Temos neste filme um noir com serial killer no mundo da moda publicitária, o que torna Os Olhos de Laura Mars um dos longa-metragens mais legais e inventivos do cinema americano dos anos 1970, escrito por John Carpenter e dirigido por Irwin Kershner.
Filmado inteiramente em Nova Iorque e Nova Jersey, estamos no universo sexy e glamouroso da moda.
E a narrativa apresenta esse assassino serial à solta em NY em um jogo dinâmico de cenas com olhos, filmagens de cenários urbanos nebulosos e ultracoloridos fashion, habitado por pessoas engajadas ou frívolas de um mercado que evapora estilo e substância, tudo muito bem capturado pelas câmeras de Irwin.
O diferencial na trama é uma espécie de “premonição” carregada pela personagem do título, interpretada pela atriz Faye Dunaway.
Fayé é Laura Mars, uma fotógrafa conhecida por seu estilo extremamente gráfico de fotografar cenas sensuais e glamorosas misturadas com cenas de assassinatos e morte, tudo teatralmente representadas por seus modelos.
Ela atualmente promove seu mais recente trabalho, um book chamado Eyes of Laura Mars, mas logo com o primeiro assassinato que vemos no filme, sua vida começa a mudar — para pior.
E não demora para mais mistérios serem empilhados em cima do maior deles: Laura Mars aparentemente vê os momentos que antecedem cada assassinato seguinte, tudo pelos olhos do criminoso.
Isso se reflete diretamente em outro aspecto: Laura usa sem saber as premonições desses homicídios e eles acabam por inspirar sua arte.
O terror psicológico de Os Olhos de Laura Mars mistura esses elementos de assassinatos e violência com o mundo fashion de Laura, em seu trabalho e nessas “premonições”.
Mas será mesmo? É isso que estamos vendo?
Sob a direção de Kershner, temos uma estrutura simples, com toques de terror e suspense policial. É a velha base que estabelece uma série de crimes que precisam ser desvendados
Carpenter e Irwin demoram para entregar pistas, e somos nós mesmos que temos que ligar os pontos até o chocante desfecho, naquele que é um dos grandes finais do cinema.
Os Olhos de Laura Mars tem roupas e grifes, muitas música da época e bons tons de nudez e sensualidade, ao mesmo tempo que emprega névoas sombrias em momentos tensos e angustiantes.
Além de Dunaway, no elenco estão um jovem Tommy Lee Jones em início de carreira e Raul Julia.
Os Olhos de Laura Mars é mais um capítulo da Maratona Cinematográfica Raul Julia, no 6º filme já resenhado por aqui, e é um dos melhores na trajetória do ator, a despeito dele não ser o protagonista.
Aliás, ele nem mesmo está creditado como Raul Julia. Ele aparece nos créditos como R.G., pois recusou não estar identificado ao lado dos nomes dos outros atores nas artes promocionais dos posteres.
Os Olhos de Laura Mars
(The Eyes of Laura Mars, 1978, de Irwin Kishnner)
Laura vê pelos olhos do assassino. Vê as mortes, vê uma faca, vê a perfuração de um olho. Se os olhos são o espelho da alma, é por dentro da alma de Laura que iremos nesta jornada cinematográfica.
No segundo assassinato que Laura “vê”, ela decide ir ao local do crime e contar para a polícia o que está acontecendo. Alguém acreditaria?
É quando sua relação com o policial John Neville (Tommy Lee Jones), que já a tinha abordado brevemente em uma exposição de fotos, se torna mais forte.
Quando somos introduzidos a Michael Reisler (Raul Julia), ficamos em dúvida de sua relação com Laura, já que ele possui as chaves da residência dela. Seria ex-marido?
Em certo momento do filme, descobrimos junto com Laura e John que o book que ela está promovendo na verdade são reproduções de fotos dos crimes que estão sendo cometidos.
Mais um personagem para nossa trama: Tommy Ludlow (Brad Dourif) é um motorista que trabalhava para vários profissionais do mercado de moda que Laura trabalha, e a ajuda em muitos momentos.
Ao ir fazer um novo ensaio, Laura tem uma nova “visão” de mais um crime, o assassinato de duas modelos amigas dela. A cena de enterro é bastante emocional, e ela acaba por se envolver romanticamente com John.
Nada parece estar muito próxima de Laura, mas quando ela é perseguida pelo assassino, sabemos que ela está em perigo.
Toda essa tensão tem um crescente insuportável na hora que Laura tem a visão de que será a próxima na série de homicídios.
Apesar de viver nesse mundo libertino e sexualizado, Laura é muito reaça nos modos enquanto figura feminina, o que parece agradar o policial. Enquanto essa improvável história de amor se desenrola, o assassino cada vez fica mais próxima de Laura, inclusive matando o ajudante dela.
Em certo momento, Irwin nos faz ter certeza que Tommy é o assassino. Ao fugir de uma abordagem policial, uma pista o compromete ainda mais, mas ele é baleado.
Depois vemos Michael espreitando Laura. Ou é outra pessoa no elevador?
A composição com jogos de câmera é criativa e perturbadora no clímax, quando há uma troca intensa de assassino e vítima — logo, de perspectiva de visão/câmera.
Vale repetir: Os Olhos de Laura Mars tem um dos melhores finais do cinema.
O desfecho inacreditável.
Mais do que os olhos podem ver
Os Olhos de Laura Mars bebe dos melhores filmes italianos do gênero giallo. O nome tem origem no mercado literário e cinematográfico da Itália, muito popular nos anos 1960, que tratavam de temáticas de suspense e romance policial.
Giallo é amarelo em italiano, e também faz referência às capas amarelas das revistas pulp italianas do fim dos anos 1920, que eram do mesmo assunto.
Os elementos italianos do giallo estão todos aqui. Uma história policial envolvendo crimes, mistérios e investigações, mostrada em uma edição esquizofrênica com design de produção cafona, um assassino que usa luvas e mortes detalhadas em efeitos visuais práticos de muito realismo.
O giallo precede o cinema americano e seu gênero slasher, que começou com O Massacre da Serra Elétrica (1974), e seria definitivamente sedimentado por John Carpenter no primeiro filme que dirigiu, Halloween (1978), lançado no mesmo ano de Os Olhos de Laura Mars.
Na época de Laura Mars, Carpenter era um cineasta que ainda estava começando na indústria. Ele já tinha escrito dois filmes: Dark Star (1974), uma sombria ficção científica (e que deu base para Ridley Scott fazer seu Alien, cinco anos depois) e Assalto à 13ª DP (1976).
Tudo serviu de estofo para ele enfim dirigir seu Halloween, que mudou para sempre o cinema, fazendo o gênero slasher nunca mais sair do cinema.
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John só fez filmaço depois: Fuga de Nova York (1981), Enigma de Outro Mundo (1982), Eles Vivem (1988) e muitos outros. Além de escrever e dirigir, John também é compositor, inclusive sendo autor do tema principal de Halloween.
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Outro escritor creditado no roteiro (que passou por revisões) é David Zelag Goodman, já tinha em seu currículo Sob o Domínio do Medo (1971) e Fuga no Século 23 (1976).
O cineasta Irvin Kershner, que dirigiu o filme, era professor de cinema e colecionava prêmios na área, e já trabalhava na indústria cinematográfica desde os anos 1950.
Foi o desempenho impressionante em Os Olhos de Laura Mars que lhe garantiu a cadeira de diretor na continuação da ópera espacial de George Lucas, em Star Wars – O Império Contra-ataca.
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É o melhor filme da franquia até hoje, o destaque de 9 longas, dezenas de séries e desenhos animados e centenas de livros, HQs e videogames.
Irwin também dirigiu 007 – Nunca Mais Outra Vez (1983), Robocop 2 (1990) e muitos outros filmes até sua morte, em 2010.
John Carpenter iria chamar o filme apenas de “Eyes” (“Olhos“), mas diversas revisões do roteiro acabaram adicionando a Laura Mars ao próprio título. Outras mudanças significativas foram a troca da identidade do assassino e o próprio final.
Como Carpenter estava atolado até o pescoço com seu filme de estreia de Halloween, não pode manter rédea curta sobre o que tinha escrito.
As atrizes Catherine Deneuve, Jane Fonda, Goldie Hawn e Diane Keaton foram consideradas para o papel de Laura Mars.
A cantora Barbra Streisand estava escalada para estrelar o filme, mas ela achou a trama de Os Olhos de Laura Mars excêntrica demais. No fim, foi Faye quem ficou com o papel.
Barbra canta a música tema do longa, Prisoner, e este é o único filme em que ela canta e não aparece no filme em questão.
Por trás da produção, Jon Peters e Laura Ziskin. Peters era namorado na época de Barbra, e já tinha feito com ela Nasce uma Estrela (1976), que deu o Oscar para a cantora pela canção Evergreen.
Depois de Laura Mars, Jon se envolveu em grandes produções, como o Batman (1989), de Tim Burton, que ganhou o Oscar de Melhor Direção de Arte; sua continuação, Batman – O Retorno (1992), pelo mesmo diretor; e A Cor Púrpura (1985), de Steven Spielberg.
Já a Laura Ziskin marcaria seu nome como produtora da trilogia Homem-Aranha (2002-2007), de Sam Raimi.
O nome de Dunaway na época era um dos mais comentados de Hollywood. Seu primeiro trabalho já foi um sucesso, Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas (1967), o qual a rendeu sua primeira indicação ao Oscar.
Ela ainda estrelou dois clássicos dos anos 1970: Inferno na Torre e Chinatown, ambos de 1974, com este segundo de novo com uma indicação ao Oscar para ela.
Antes de estrelar Os Olhos de Laura Mars, Faye fez incrível filme sobre mídia e jornalismo e seus limites antiéticos Rede de Intrigas (1976), onde enfim ganhou o Oscar, prêmio merecidíssmo.
E Faye tinha que ser a Laura Mars mesmo. Tudo combinava. A estrela, na época, estava envolvida num relacionamento com Terry O’Neill, um fotógrafo britânico que a treinou para o papel.
A atriz usa no longa uma câmera Nikon FM (com um motor MD-11), e os trabalhos fotográficos que Laura desenvolve no filme foram inspirados em diversos outros feitos por fotógrafos celebrados na área.
É o caso do alemão Chris Von Wangenheim, um fotógrafo fashion da era disco dos anos 70.
A temática de sexo e violência ficou por conta dos criadores do filme, que se basearam nas fotos de Francesco Scavullo, Helmut Newton e Rebecca Blake. Inclusive as fotografias que enfeitam as paredes do estúdio de Mars que aparecem ao início do filme são de Helmut e Blake.
Uma cena marcante baseada no trabalho de Newton acontece em Os Olhos de Laura Mars quando Laura fotografa suas modelos de lingerie e casacos, em meio a carros batidos e em chamas.
Foram precisos 4 dias seguidos na praça de Columbus Circus, Nova York para que ela fosse feita. Newton mesclava fotos com moda, sexo, sadomasoquismo, violência, lesbianismo e nudez, tudo retratado num contexto extremamente luxuoso.
Nos anos 1970, profissionais do tipo eram verdadeiras celebridades, em pé de igualdade com figuras da cena artística e do entretenimento. É isso que explica o poder de fechar ruas para ensaios de superprodução.
Vale destacar que o diretor de fotografia do filme é Victor J. Kemper, profissional que trabalhou em Um Dia de Cão (1975), Os Sete Suspeitos (1985), F/X2: Ilusão Fatal (1991), Beethoven (1992) e outros.
Os figurinos são outro grande destaque de Os Olhos de Laura Mars, com trabalhos de Theoni V. Aldredge, que ajuda o eficiente design de produção de Gene Callahan.
Os Olhos de Laura Mars foi um grande sucesso de bilheteria, que reafirmou o status de grande estrela de Faye, e serviu de pontapé para a carreira de Tommy Lee Jones. Ele já tinha feito três filmes, alguns telefilmes e séries de TV (participou de As Panteras, de 1976).
O ator Brad Dourif tinha feito apenas três filmes também, sendo que o segundo foi Um Estranho no Ninho (1974), em um papel que lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Ele fez outros grandes filmes, como Duna (1984), de David Lynch; Veludo Azul (1986), dirigido pelo mesmo Lynch; Mississippi em Chamas (1988); e verdadeiras pérolas da cultura pop, como Brinquedo Assassino (1988), onde interpretou o criminoso Charles Lee Ray, ninguém menos que o boneco Chuck em pessoa, e o Língua de Cobra em O Senhor dos Anéis: As Duas Torres (2002).
Darlanne Fluegel fez sua estreia em Os Olhos de Laura Mars, e ainda participaria de filmes como Era uma Vez na América (1984), Viver e Morrer em Los Angeles (1985) e Condenação Brutal (1989).
Maratona Raul Julia
Raul Rafael Carlos Julia y Arcelay nasceu em San Juan, cidade de Porto Rico, em 9 de março de 1940. Era o mais novo de quatro irmãos.
Desde cedo, o pequeno Raul Rafael demonstrava interesse pelas artes dramáticas. E quando ficou grande — grande mesmo, com 1,87 de altura — se encantou com a performance do ator Orson Bean em uma boate noturna, o que fez tomar a decisão de estudar teatro na Universidade de Porto Rico.
Se mudou para Manhattan (NY), em 1964, e rapidamente encontrou trabalho em peças e shows da Broadway.
E foram os seguidos trabalhos nos palcos lhe abriram as portas para o audiovisual gravado.
O Internet Movie Database dá 50 créditos de atuação de Raul Julia como ator em produções de cinema e filmes para a TV. Abaixo, um vídeo produzido pelo American Masters, que destaca profissionais da arte e cultura nos Estados Unidos. E a rendição deles para o talento de Raul Julia.
O filme anterior de Julia tinha sido Uma Corrida de Loucos (1976), uma divertida aventura com corridas de carro, gênero dos mais populares no cinema dos anos 1970.
Julia é Franco, um piloto que faz parte de um grupo que promove corridas secretas e ilegais pelos Estados Unidos.
UMA CORRIDA DE LOUCOS | Raul Julia e as loucas corridas de carro no cinema
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