O FUNDO DO CORAÇÃO | Raul Julia e um musical puro suco anos 1980

A década de 1980 não poderia ter um filme melhor para Raul Julia do que O Fundo do Coração, um musical multicolorido montado em cima de uma história simples e pueril de amor, e dirigido por Francis Ford Coppola, um dos maiores cineastas de todos os tempos.

As cenas grandiosas, cores exuberantes e design de produção impecável vão em sentido contrário ao filme em si, que pouco faz para segurar o interesse, dado o pouco carisma dos protagonistas colocados em uma história ordinária que não empolga.

Ancorado na qualidade impecável e cara da produção, Francis faz o eixo narrativo do filme girar em torno da relação do casal Hank (Frederic Forrest) e Frannie (Teri Garr) com seus novos interesses românticos, Leila (Nastassia Kinski) e Ray (Raul Julia), respectivamente.

O Fundo do Coração
Jeri Garr é Frannie e Fredercik Forest é Hank

Enquanto Forrest e Garr tinham experiência 0 (zero) em dança, o garboso Raul Julia já tinha o requebrado e cantoria desde que começou a atuar no começo dos anos 1970.

E a lindíssima da Nastassja é a única atriz que performa de verdade uma canção no longa (ela mesma canta Little Boy Blue).

O Fundo do Coração
Nastassja Kinski é Leila

Francis Ford Coppola disse que se inspirou em diversas obras para fazer O Fundo do Coração, como os musicais de colégio e shows da Broadway que assistiu quando jovem e os musicais filmados dos anos 1940 e 1950. Ele ainda cita os dramas televisivos dirigidos por John Frankenheimer.

O Fundo do Coração
Raul Julia é Ray

Feito depois de Apocalypse Now (1979), um colosso cinematográfico que se tornou um dos maiores filmes do cinema — e uma das maiores buchas também, com direito a um documentário próprio que chega a rivalizar com o próprio filme, O Fundo do Coração tinha U$2 milhões em caixa, mas acabou custando U$25 milhões.

A quantia exorbitante e distante da original levou Francis Ford Coppola e seu estúdio à falência. O Fundo do Coração se junta ao time de grandes produções feitas por Francis Ford Coppola, como O Poderoso Chefão (1972), a sequência de 1974 e o já citado Apocalypse Now, e tal como elas, representou uma mudança de paradigma no cinema.

Só que o musical, pelo lado negativo.

O Fundo do Coração

O Fundo do Coração
(One From The Heart, 1981, de Francis Ford Coppola)

O Fundo do Coração é o longa-metragem mais lírico e delicado da filmografia de Francis Ford Coppola. O roteiro é assinado por Armyan Bernstein, que escreveu juntamente com Coppola.

O plano-aberto e plano-sequência é um orgasmo visual para quem aprecia a fotografia e cinematografia.

Faz explodir cada detalhe ultra colorido saturado que marcaria a identidade visual dos anos 1980, o filme tem uma beleza incrível proporcionada pelo diretor de fotografia Vittorio Storaro.

O Fundo do Coração

O Fundo do Coração

O Fundo do Coração

O Fundo do Coração

O argumento brega dos diálogos que contam a história de amor de Hank e Frannie conversam diretamente com esse exagero oitentista nascente. Por isso é sem surpresas que acompanhamos a reconciliação do casal no final.

Nesse mundo imaginário criado por Coppola, a viagem se torna apenas uma apreciação visual, já que a tentativa da superação conjugal deles serve apenas para mostrar o talento e beleza das contrapartes interpretadas por Raul Julia e Nastassja Kinski.

O fato de Coppola fazer o rompimento de Hank e Frannie na véspera do feriado de 4 de julho (Independência dos Estados Unidos), quando comemorariam 5 anos de namoro, em Las Vegas, a cidade americana do excesso e festeira por excelência, dos letreiros luminosos e neon, nos diz tudo que precisamos saber.

Sem gerar os maiores dos interesses, acompanhamos Hank e Frannie bum vai e vém. Ela sai de casa, vai para a casa da maior amiga, Maggie (Lainie Kazan), enquanto ele vai chorar com o melhor amigo, Moe (Harry Dean Stanton).

O Fundo do Coração

A introdução de Leila para Hank e Ray para Frannie movimenta um pouco as coisas, mas a título de curiosidade apenas para vermos o impacto do uso sinestésico dos aspectos visuais e sonoros que Coppola faz aqui.

O Fundo do Coração

O Fundo do Coração

É por isso o deslumbre de Leila, uma artista de circo que parece saída de um mundo de sonhos de tão linda e perfeita, e do espírito aventuresco e sonhador de Ray.

O Fundo do Coração

O Fundo do Coração

Algumas sequências beiram o onírico, como a noite amorosa de Hank e Leila. Apenas esse tipo de sonho salvaria o filme mesmo.

O Fundo do Coração

 

O Fundo do Coração

O Fundo do Coração

A música em O Fundo do Coração

As letras das músicas neste musical remetem especificamente aos momentos românticos e dramáticos de Hank e Frannie, de Hanke e Leila, e de Frannie e Ray.

E os cantores Tom Waits e Crystal Gayle desempenham papeis semelhantes aos de conselheiros oniscientes, com as canções tocando os personagens.

Tom Waits e Crystal Gayle

E a despeito do talento musical e de dança de Raul Julia, O Fundo do Coração tem apenas Nastassja performando a música Little Boy Blue. Todas as outras canções vieram da trilha sonora, por conta de Tom Waits e Crystal Gayle.

O talento de Raul em musicais já era bastante conhecido. O ator foi nomeado 4 vezes como Melhor Ator em Musical para o prêmio Tony Awards, o maior e mais prestigioso prêmio do teatro dos EUA (equivalente ao Oscar no cinema, Emmy na televisão e Grammy na música).

Julia Ganhou em 1972, por Two Gentlemen of Verona; Where’s Charley?, de 1975; pelo seu Macheath em The Threepenny Opera, de 1977; e Nine, de 1982.

Gayle é é uma cantora americana de música country, mais conhecida por seu hit Don’t It Make My Brown Eyes Blue, presente no disco We Must Believe in Magic (1977).

Nos cinemas, teve trabalhos nas trilhas sonoras de filmes como Seres Rastejantes (2006), o primeiro filme do cineasta James Gunn, na canção I Don’t Want To Lose Your Love, e Os Oito Odiados (2015), de Quentin Tarantino, na canção Ready for the Times to Get Better.

Já o Tom Waits é um músico, instrumentista, compositor, cantor e ator norte-americano, conhecido pela voz grossa e rouca nas músicas esquisitas e intrigantes numa carreira que passa de 40 anos em quase 30 álbuns (incluindo álbuns de estúdio, compilações e álbuns ao vivo), e mais de 50 participações diretas (como ator) e indiretas (compondo trilhas sonoras) em filmes.

Ele serviu de “template” para o ator Heath Ledger criar seu Coringa em Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008).

HEATH LEDGER | O segredo do Coringa quebrado

Francis Ford Coppola

Coppola estava no auge da fama quando fez O Fundo do Coração, filme que o levou ao fundo do poço.

Seu Poderoso Chefão de 1972 teve 11 indicações ao Oscar, e levou 3. A segunda parte teve outras 11 indicações ao Oscar, e levou 6. Apocalypse Now teve 8 indicações ao Oscar, e levou 2.

Em o Fundo do Coração, Francis gastou quase 12x a mais do que tinha pra fazer tudo que queria: efeitos especiais caros, reproduções cenográficas de Vegas, movimentos de câmera sofisticados em cenários elaborados e filmagens dinâmicas com atores “desconhecidos” (nenhum astro de Hollywood da época para atrair espectador).

Nastassja e Jeri com Francis Ford Coppola

E ninguém foi ver O Fundo do Coração. Ainda que, como os outros acima citado, tenha tido um Oscar no meio do caminho –o filme foi indicado por Melhor Trilha Sonora Adaptada, mas Tom Waits perdeu para Henry Macini, do filme Victor ou Victória?, comédia musical escrita e dirigida por Blake Edwards (de Bonequinha de Luxo, de 1961, e A Pantera Cor de Rosa, de 1963).

Dos U$ 25 milhões gastos em O Fundo do Coração, a renda inicial foi de U$ 636 mil. Os filmes Vidas Sem Rumo (1983), Cotton Club (1984), O Poderoso Chefão III (1990), Jack (1996) e O Homem Que Fazia Chover (1997) que Francis dirigiu teriam sido feitos só para pagar a dívida que ele contraiu.

Os musicais em Hollywood estão profundamente associados aos anos dourados do cinema americano. Eles sempre se adaptam aos formatos e linguagens, remodelados para públicos modernos.

Em 1972, tivemos Um Violinista no Telhado, ganhador de 3 Oscar. Um ano depois, Cabaret ganhou 8. The Rock Horror Picture Show e Tommy popularizam os musicais com sexo e sujeira na forma de opera rock em 1975.

Em 1977, é lançado Embalos de Sábado à Noite, fazendo a discoteca tomar o mundo de popularidade — o álbum com as músicas do Bee Gees se tornou a trilha sonora mais vendida de todos os tempos. Em 1979, saiu Hair, polêmico por trazer temas como nudez, sexo e política.

Hair

Em 1980, O Show Deve Continuar ganhou 4 Oscar e a Palma de Ouro em Cannes. Depois de O Fundo do Coração, tivemos pérolas populares como Flashdance (1983), Footloose – Ritmo Louco (1984) e Dirty Dancing – Ritmo Quente (1987), que se tornaram marcas bastante conhecidas dos anos 1980, ícones que resistem até os dias de hoje.

Arte promocional de Flashdance

Teri Garr tinha talento de sobra, mas não funcionou em O Fundo do Coração.

Mas assistir ela interpretando é obrigatório em clássicos do cinema como A Conversação (1974), do próprio Francis Ford Coppola; O Jovem Frankenstein (1974), comédia do divertido Mel Brooks; Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), o melhor filme de Steven Spielberg; Tootsie (1982), de Sydney Pollack, papel que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, prêmio que ficou para sua colega Jessica Lange, indicada pelo mesmo filme; e Depois de Horas (1985), de um Martin Scorcese quase no mesmo mood megalomaníaco de Coppola em O Fundo do Coração.

O jeitão anti-glamour simples e despretensioso de Teri no papel de Frannie fica muito distante da beleza inacreditável de Nastassja e sua Leila, mas Teri sabe ser sensual quando precisa.

A bela Jeri Garr em O Fundo do Coração

Frederic Forrest tem o apelo de um cone de estacionamento aqui, mas fez vários outros filmes com Francis Ford Coppola, como A Conversação (1974) e Apocalypse Now (1979), e ainda outros depois de O Fundo do Coração, como Hammett – Mistério em Chinatown (1982) e Tucker: Um Homem e seu Sonho (1988).

Assista o incrível Um Dia de Fúria (1993), de Joel Schumacher, em que Forest interpreta um nazista gay enrustido dono de uma loja de armas, que você o encontra em melhor forma.

Rebecca De Mornay fez sua estreia nos cinemas em um pequeno papel em O Fundo do Coração. Ela namorou por 2 anos o feioso do Harry Dean Stanton. De Mornay também tinha uma beleza impressionante já na época, tal qual Nastassja, que junto com Staton, fez o impressionante Paris, Texas (1984), filme dirigido por Wim Winders.

Frederick Forest e Harry Dean Stanton em O Fundo do Coração

Nastassja estreou no cinema aos 14 anos, em um papel que hoje seria controverso, Movimento em Falso (1975), do mesmo Wim Wenders. Ela tem mais de 70 produções entre filmes e seriados, com a boa safra concentrada entre a segunda metade dos anos 1970 e 1990.

Assista, além de Paris, Texas, Nastassja em A Marca da Pantera (1982), Um Hotel Muito Louco (1984), Tão Longe, Tão Perto (1993), Velocidade Terminal (1994), Por Uma Noite Apenas (1997) e Império dos Sonhos (2006).

Kinski e sua beleza estonteante em O Fundo do Coração
O poster de Paris, Texas, um dos melhores filmes de Nastassja
Nastassja Kinski, a melhor coisa em O Fundo do Coração

Confira ela aqui no clipe Stay (Faraway, So Close!), do álbum Zooropa (1993), do U2, dirigido por Wenders, da trilha sonora de Tão Longe, Tão Perto.

Maratona Raul Julia

Raul Julia em O Fundo do Coração

Raul Rafael Carlos Julia y Arcelay nasceu em San Juan, cidade de Porto Rico, em 9 de março de 1940. Era o mais novo de quatro irmãos.

O lado artístico veio de sua mãe, Olga, uma cantora mezzo-soprano, e sua gana de trabalho e atuação elétrica provavelmente vieram de seu pai, Raúl Juliá, um engenheiro elétrico (ele também foi pioneiro ao trazer a pizza para Porto Rico, além do frango frito).

A formação escolar de Raul se deu no Colegio San Ignacio de Loyola, de orientação católica-jesuíta. Desde cedo, o pequeno Raul Rafael demonstrava interesse pelas artes dramáticas.

E quando ficou grande — grande mesmo, com 1,87 de altura — se encantou com a performance do ator Orson Bean em uma boate noturna, o que fez tomar a decisão de estudar teatro na Universidade de Porto Rico.

Raul já tinha bastante experiência em musicais, canto e doença inclusive

Se mudou para Manhattan (NY), em 1964, e rapidamente encontrou trabalho em peças e shows da Broadway. E fora os seguidos trabalhos nos palcos lhe abriram as portas para o audiovisual gravado.

Raul Julia
Raul Julia

Seus primeiros trabalhos como ator foram pequenas participações em séries de TV, como N.Y.P.D. (1968), Love of Life (1968), Stilleto (1969) e McCloud (1970), até sua estreia nos cinemas em Os Viciados (1971).

OS VICIADOS | Primeiro filme de Raul Julia foi sobre a espiral das drogas

Raul Julia fez mais 5 filmes, além de 6 seriados de TV, um curta-metragem e um especial de teatro filmado durante os anos 1970.

Os Viciados, que é um dos primeiros filmes do Al Pacino, foi seguido de A Organização, outro filme policial, estrelado por Sidney Poitier, um dos primeiros filmes sequenciais de tiras no cinema; Death Scream, mais um do gênero, dessa vez direto para a TV; Uma Corrida de Loucos, aqueles divertidos filmes de corrida automobilística, que se tornaram muito populares nos anos 1970; Os Olhos de Laura Mars, um dos filmes mais impressionantes da década; e Uma Vida em Pecado; o primeiro filme de Raul Julia em seu país de origem, Porto Rico.

Raul Julia adoeceu por conta de complicações de saúde, e ficou internado um tempo em Nova York, EUA. Ele estava lendo o roteiro de A Balada do Pistoleiro, filme de Robert Rodriguez, na cama de hospital, de onde tinha certeza que sairia.

Mas seu estado de saúde piorou. Ficou em coma por vários dias e faleceu no dia 24 de outubro de 1994, aos 54 anos de idade. Raul Julia teve funeral de estado em Porto Rico, onde foi sepultado com todas as honrarias.

Era apoiador ativo de The Hunger Project, uma fundação de combate à fome no mundo. Por 17 anos, Raul Julia serviu de porta-voz da fundação.

Raul Julia
Raul Julia

Raul era considerado um dos mais bem-sucedidos atores hispânicos nos EUA. Seu maior sucesso no cinema foi O Beijo da Mulher Aranha (1985), de Hector Babenco, onde contracenou com William Hurt (que ganhou o Oscar por sua atuação).

No filme, baseado no livro homônimo do argentino Manuel Puig, Julia vive um prisioneiro político latino-americano que divide a cela com um gay, interpretado por Hurt.

Ele foi o único homem que ganhou o Emmy e o Globo de Ouro postumamente, ambos por Amazônia em Chamas, de 1994, um de seus últimos filmes, numa das melhores narrativas cinematográficas sobre o ativista ambiental brasileiro Chico Mendes, que teve um trabalho de enorme importância nos trabalhos dos seringueiros do Acre na Floresta Amazônica.

O Internet Movie Database dá 50 créditos de atuação de Raul Julia como ator em produções de cinema e filmes para a TV.

O imenso legado criativo de Raul Julia no cinema será resenhado numa Maratona Raul Julia, tal qual já fizemos por aqui com a atriz Jennifer Connelly, e traremos todas essas produções para cá.

JENNIFER CONNELLY | Pequena biografia de uma grande atriz

Tomo o atrevimento de buscar a crítica de Roger Ebert sobre O Fundo do Coração para encerrar essa resenha.

Ebert foi um dos maiores críticos de cinema dos EUA.

(…) (o filme) é um balé de movimentos de câmara graciosos e complexos ocupando cenários magníficos, e de alguma maneira os personagens se perdem no processo. Não houve um momento sequer no filme em que eu me importei com o que estava acontecendo com as pessoas nele. (…) O contador de histórias de The Godfather aqui virou um técnico. Há paralelos assustadores entre o controle obsessivo de Coppola sobre este filme e o personagem de Harry Caul, o grampeador de A Conversação, que só se importava com os resultados técnicos do que gravava, e se recusava a pensar sobre as consequências humanas.”

Obrigado por ler até aqui!

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