deMatteis e o Espectro, de Doug Moench.
Os Desafiadores do Desconhecido, protótipo do Quarteto Fantástico, criado pelo Rei Jack Kirby, também estavam na mira deles, mas não disponível também (Jeph Loeb e Tim Sale fariam um especial com ele em 1991).
Neil Gaiman tinha 26 anos, publicado alguns livros (uma biografia da banda de new wave Duran Duran) e junto com um estudante de arte de 22 anos, Dave McKean, criou Violent Cases (1987), publicado pela editora Scape Books. Anos antes de ter contato com Karen, Gaiman tinha lido uma edição do Monstro do Pântano de Moore, que caiu por acaso em suas mãos. Ele entendeu a potência da mídia. Decidiu procurar Alan em pessoa, e os dois ficaram amigos. E Neil Gaiman aprendeu a arte de roteirizar HQ com ele.
Era um talento nato até então adormecido. Sem poder ter o Vingador, levantou outros nomes. Falou do Etrigan, mas Matt Wagner iria trabalhar com ele. Perguntou do Arqueiro Verde, mas Mike Grell iria reformulá-lo. Até Canário Negro, Klarion e Povo da Eternidade estavam ocupados.
Então Neil Gaiman foi mais fundo, e escolheu uma personagem das mais obscuras da DC: Orquídea Negra, no original, Black Orchid, heroína criada por Sheldon Mayer e o desenhista filipino Tony DeZuniga em Adventure Comics #428 (1973).
Quando Karen viu os roteiros de Neil, com desenhos de Dave McKean, desse projeto, viu que era tão bom que a obra sairia em formato prestige. Mas como Gaiman ainda era um novato no mercado, precisava de outro material para que desse estofo a esse pulo editorial, para ser mais conhecido — o mesmo ocorreu com McKean, que acabou ilustrando a graphic novel Asilo Arkham (escrita por Grant Morrison).
Karen pediu que Neil escolhesse mais um personagem para recriar. No meio de tantos, o escritor optou por Sandman, criado originalmente como Wesley Doods, um vigilante de máscara, escrito por Gardner Fox e desenhado por Bert Christman, que estreou em New York World’s Fair Comics #1 (1939), e depois reformulado por Joe Simon e Jack Kirby (os pais do Capitão América da Marvel Comics) em The Sandman #1 (1974), em uma pegada bem mais super-herói.
Seguindo as orientações de Karen, que queria mais um título de terror, tal qual o Monstro do Pântano de Moore, Neil Gaiman radicalizou e começou tudo do zero, com apenas o nome do personagem.
Em sua longa jornada ao reino etéreo da ficção, Sandman discute temas de aventuras em cima de literatura fantásticas a William Shakespeare, de eventos reais como a Revolução Francesa a interações com personas e conceitos fantásticos retrabalhados de várias religiões, e mais importante, dos anseios e angústias que nos tornam humanos, refletidos especialmente na família de Morpheus, os Perpétuos, que assim como todos, são disfuncionais e cheios de problemas.
Ao longo de 75 edições da série mensal, somos apresentados aos mais variados assuntos abordados de maneiras criativas, numa narrativa que realmente transcende gêneros e definições.
Grant Morrison estreou na editora com Homem-Animal (1988). Nele, o autor tratou de maneira inédita temas como ecologia, consumo de carne, vegetarianismo e direitos dos animais, e a despeito da relação óbvia com o nome de personagem, também fez uma das melhores aventuras de super-heróis de todos os tempos.
Mas o tema principal de Grant seria outro: a metalinguagem, ao ir mais longe ainda, ao SE inserir nas histórias em uma iniciativa poucas vezes vistas no mercado — pelo menos o americano. Após diversas histórias criativas em aventuras comuns à atividade de super-herói, como combates com criminosos, viagem no tempo, interação com outros heróis e outras situações típicas do gênero, o Homem-Animal pouco a pouco começa a perceber a natureza fantástica onde “vive”.
Jamie Delano com Hellblazer (1988), uma revista dedicada ao John Constantine, com aventuras cruéis, ácidas e totalmente humanas de um homem atormentado por demônios internos e externos, e Peter Milligan, com Shade – O Homem Mutável (1990), sobre loucura e surrealismo em uma crítica feroz aos costumes americanos em uma nova visão sobre um personagem clássico criado por Steve Ditko.
Morrison também assumiria a Patrulha do Destino em Doom Patrol #19 (1989), no lugar de Paul Kupperberg, e ficou até o número #63 (1992). Ele fez 45 histórias das mais mais piradas que conseguiria, já que ele mesmo admite que tomava ácidos na hora de escrever os roteiros.
A equipe enfrentava ameaças bizarras como inimigos que recortam a realidade (!), uma rua viva travesti (!!) e uma irmandade de dadaístas que sugam Paris para dentro de um quadro (!!!). Grant usou sonhos de amigos, desgostos de livros que leu quando criança, contos infantis, tudo numa escrita automática ao acaso, palavras desconexas e viagens mentais malucas do autor.
Com efeito, em Superdeuses (2012), o livro que Grant Morrison escreveu, ele diz:
embora cada quadro isolado parecesse posado e anguloso, os personagens eram cheios de vida e carregado de significado. Eles interagiam conosco: nos faziam rir, chorar, sentir medo, ansiedade, entusiasmo. Eram personagens vivos, e sua realidade era o papel e a tinta. Que mundo real era essa fatia de papel do Universo DC vivo? Um universo 2D, escondido de todos, crescendo e respirando numa estranha relação simbiótica com seu público no mundo “não-ficcional” logo acima.”
Com isso, antes mesmo da década oitentista acabar, antes mesmo do selo Vertigo estrear, eles já fariam parte da História das Histórias dos Quadrinhos.
Vertigo: 1993
Em 1992, quando retornou de uma licença pós-maternidade, Karen Berger foi surpreendida em uma reunião com Jenette Kahn, o editor-chefe Paul Levitz e o diretor de redação Dick Giordano. O trio decidiu dar para Berger um selo próprio de quadrinhos. O sucesso dos títulos que ela editava era inegável.
A firma de design Brainstorm Unlimited foi contratada para criar uma marca específica para essas publicações. Nomes Screamer Room, Night Side e Trashhold foram considerados, mas deixados para trás quando encontraram Vertigo.
O selo Vertigo começou oficialmente quando vários dos títulos que tinham criado todo o mood editorial já estavam bem avançados. A nova marca saiu em Shade, the Changing Man #33 (com Milligan), The Sandman #47 (com Gaiman), Hellblazer #63 (com Garth Ennis no lugar de Jamie Delano), Animal Man #57 (Jamie estava aqui), Swamp Thing #129 (com Nancy A. Collins) e Doom Patrol #64 (com Rachel Pollack, já sem Grant Morrison, que saiu na edição anterior).
Mesmo antes de ostentarem o selo Vertigo, esses 6 títulos traziam o banner informativo “Suggested for Mature Readers” (“Sugerido para leitores mais velhos“), algo que já estava no embrião da Vertigo em experimentações na própria DC Comics.
Uma deles foi na minissérie em 3 edições Green Arrow – The Longbow Hunters (1987), escrita e desenhada por Mike Grell. No caso, esse especial do Arqueiro Verde foi o primeiro no formato prestige após o sucesso do Cavaleiro das Trevas e Watchmen do ano anterior.
O primeiro número da revista do Arqueiro Verde após o especial The Longbow Hunters, Green Arrow #1 (1988), que continuava a trama, já trazia o banner “Suggested For Mature Readers“, algo que o gibi do Questão já trazia desde o número #8 (1987).
Grell deslocou o Arqueiro Verde para Seattle e fez histórias de vigilantismo ao nível mais urbano e realístico possível, superando até o Batman nesse quesito. O Arqueiro enfrentava marginais, sádicos, políticos corruptos e mafiosos.
Era o mesmo nível de operação que o Questão fazia em sua revista, comandada por Dennis O´Neil no roteiro e Denys Cowan na arte, com o acréscimo de uma “filosofia zen-budista violenta” própria do personagem.
Esses dois materiais eram editados por Mike Gold, portanto não foram abraçados pela Vertigo, apesar dos moods similares entre as propostas. De qualquer maneira, eles também figuram entre as melhores histórias em quadrinhos da DC Comics nos anos 1980.
Numa época em que quase todos os nomes famosos nos quadrinhos eram de desenhistas e a maioria das companhias estava pondo a arte acima da história (a Image Comics já estava na área desde 1992), a Vertigo foi a única linha de quadrinhos a pôr os roteiristas em primeiro lugar.
Apesar de todas as publicações iniciais estarem fortemente ligadas aos cenários e personagens tradicionais da DC, com o tempo eles foram se distanciando, e os super-heróis tradicionais começaram a aparecer cada vez menos. Em seu lugar, HQs de horror, fantasia, crime, discussão social, ficções científicas (e especulativas) e outros gêneros.
Karen Berger acabaria por editar os 75 números de Sandman, 56 do Monstro do Pântano, 50 do Shade, 40 do Hellblazer, além de dezenas de outros e obras “menores”, como as 6 primeiras edições de L.E.G.I.O.N.´89 (que trazia o conceito da Legião dos Super-Heróis para os dias atuais do Universo DC) e a minissérie The Weird (1988), escrita por Jim Starlin e com desenhos de Bernie Wrightson (e arte-final de Dan Green).
A primeira obra sob o selo Vertigo foi Death: The High Cost of Living (1993), um spin-off com uma das mais queridas personagens de Sandman, a Morte, escrita pelo próprio Gaiman e desenhada por Chris Bachalo.
Também teve Livros da Magia (com Tim Hunter, o “Harry Potter original”), escrita por Gaiman e desenhada por John Bolton, Scott Hampton, Charles Vess e Paul Johnson, 2 minisséries do Kid Eternity — a primeira com Grant Morrisson e arte de Duncan Fregedo, e a segunda com roteirista Ann Nocenti (vinda do enorme sucesso que obteve na Marvel, com uma passagem de destaque no Demolidor e como editora dos X-Men, nas fases que tornaram os personagens gigantes nos quadrinhos) e o artista Sean Philips.
Muita coisa saiu na estreia da Vertigo. Sandman: Mystery Theatre, escrita por Matt Wagner e Steven T. Seagle, com arte (na maioria das vezes) de Guy Davis, com aventuras noir cheia de crimes com Wesley Dodds nos anos 1930; Jonah Hex: Two-Gun Mojo, pelo escritor e desenhista Tim Truman (que revitalizou o Gavião Negro no pós-Crise, um material sofisticado tal qual o Arqueiro de Grell e o Questão de Dennis e Denys); uma pequena série da Orquídea Negra, escrita por Dick Foreman e desenhada por Jill Thompson, que continua as aventuras de Gaiman, mesma situação do Livros da Magia, dessa vez com John Ney Rieber no roteiro e Peter Gross, Gary Amaro e Peter Snejbjerg na arte; e muitas outras.
Foi apenas o vislumbre de obras que mudariam os quadrinhos para sempre.
Os Invisíveis (1994–2000), de Morrisson e vários artistas (destaque para Jill Thompson) era uma trama conspiracionista e lisérgica cujas ideias foram vistas (copiadas, tá?) no filme The Matrix.
Os Invisíveis, naquela que seria sua obra seminal.
Diz Grant em Superdeuses:
Decidi fazer uma série em que eu pudesse conter e abordar todos os meus interesses. Eu já tinha esse vago conceito de um longo thriller oculto-conspiratório que se passase no mundo real, no presente. Folheei o sempre confiável Brewer´s Dictionary of Phrase and Fable em busca de nomes estranhos de personagens, e ideias interessantes, e foi assim que descobri o nome Os Invisíveis e os nomes de muitos personagens principais (…) todos os personagens eram parte de mim misturadas a gente que eu conhecia.”
Os Invisíveis eram um grupo nada convencional de personagens que lutam contra uma sociedade secreta. Grant usou referências de Beatles, Marquês de Sade, a família real da Inglaterra, a Revolução Francesa, psicodelia, vodu, magia, viagens no tempo, meditação, mitologia asteca e diversos outros elementos culturais, de um jeito inédito nas HQs.
Mais ainda: Grant criou a primeira transsexual protagonista de uma história em quadrinhos: Lord Fanny. Ela é a identidade secreta de Hilde Morales, descendente de mexicanos nascido no Rio de Janeiro, neto de uma bruxa que o criou como menina.
Também tivemos Preacher (1995–2000), de Garth Ennis e Steve Dillon, uma inacreditável jornada cristã profana em temática faroeste; o futurista e certeiro Transmetropolitan (1997–2002), escrito por Warren Ellis e ilustrado por Darick Robertson, com as aventuras do jornalista Spider Jerusalem; 100 Balas (1999–2009), de Brian Azzarello e Eduardo Risso, com a melhor trama policial-criminal dos quadrinhos; Lucifer (2000–2006), de Mike Carey, Peter Gross e Ryan Kelly, com o capeta vindo diretamente das páginas de Sandman; Y: O Último Homem (2002–2008), de Brian K. Vaughan e Pia Guerra, com um futuro apocalíptico onde não há mais homens no mundo; e o criativo Fábulas (2002–2015), de Bill Willingham, Mark Buckingham e outros, sobre o mundo das fadas nos tempos de hoje.
Até o Alvo Humano saiu pela Vertigo, em Human Target #1–5 (1999), escrito por Peter Milligan com arte de Javier Pulido, com as aventuras de Christopher Chance, um guarda-costas que assume a identidade de pessoas marcadas para morrer para descobrir quem é o assassino contratado.
O personagem é um clássico da Era de Ouro da DC: surgiu em Detective Comics #201 (1953), criado por Edmond Hamilton e Sheldon Moldoff, e teve várias versões na editora. Milligan ainda fez mais uma graphic novel do personagem e escreveu uma série regular de 21 números, que acabou em 2005, todos sob o selo da Vertigo.
Em 2006 saiu Sandman: Endless Nights, uma inesperada retomada de Gaiman do Sandman, em um especial que focou nos Perpétuos. As artes ficaram por conta de P. Craig Russell, Milo Manara, Miguelanxo Prado, Barron Storey, Dave McKean, Bill Sienkiewicz e Frank Quitely. A Vertigo também publicou um especial do Sargento Rock, clássico personagem de guerra da editora: Sgt. Rock – Between Hell & A Hard Place (2006), pelo artista Joe Kubert.
Grant Morrison também fez outros trabalhos de destaque além do Homem-Animal, Patrulha do Destino e Os Invisíveis, como Sebastian O (1993); The Mystery Play (1994); Kill Your Boyfriend (1995); Flex Mentallo (1996), um spin-off da Patrulha do Destino; Seaguy (2004); Vimanarama (2005); We3 (2004–2005); Joe The Barbarian (2010); The Filth (2002–2003) e muitos outros. Morrisson também colaborou com o escritor Mark Millar em 5 números do Monstro do Pântano.
Peter Milligan já tinha alguns trabalhos publicados na inglesa 2000 AD e nas editoras americanas Pacific Comics e Eclipse Comics. Ele escreveu 70 números de Shade, mas antes da Vertigo existir escreveu para a DC a minissérie Skreemer (1989), com desenhos de Brett Ewins, uma história sobre um mafioso em um futuro distópico. Também escreveu The Extremist (1993), Tank Girl: The Odyssey (1995), Egypt (1995–1996), Girl (1996), The Minx (1998–1999) e Vertigo Pop!: London (2003).
Garth Ennis também escreveu Goddess (1995–1996); Pride & Joy (1997); Unknown Soldier (1997), sobre as missões do Soldado Desconhecido; Adventures in the Rifle Brigade (2001–2002), bem como a série regular War Stories (2001-2003).
Jamie Delano escreveu as aventuras de Constantine desde 1988, mas deixou a série em 1991, antes da Vertigo surgir. Mas era ele o escritor de Animal Man #57 quando o selo surgiu, ficando até o #79 (1992–1995). Fez também Tainted (1995); Hell Eternal (1998); Ghostdancing (1995); Cruel and Unusual (1999); 19 números de Outlaw Nation (2000–2002); a maxissérie 2020 Visions (1997–1998); Hellblazer: The Horrorist (1995–1996) e Hellblazer Special: Bad Blood (2000).
Brian K. Vaughan escreveu 20 números de um relançamento do Monstro do Pântano em 2000 e fez uma premiada graphic novel que saiu pela Vertigo, Pride of Baghdad (2006), lançada no Brasil como Os Leões de Bagdá, sobre os leões soltos na capital iraquiana (!) por conta da Guerra do Iraque (2003).
Jill Thompson é uma das maiores artistas que a Vertigo teve, e ela também co-escreveu muitas revistas. Sua arte estava em Sandman #47, quando a revista estreou com o selo Vertigo; fez The Little Endless Storybook (2001); os “mangazóides” Death: At Death’s Door (2003) e The Dead Boy Detectives (2005); pintou a continuação da Orquídea Negra; Finals (1999) e outros.
O artista Jon J. Muth também produziu para a Vertigo. Fez o penúltimo número de Sandman (#74); The Mystery Play (1994), o one-shot Swamp Thing: Roots (1998), Lucifer: Nirvana (2002) e outros.
Importante citar que 2 grandes obras de Muth publicadas pela Epic Comics foram trazidas para a Vertigo: a maxissérie Moonshadow, de 1985, e a minissérie Blood: A Tale (Um Conto de Sangue), de 1988, com arte conjunta de Kent Williams, ambos escritos por J.M. DeMatteis. As duas foram relançadas em 1994 e 1998 pelo selo de Karen Berger, respectivamente. Vale citar que os dois artistas também fizeram Wolverine e Destrutor – Fusão (1988), uma minissérie de 4 edições, também pela Epic.
A arte de Charles Vess acompanhou Gaiman no número final de Sandman (#75), Stardust (1997–1998) e outros. O artista Sean Phillips desenhou as 16 edições de Kid Eternity (1993–1994), fez quase todas as capas (23) da primeira série de Os Invisíveis, o one-shot Hell Eternal (1995) e outros também. John Bolton fez Sandman Presents: The Furies; Os Livros de Magia; o anual de Sandman Mystery Theatre e outros.
Há muitos artistas que merecem ser citados para o sucesso da Vertigo: Dan Brereton, Tim Bradstreet, Duncan Fegredo, James Jean, Dave Johnson, J. G. Jones, Mark Buckingham, Guy Davis, James Jean, Phil Jimenez, Jock, Warren Pleece, Liam Sharp e muitos outros.
Brian Bolland e Glenn Fabry fizeram capas icônicas para a Vertigo, sendo que o último ficou muito famoso com as capas de Preacher, algumas de Transmetropolitan e das revistas estreladas por John Constantine.
Já Bolland se notabilizou pelas 63 capas do Homem-Animal (fez apenas 6 quando o selo Vertigo surgiu), e muitas da Patrulha do Destino e Os Invisíveis, além dos especiais encadernados dessas HQs.
Karen Berger deixou a seção de cartas das revistas para trás em certo momento — uma das maiores tradições do mercado americano de quadrinhos — em favor da criatividade das histórias em espaço integral para os autores usarem como bem entendessem. Abaixo, você confere as palavras da própria Karen Berger a respeito.
Obviamente, Karen Berger, enquanto editora da Vertigo, não leva o mérito sozinha. Ela foi ajudada de perto por sua equipe de editores. Em especial Shelly Bond, que se tornou seu braço direito por anos. Entre os outros editores estavam Tom Peyer, Will Dennis, Jonathan Vankin e Axel Alonso (que editou os números iniciais de 100 Balas e o run final de Garth Ennis em Preacher. Ele sairia da DC para a Marvel e faria um interessante trabalho editorial na linha dos X-Men).
“O selo Vertigo de Karen Berger foi apresentado e cresceu como um nicho para ‘leitores maduros’ separado do Universo DC ‘censura livre’. Os contratos da Vertigo davam aos autores uma porcentagem de suas criações e a possibilidade de lucrar com sua exploração de formas que Siegel e Shuster (os criadores de Superman) ou Jack Kirby (o co-criador do Universo Marvel) não poderiam ter sonhado“, diz Grant Morrison em seu livro Superdeuses.
“(Karen) fora recompensada com seu próprio selo, em que conteúdos e novas ideias mais contemporaneas podiam ser gerados à distância do Universo DC, com sua continuidade monolítica e seus personagens encapuzados que remontavam à uma época e atitudes que quase nenhuma pessoa viva conseguia lembrar ou entender. Fantasia, sci-fi, gótico e político era in, os super-heróis estavam out“, diz em outro trecho.
A mais longa série da Vertigo foi Hellblazer, que durou 30 anos: alcançou o número #300 (2013).
Mas Karen Berger já tinha saído da Vertigo.
Vamos a isso agora.
Karen Berger e o fim da Vertigo
Tudo começou a mudar a partir de 2009. Foi o ano que a gigante do entretenimento Disney comprou a Marvel, um ano depois da editora se aventurar nos cinemas com o primeiro Homem de Ferro (2008), um grande êxito de público e crítica.
A Warner então anunciou uma grande reestruturação na DC Comics. Foi criada a DC Entertainment, presidida pela toda poderosa Diane Nelson (a executiva responsável por levar a franquia literária Harry Potter aos cinemas), e que passou a comandar todos os negócios da editora.
Isso foi o catalisador das enormes (e péssimas) manobras editoriais dentro da DC, que acabaria com um novo reboot.
Diferente da Crise nas Infinitas Terras, que teve um trabalho mais cuidadoso com as propriedades, com autores de qualidade envolvidos, a DC promoveu Os Novos 52, que jogou 80 anos de histórias e cronologia no lixo a favor de um line-up de heróis rejuvenescidos (e outros nem tanto) em um novo Universo DC.
Nada do pós-Crise valia mais. Entre os milhares de efeitos colaterais, as poucas (e boas) aventuras da Vertigo resvalando no Universo DC tradicional foram apagadas a favor de aumentar as vendas e trazer uma nova geração de leitores.
Personagens tradicionais da Vertigo, como Monstro do Pântano e John Constantine, foram parar nesse novo Universo DC dos Novos 52, portanto, fora do selo. Enquanto uns mudaram de casa, sucessos como DMZ, 100 Balas, Fábulas, iZombie, Escalpo e Y: O Último Homem foram extintos.
As mudanças eram até mesmo físicas: a redação da editora DC Comics saiu da tradicional sede em Nova York, na Costa Leste, e foi pra Burbank, Califórnia, na Costa Oeste, lar da matriz Warner Bros., que, aliás, finalmente pôs sua máquina cinematográfica para trabalhar: começou a fazer filmes dos super-heróis dos quais era dona.
O primeiro foi Lanterna Verde (2011), dirigido por Martin Campbell (explicitamente por dinheiro), estrelado por Ryan Reynolds. Uma verdadeira bomba. O seguinte foi O Homem de Aço (2013), de Zack Snyder, que pouco entendeu o perosnagem. Já se podia ver o que as novas mudanças traziam.
Nos últimos anos, Karen Berger tinha o cargo de editora-executiva e vice-presidente da linha de quadrinhos adultos.
Mas viu seu poder diminuído, sendo obrigada a se reportar para Bob Harras, o novo editor-chefe da DC Comics, e não mais pra presidente Diane Nelson.
No final de 2012, Berger anunciou que estava saindo da Vertigo e da DC Comics.
“Estou extremamente orgulhosa por ter fornecido uma casa para escritores e artistas poderem criar histórias modernas e provocativas, que ampliaram os horizontes dos quadrinhos e atrairam novos e diversos leitores para essa mídia. Quero agradecer imensamente aos talentosos criadores que ajudaram a fazer da Vertigo um selo único e diferente e sou agradecida a todos da DC Entertainment e à comunidade de lojistas por nos apoiarem todos esses anos”, disse em comunicado oficial.
Diane Nelson agradeceu a dedicação por todo esse tempo. “Somos muito agradecidos pelo comprometimento e dedicação da Karen e todos os projetos e talentosas equipes com quem ela trabalhou. Na Vertigo, ela deixa um legado que permanecerá e com o qual queremos construir o futuro. Ela sempre será uma querida e respeitada parte da família da DC“.
“A empresa (DC) mudou e ficou claro que as prioridades também. Os gibis com foco nos criadores não eram mais algo em que eles estavam interessados. Claro, sei que os super-heróis ainda alimentam a indústria, obviamente. Mas existe toda uma cena independente, com editoras como a Image, da Dark Horse, a IDW, a BOOM!, fazendo um trabalho fenomenal”, disse Karen Berger em uma matéria do site de notícias da cultura pop Vulture, em 2016, por ocasião do lançamento de Surgeon X, um título que ela editou pela Image Comics.
Karen Berger ficou mais de 30 anos na editora DC Comics, tempo que nem os velhos editores da Era de Ouro, como Julius Schwartz, conseguiram.
Em um perfil do jornal New York Times, em 2013, Karen disse:
“A DC e a Marvel se tornaram empresas de super-heróis controladas por estúdios de cinema”.
Vertigo Pós-Karen Berger
A bomba de tocar a Vertigo ficou pra Shelly Bond, a editora-assistente de Karen desde o começo do rolê em 1993. Ela sofreu a pressão da nova direção corporativa para transformar as franquias da Vertigo em filme, série de TV, o McCombo completo. Em 2016, a DC “reestruturou” o selo e ela saiu também.
Shelly foi para a IDW Publishing, onde cuidou de um selo estilo Vertigo, o Black Crown. Atualmente ela cuida do Off Register, um projeto editorial via financiamento coletivo. Um dos que parecem mais interessantes é Filth & Grammar, onde Shelly explica seu processo criativo no trabalho com quadrinhos.
Tivemos então Gerard Way comandando um selo chamado Young Animal, pegando onda em mais um reboot que a DC fez, o Renascimento, que trouxe aspectos do Pós-Crise para os Novos 52, tentando agradar fãs que deixaram de comprar os novos quadrinhos e tornando o Universo DC ainda mais confuso, com a máxima mais desonesta de todas: “tudo é canône“.
Vale citar que Way é o escritor de The Umbrella Academy, gibi desenhado pelo artista brasileiro Gabriel Bá (série vencedora do prêmio Eisner), publicado pela Dark Horse. Mas ele com certeza é mais conhecido por ser vocalista e líder da banda emo My Chemical Romance.
Grant Morrison é o vilão do clipe de uma música deles, Na Na Na, canção do disco Danger Days: The True Lives of the Fabulous Killjoys (2010).
Way escreveu uma nova revista da Patrulha do Destino com desenhos de Nick Derrington. Também teve Shade – The Changing Girl, escrito por Cecil Castellucci, desenhado por Marley Zarcone e capas ilustradas por Becky Cloonan; Cave Carson has a Cybernetic Eye, com textos de Way e Jon Rivera, e arte de Michael Avon Oeming; e Mother Panic, com roteiros de Jody Houser, desenhos de John Paul Leon e capas de Tommy Lee Edwards.
Vale mencionar Gerard Way por outro insight nível “HBO dos quadrinhos” que ele fez. Em um tweet por conta da ocasião da saída dela em 2012, disse que “Karen Berger deu aos garotos perdidos do fundo da sala uma SubPop dos quadrinhos.”
A SubPop é uma gravadora independente de Seattle, Washington, famosa por revelar bandas como Nirvana, Soundgarden, The Jesus and Mary Chain, L7, Mudhoney, Sunny Day Real Estate e até os brasileiros do Cansei de Ser Sexy, entre muitas outras.
Quem assumiu o lugar de Bond foi Jamie S. Rich, que ficou só 1 ano no cargo. Mark Doyle ficou em seu lugar, e anunciou um relançamento da linha Vertigo com 11 novos títulos planejados.
Em 2018, por ocasião do aniversário de 25 anos do selo foi divulgado novidades como a linha The Sandman Universe, retomando o universo criado por Neil Gaiman, e um novo logotipo, agregando o “DC” ao nome do selo.
O especial The Sandman Universe, escrito por Gaiman, Nalo Hopkinson, Kat Howard, Si Spurrier e Dan Watters, com desenhos da artista brasileira Bilquis Evely e capa de Jae Lee, apresentou os conceitos abordados nas revistas House of Whisperes, Books of Magic, The Dreaming e Lucifer, os outros títulos desse projeto.
Mas não deu tempo para isso se estabelecer direito. Em junho de 2019, a DC Comics anunciou sua mais drástica mudança editorial.
A Vertigo, bem como a DC Zoom (linha de gibis para crianças) e a DC Ink (revistas para adolescentes) seriam extintas.
E suas obras seriam reacomodadas em novos selos.
Agora a DC Comics teria a DC Kids (idade de 8 a 12 anos), DC (para maiores de 13, sendo que os títulos da cronologia regular da linha de super-heróis estariam todas aqui) e o DC Black Label, destinado para maiores de 17 anos — o que fosse de material mais adulto e sofisticado, e tudo que a Vertigo era, seria publicado por esse selo.
Abaixo, duas edições de Sandman com o selo DC Black Label e outro ainda com o Vertigo (claramente um erro editorial/impressão).
O que Neil Gaiman achou do fim da Vertigo (tweet):
“É definitivamente o fim de uma Era. É estranho para mim: Sandman existiu antes da Vertigo, e agora vai estar lá depois que acabar. Eu estou muito orgulhoso do que a Karen Berger e Shelley Bond e o resto de nós fizemos. O legado sobreviverá ao rótulo.”
O que Karen Berger achou do fim da Vertigo (tweet):
“Pensamento corporativo & riscos criativos não se misturam. O cancelamento da Vertigo pela DC era algo esperado há tempos. Mas hey, nós mudamos o jogo e nos divertimos muito fazendo isso! Honrada de ter trabalhado com tantos criadores incrivelmente talentosos e editores. Obrigado a todos os leitores fabulosos.”
Vertigo: filmes e seriados
Vertigo rendeu vários filmes, alguns de muito sucesso e prestígio, enquanto que outras bem controversos (ruins mesmo).
Temos o já citado filme do Monstro do Pântano, Swamp Thing (1982), baseado nas histórias de Len Wein e Bernie Wrightson. Ele vale a citação, ainda que tenha saído em um contexto pré-Vertigo (e ainda que o longa seja uma bomba, dirigida por um mestre do cinema de terror, Wes Craven, criador da cinessérie A Hora do Pesadelo).
Com o sucesso das edições capitaneadas por Karen Berger ao longo de todos os anos 1980, houve ainda mais uma tentativa para deixar o Monstro do Pântano em evidência, com The Return of Swamp Thing (1989), dessa vez dirigida por Jim Wynorski. Infelizmente, foi uma bomba ainda pior que a primeira.
O primeiro sucesso da Vertigo mesmo foi Constantine (2005), com John sendo interpretado por Keanu Reeves, e que mesmo muito diferente de sua contraparte dos quadrinhos, encontrou espaço para se destacar. Muitas das cenas do filme foram baseadas em arcos importantes criados por Jamie Delano e Garth Ennis.
No mesmo ano, saiu A History of Violence (2005), baseada na graphic novel A History of Violence, de John Wagner e Vince Locke, publicada originalmente em 1997 pela editora Paradox, mas relançada pela Vertigo em 2005. É um filme impressionante dirigido por David Cronenberg, e lançado no Brasil como Marcas da Violência — tem a melhor cena de tiro na boca da história do cinema.
V for Vendetta (2006), baseada na premiada V de Vingança, de Alan Moore e David Lloyd, foi filme dos então Irmãos Wachowskis, que não entenderam a obra anárquica original e a diluíram em um cinema de ação de pequenez política, com mais sucesso de público do que crítica.
Foi a mesma situação de Watchmen (2009), dirigido por Zack Snyder, que não soube lidar com as complexas hiperestruturas narrativas e temas que a HQ de Moore trabalha.
Os mais recentes Vertigo no cinema foram mais nichados. The Losers (2010) foi baseada na série de mesmo nome, escrita por Andy Diggle e desenhada por Jock, uma divertida aventura de espionagem e mercenários, e The Kitchen (2019), baseada na HQ de Ollie Masters e Ming Doyle. Importante notar que apenas esse último saiu sob a nova direção editorial da DC pós-Novos 52, antes da Vertigo ser extinta.
Honrando sua alcunha de “HBO dos quadrinhos”, a Vertigo se deu bem melhor em seriados de televisão (hoje streaming). A primeira foi Human Target (2010), baseada na minissérie de por Peter Milligan, veiculada na Fox. Um ano antes da Vertigo estrear oficialmente, houve uma primeira série com o personagem, para a ABC, exibida de forma bem errática em 1992.
A NBC produziu uma série do Constantine (2014–2015), sem relações com o filme com Keanu Reeves. A CW fez iZombie (2015–2019), levemente baseada nos quadrinhos de mesmo nome de Chris Roberson. Lucifer (2016–2021), uma série bem distante da proposta de Gaiman e Mike Carey em Sandman, fez muito sucesso (especialmente com o público feminino), e foi veiculado pela Fox e depois pela Netflix. Preacher (2016–2019) foi uma série desenvolvida pelo ator e humorista (!) Seth Rogen, para o canal AMC.
E, finalmente, Watchmen (2019), enfim em uma HBO, que continuou os eventos dos quadrinhos de Moore e Gibbons (e não do filme do Zeca).
Também teve uma série do Swamp Thing (2019), mais uma chance pro Monstro do Pântano, que deu tão ruim que quando estreou já foi dito que seria cancelado (!!). Também saíram Sweet Tooth (2021), baseado nos premiados quadrinhos de Jeff Lemire, para a Netflix; Y: The Last Man (2021), lançado para o FX e Hulu (outro fracasso) e, finalmente, The Sandman (2022), para a Netflix, depois de anos de desenvolvimento em vários formatos, com consultoria do próprio Neil Gaiman.
De volta aos quadrinhos. Karen Berger continua editando quadrinhos, agora na Dark Horse, onde toca um selo próprio desde 2017, o Berger Books. Artistas como G. Willow Wilson, Ann Nocenti, David Aja, Anthony Bourdain, entre outros, já trabalharam com a editora na nova casa.
Para os leitores americanos, os quadrinhos da Vertigo eram a primeira opção para fugir das HQs de super-heróis.
O fim da Vertigo não foi só o desfecho melancólico de uma das ações mais fundamentais ao prestígio dos quadrinhos em toda sua história. Ele representa o fim de um compromisso editorial com materiais que fogem do padrão e de terrenos seguros, e que muitas vezes encontram ressonância com um público de modo inesperado, porém certeiro e digno.
Contudo, o compromisso de Karen Berger com a excelência editorial e sua visão de longo prazo para o sucesso do selo Vertigo continuam a ser um modelo para os editores de quadrinhos até hoje.
Vertigo.
30 anos em 2023.
A HBO dos quadrinhos.
A SubPop dos quadrinhos.
Obrigado, Karen Berger!
Obrigado por ler até aqui!
O Destrutor é uma publicação online jornalística independente focada na análise do consumo dos produtos e tecnologia da cultura pop: música, cinema, quadrinhos, entretenimento digital (streaming, videogame), mídia e muito mais. Produzir matérias de fôlego e pesquisa como essa, mostrando todas essas informações, dá um trabalhão danado. A ajuda de quem tem interesse é essencial.
Apoie meu trabalho
- Qualquer valor via PIX, a chave é destrutor1981@gmail.com
- Compartilhe essa matéria com seus amigos e nas suas redes sociais se você gostou.
- O Destrutor está disponível para criar um #publi genuíno. Me mande um e-mail!
Programação:
- Segunda – post no blog
- Terça – Uma informação exclusiva da matéria no Instagram do Destrutor (siga lá!)
- Quarta – Uma thread exclusiva da matéria do blog no meu Twitter (siga lá!)
- Quinta – Um #tbt de nosso conteúdo (são centenas de matérias) no Instagram do Destrutor
- Sexta, sábado e domingo – Imagens preview da próxima matéria do blog e outras no Instagram do Destrutor
* Todas as imagens dessa matéria têm seus direitos
reservados aos seus respectivos proprietários, e são
reproduzidas aqui a título de ilustração.