“Essa casa é sua?” é a primeira fala do filme A Casa de Areia e Névoa, longa-metragem dirigido por Vadim Perelman, baseado no romance homônimo do escritor Andre Dubus III (russo radicado no Canadá há tempos), estrelado por Jennifer Connelly, Ben Kingsley, Shohreh Aghdashloo e outros grandes atores.
A areia é o elemento menos sólido possível quando não está aglomerado, e a névoa é a forma gasosa mais densa possível, quando não espalhada demais.
São os fatores visuais com que Vadim trabalhará em metáfora nessa trama simples de disputa de uma residência, em que não teremos como escolher de que lado ficar sem ficar com o coração despedaçado.
Jennifer Connelly em A Casa de Areia e Névoa interpreta a frágil Kathy Nicolo, uma mulher abandonada pelo marido, deprimida e ex-alcoólatra, despejada da própria casa por falta de pagamento de impostos.
Ela mente para a mãe que ainda está casada, e ainda usa sua aliança. Para sobreviver, trabalha de faxineira. Ben Kingsley intepreta Massoud Amir Behrani, um imigrante iraniano que trabalha muito para dar o máximo de conforto para sua família, com dois sub-empregos.
É o tipo de homem que se come um chocolate, marca no caderno de controle financeiro o produto consumido.
Vadim faz questão de mesclar a cena com a procura dele por uma casa, e ele encontra uma boa opção em um anúncio de jornal — um leilão de uma casa tomada pela prefeitura. A casa de Kathy.
A partir daí, temos o nosso drama em A Casa de Areia e Névoa. É difícil não escolher lados, e em filmes, obras audiovisuais comerciais que contam uma história, essa questão é o coração, pois o conflito é a base de todas as histórias contadas na humanidade.
O genial em A Casa de Areia e Névoa é que essa fórmula é embaralhada até não poder mais distinguir um do outro.
A Casa de Areia e Névoa
(House of Sand and Fog, 2003, de Vadim Perelman)
Massoud, que era um general condecorado no Irã, depois de muito trabalho, compra a casa de Kathy por um quarto do valor, e tem intenções de vendê-la para ter margem de lucro para pagar o ensino superior de seu filho adolescente.
A direção contemplativa das câmeras de Vadim nos mostram essa rotina com uma riqueza notável. Massoud sempre está preocupado com dinheiro, e sua mulher, Nadi Behrani, interpretada magistralmente por Shohreh Aghdashloo, aparentemente tem origens ciganas, e ironicamente, recebe muito mal o anúncio de que vão ter que mudar de casa.
A violência familiar explode aqui para mostrar que os costumes de Massoud ainda estão atrelados a sua educação militar, e isso se provará fatal (literalmente) ao final do longa.
A entrada na trama do delegado Lester Burton, infeliz em seu casamento com sua melhor amiga, que lhe deu dois filhos, tudo que Kathy queria em seu casamento, se encaixa também de maneira fatal na pretensão da trama.
Abandonada há oito meses, Kathy encontra refúgio seguro nos braços de Lester, que desde que foi à sua casa despejá-la por ordem da Justiça, demonstra interesse na moça.
Quando Kathy vai para a antiga casa, já em posse de Massoud, para ver o que estavam fazendo com ela, a moça, inadvertidamente pisa em pregos de uma tábua, demarcando simbolicamente a posse do terreno, da casa em si, com seu próprio sangue.
É irônico que a família do general a acolha e cuida dela com cuidado e carinho, misturando as cartas emocionais que teremos que escolher na hora de jogar esse truco da vida.
Mesmo uma conversa do ponto legal com a advogada de Kathy não convence o general do contrário, ele quer a casa.
O pagamento de impostos foi cobrado indevidamente por um erro da prefeitura, que não poderia ter leiloado a casa.
Uma ação na Justiça demoraria meses para reverter os efeitos do infortúnio de Kathy, e o poder está de fato com o general, que já vendeu a antiga casa onde residia, e se vê preso em uma sinuca onde só ele tem o taco.
O momento de de amor dele é o momento de amor de Kathy e Lester também, e mesmo quando o xerife diz que é casado, o sexo acontece.
Isso de certa maneira liberta Lester de sua amarras — até demais. O delegado se alinha a ira de forma desmedida, e vai intimidar Massoud.
A sombra da morte recai sobre a família, com a ameaça de deportação para o Irã, onde esse destino os aguarda.
O general, por lógica, jamais ficaria por baixo, e denuncia o policial. Ele vai até a esposa, que até então não sabia que Kathy queria retomar a casa, e as coisas se complicam mais e mais. Todas essas pessoas precisam desesperadamente de uma casa, até Lester, já que sua esposa o põe pra fora quando ele confessa sua traição.
Kathy bebe além da conta em uma recaída, se apodera da arma de fogo do xerife, e ruma para sua antiga casa.
A névoa está em um pico neste momento do longa, que está presente desde o início em quase todas as cenas externas de forma tênue, para se tornar de fato uma bruma densa. É o prenúncio da tragédia abominável que recai sobre todos os envolvidos.
“O inferno são os outros”, dizia Sartre.
No caso, todos os outros.
A armadilha moral da
tomada de lado
Massoud quer o mesmo padrão de vida que tinham no passado, enquanto moradores do Irã.
Sua conversa para com a esposa é equiparar uma residência que tiveram antes com a a casa que adquiriu no leilão — a casa de Kathy tem uma bela vista para o mar, que faz a ligação óbvia de areia com o título do filme. Com Massoud tendo seus interesses, e Kathy também, de que lado ficar?
O longa de Vadim é muito eficiente em nos encurralar em questões morais. Suas estratégias narrativas nos fazem oscilar, em um momento para a pobre moça, outra para o obstinado general.
Como não se compadecer de Kathy, que num estado de depressão profunda, perdeu o interesse por abrir as correspondências. Uma da cartas a informava já antes que a casa seria tomada por falta de pagamento.
E que culpa Massoud teria em gastar dinheiro em um leilão em uma casa, cujo retrospecto ele não conhecia e nem teria como?
Ex-general do Irã, atuante no regime do Xá Reza Pahlavi antes da tomada do poder pelos aiatolás, sofrendo a óbvia xenofobia, toda sua vida demonstra esforço e comprometimento com sua família.
Sobrevive em dois subempregos — pavimentador de estradas e caixa de um posto de gasolina — para manter o antigo padrão da família.
O preconceito moral pode travesti-lo de ganancioso e avarento, mas Vadim se encarrega de descascar suas camadas.
Não existe um vilão ou um herói definido. A cada momento torcemos por um personagem, para na seguinte mudarmos de lado.
A dimensão dramática de Jennifer Connelly se alinha a sua performance de Uma Mente Brilhante, o longa que deu o Oscar para a atriz, e A Casa de Areia e Névoa, por direito, teria que ser seu filme seguinte, e não Hulk como foi.
Shohreh Aghdashloo, a esposa de Amir, que não fala inglês, puxa com sua gravidade pessoal o marido e Kathy, com suas angústias encontrando aparo nos dois.
Todas as suas interações são ricas e profundas. Foi o primeiro trabalho de destaque em Hollywood da atriz, que é iraniana.
A reputação concreta e sólida
da areia e névoa
A Casa de Areia e Névoa é um excelente exercício de criatividade no cinema, que resulta em um grande filme com qualidades gigantes.
É obrigatório. Roger Deakins, diretor de fotografia do filme (fez Fargo, vencedor da Palma de Ouro em Cannes de 1996) trata a névoa como personagem do filme, sua presença envolve a casa e circunda espaços e pessoas.
Deakins é um dos melhores da indústria, com mais de 70 trabalhos na carreira, parcerias com os irmãos Coen, Sam Mendes, Martin Scorsese, Shyamalan, dezenas de indicações ao Oscar e vários outros prêmios.
Mais surpreendente é que a direção de Vadim Perelman seja de iniciante.
Ele é um profissional que veio de uma carreira na publicidade, mas que tem domínio absoluto da linguagem cinematográfica. Baseado no best seller de Andre Dubbus III, a Casa de Areia e Névoa retrata de forma genial a falta de limites do ser humano, quando movido por sua própria razão, combustível que lhe dá força para fazer qualquer coisa — até o que não deseja.
Vadim arranca de seus atores tudo isso. Ben Kingsley, ganhador do Oscar por Gandhi (1982), premiado e indicado em vários festivais.
Jennifer Connely, ganhadora do Oscar por Uma Mente Brilhante (2001), compete lado a lado com o veterano ator. Até mesmo o fraco Ron Eldard no papel do xerife Lester Burdon entrega algo dramático, com sua pose se transformando até o final.
Vadim Perelman é um ucraniano radicado nos Estados Unidos, e o que atraiu em A Casa de Areia e Névoa foram seus temores de imigração também.
A novela de Andre Dubus III estava nos corredores de estúdios de cinema havia muitos anos, e centenas de propostas foram feitas por ele, mas foi a Dreamworks que a tirou do papel, e entregou a Vadim para torná-lo filme.
E a estrela estava com ele. A Casa de Areia e Névoa ganhou o Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante para Shohreh Aghdashloo (Ben Kingsley foi indicado para Melhor Ator).
No Oscar, teve indicações de Melhor Ator Principal para Ben Kingsley, Melhor Atriz Coadjuvante para Shohreh Aghdashloo, e Melhor Trilha Sonora Original para James Horner.
Kingsley, antes de aceitar o papel principal, deu o roteiro do filme para sua esposa ler. Apesar de interpretar um iraniano, o ator tem ascendência anglo-indiana.
Na derradeira cena do filme, ele realmente quis se sufocar ao máximo com o plástico, e médicos ficaram a postos na cena para que ajudassem se as coisas saíssem do controle.
A Casa de Areia e Névoa não indica o tempo e lugar que a trama ocorre, mas com a situação do Xá sob as costas de Massoud, é seguro dizer que se passa depois dos anos 80, até mesmo 90.
E numerosas locações ao sul da Califórnia estabelecem que o filme se passa nos arredores da baía de São Francisco, e a casa que todos querem, em Malibu.
22º filme de Jennifer Connelly
A Casa de Areia e Névoa
Estados Unidos
/ ROGER EBERT. O maior crítico de cinema dos Estados Unidos, e o que ele achou de A Casa de Areia e Névoa e Jennifer Connelly aqui.
/// ROGER DEAKINS. Eis um belo apanhado de trabalho do diretor de fotografia do filme.
/// ELENCO. Uma entrevista com o diretor e elenco de A Casa de Areia e Névoa.
/// ROTTEN TOMATOES. O site agregador de críticas do Rotten Tomatoes dá uma pontuação de 74% para A Casa de Areia e Névoa.
/// A TRILOGIA DE JENNIFER CONNELLY. Com A Casa de Areia e Névoa, Jennifer Connelly completa sua trilogia de filmes em que tem uma cena em um pier. Os outros dois foram Cidade das Sombras (1998) e Réquiem Para um Sonho (2000).
/// 2003. Os filmes que passavam nos cinemas eram 007 – Um Novo Dia Para Morrer, Deus É Brasileiro, O Chamado, Gangues de Nova York, Adaptação, Prenda-me Se For Capaz, As Horas, Chicago, Demolidor – O Homem Sem Medo, 8 Mile – Rua das Ilusões, As Confissões de Schmidt, Durval Discos, A Casa dos 1000 Corpos, Carandiru, X-Men 2, Tiros em Columbine, Matrix Reloaded, +Velozes +Furiosos, Procurando Nemo, O Exterminador do Futuro 3 – A Rebelião das Máquinas, Lara Croft: Tomb Raider – A Origem da Vida, Extermínio, Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra, Donnie Darko, Uma Saída de Mestre, Era Uma Vez no México, Matrix Revolutions, Oldboy, Sobre Meninos e Lobos, Meninos Não Choram, Adeus, Lenin!, Entre o Céu e a Terra, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, entre outros.
Jennifer Connelly e seu Instagram: https://www.instagram.com/jennifer.connelly/
/ OS FILMES DE JENNIFER CONNELLY.
1- Era Uma Vez na América (1984)
2- Phenomena (1985)
3- Sete Minutos Para o Paraíso (1985)
4- Labirinto – A Magia do Tempo (1986)
5- Essas Garotas (1988)
6- Etoile (1989)
7- Hot Spot – Um Local Muito Quente (1990)
8- Construindo Uma Carreira (1991)
9- Rocketeer (1991)
10- O Coração da Justiça (1992)
11- Do Amor e de Sombras (1994)
12- Duro Aprendizado (1994)
13- O Preço da Traição (1996)
14- Círculo das Vaidades (1996)
15- Círculo das Paixões (1997)
16- Cidade das Sombras (1998)
17- Amor Maior que a Vida (2000)
18- Réquiem Para um Sonho (2000)
19- Pollock (2000)
20- Uma Mente Brilhante (2001)
21- Hulk (2003)
22- A Casa de Areia e Névoa (2003)
23- Água Negra (2005)
24- Pecados Íntimos (2006)
25- Diamante de Sangue (2006)
26- Traídos pelo Destino (2007)
27- O Dia em que a Terra Parou (2008)
28- Coração de Tinta (2008)
29- Ele Não Está Tão a Fim de Você (2009)
30- 9 – A Salvação (2009)
31- Criação (2009)
32- Virginia (2010)
33- O Dilema (2011)
34- E…que Deus nos Ajude!!! (2011)
35- Ligados pelo Amor (2012)
36- Um Conto do Destino (2014)
37- Marcas do Passado (2014)
38- Noé (2014)
39- Viver Sem Endereço (2014)
40- Pastoral Americana (2016)
41- Homem-Aranha De Volta ao Lar (2017)
42- Homens de Coragem (2018)
43- Alita – Anjo de Batalha (2019)
44- Top Gun – Maverick (2022)
45- Bad Behaviour (2023)
/ AS SÉRIES DE JENNIFER CONNELLY.
1- The $treet (2000)
2- O Expresso do Amanhã/Snowpiercer (2020-2024)
3- Matéria Escura (2024)
Obrigado por ler até aqui!
O Destrutor é uma publicação online jornalística independente focada na análise do consumo dos produtos e tecnologia da cultura pop: música, cinema, quadrinhos, entretenimento digital (streaming, videogame), mídia e muito mais. Produzir matérias de fôlego e pesquisa como essa, mostrando todas essas informações, dá um trabalhão danado. A ajuda de quem tem interesse é essencial.
Apoie meu trabalho
- Qualquer valor via PIX, a chave é destrutor1981@gmail.com
- Compartilhe essa matéria com seus amigos e nas suas redes sociais se você gostou.
- O Destrutor está disponível para criar um #publi genuíno. Me mande um e-mail!
O Destrutor nas redes: Instagram do Destrutor (siga lá!)
Todas as imagens dessa matéria têm seus direitos reservados
aos seus respectivos proprietários, e são reproduzidas aqui a título de ilustração.
LEIA TAMBÉM:
ÁGUA NEGRA | Jennifer Connelly e os remakes do cinema de horror japonês